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Delito de Opinião

Outra derrota de Pedro Sánchez

Pedro Correia, 20.02.24

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Derrota copiosa dos socialistas espanhóis. Mais uma, neste domingo. Agora foi na Galiza. Como já tinha sido em Madrid, na Andaluzia, em Castela e Leão, na Extremadura, em Valência, em Múrcia, na Cantábria, em Aragão, na Rioja e nas Baleares. A nível territorial, o PSOE só conserva hoje a presidência por maioria absoluta de um dos 17 territórios autonómicos do país vizinho: Castela-A Mancha, aliás governada pelo maior opositor interno de Pedro Sánchez, Emiliano García-Page.

Um descalabro.

Já tinham sido derrotados nas legislativas de Julho de 2023, embora acabassem por formar governo traindo tudo quanto haviam prometido ao celebrarem um acordo pós-eleitoral com cinco forças nacionalistas, três das quais assumidamente separatistas. Sánchez, tentando manter-se no poder a qualquer preço, cedeu em toda a linha aos independentistas catalães e aos herdeiros políticos da ETA no País Basco.

O caderno reivindicativo destes parceiros de coligação, que não escondem a intenção de destruir o Estado espanhol, vai acumulando cada vez mais exigências: a frágil maioria do PSOE irá quebrar-se a curto prazo. Algo inevitável, quando uma deputada independentista proclama no plenário das Cortes, em Madrid: "Não podemos estar submetidos ao poder judicial." Alude à magistratura nacional espanhola, em linguagem de "povo colonizado" contra a potência colonizadora. Parece que vão a bordo de uma nave de loucos.

 

Neste quadro, as regionais na Galiza funcionaram também como sondagem à gestão política de Sánchez, indivíduo totalmente desprovido de escrúpulos. Basta lembrar que formou o governo anterior com a esquerda mais extrema após ter afirmado, durante a campanha, ser «incapaz de dormir à noite, tal como 95% dos espanhóis», se o Podemos chegasse a ter pastas ministeriais. Contados os votos, mandou a jura às malvas e abraçou-se a eles.

Agora vê o seu partido sofrer a maior derrota de sempre no noroeste peninsular. Com apenas 14%, o PSOE perde cinco deputados: restam-lhe nove. Atrás do Partido Popular (47,4%, 40 deputados) e do Bloco Nacional Galego (31,6%, 21 deputados). Houve ainda um deputado regionalista, eleito por Ourense. 

O PP atraiu 60 mil novos eleitores, em comparação com as anteriores autonómicas, em 2020, enquanto os socialistas viram fugir mais de 50 mil votos. Os extremistas mantiveram-se fora do parlamento regional: nem a ultra-direita do Vox (2,2%) nem os comunistas do Sumar (0,89%) nem o Podemos (0,26%) conseguiram representação. Todos naufragaram nas urnas, excelente notícia.

 

O cerco ao PSOE, cada vez mais evidente, está a suceder por via das sucessivas eleições regionais. Em 2021, em Madrid, o PP teve mais mandatos do que toda a esquerda: então, também aí, os socialistas registaram o seu pior resultado de sempre. Em 2022 sofreram uma inédita derrocada eleitoral no seu feudo andaluz. 

Sánchez, a partir de agora, vai dormir cada vez pior. Não por causa do Podemos, que quase desapareceu do mapa político devido a uma série de convulsões internas, mas das ligações perigosas ao supremacismo catalão - incluindo o partido que mantém comprovados vínculos com Moscovo.

Tem tudo para acabar mal. E não duvidem: vai acabar mesmo.

O editorial que vai faltando cá

Pedro Correia, 10.08.20

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El País, o jornal mais influente de Espanha, publicou ontem um editorial que já é uma peça de antologia. Um texto demolidor para o Governo liderado por Pedro Sánchez, que tem revelado uma incompetência capaz até de causar indignação àquele diário, que nunca escondeu afinidades com o PSOE, principal partido do actual Executivo do país vizinho.

 

Seguem-se alguns excertos deste editorial, com tradução minha:

«O balanço das infecções é tudo menos tranquilizador. Os focos activos aproximam-se dos 600, o que converte Espanha no país da Europa Ocidental com maior número de contágios acumulados de coronavírus. As reuniões familiares ou sociais e os locais de lazer já superam em importância, como fonte de infecção, os precários alojamentos dos trabalhadores sazonais do sector agrícola. Os indicadores básicos da epidemia vão aumentando - isto inclui os diagnosticados, os hospitalizados, os internados em unidades de cuidados intensivos e os mortos. Neste quadro, é difícil entender o discurso sem autocríticas feito esta semana pelo presidente do Governo, Pedro Sánchez. Houve erros, que continuam a existir. É imperioso identificá-los e corrigi-los perante uma segunda vaga que cada vez parece mais próxima, se é que não está já entre nós.

Desde a chegada da pandemia a Espanha, os falecimentos por Covid-19 estão certamente mais perto dos cerca de 44 mil sugeridos pelo excesso de mortalidade registada do que dos 28 mil confirmados pela autoridade sanitária; mais de 50 mil trabalhadores da área da Saúde foram infectados e 20 mil pessoas morreram em lares de recolhimento de idosos. Estas cifras situam o país entre os mais afectados do mundo. A preparação do sistema sanitário revelou-se obviamente deficiente, e em aspectos importantes assim continua. (...) A gestão dos dados tem sido desastrosa, com disparidade de critérios entre comunidades autónomas e mudanças de rumo a meio do processo. O país não pode ficar à mercê da repetição destes erros no caso de uma segunda vaga. É compreensível que o Governo não queira afugentar ainda mais o turismo, mas não enquanto desvaloriza a gravidade da situação. Há vidas em jogo.

Se o Governo não vê motivos para críticas à sua própria actuação, terão de ser os especialistas a encontrá-los. (...) Os cientistas questionam como é possível que Espanha, que supúnhamos dotada de um dos melhores sistemas sanitários do mundo, tenha sofrido o golpe do coronavírus com tanta intensidade e identificam os factores mais prováveis que originaram isto. O país carecia de um plano de preparação antipandémica, com sistemas de vigilância insuficientes, reduzida capacidade para fazer testes e uma generalizada escassez de equipamentos de protecção individual. As autoridades centrais e autonómicas reagiram tarde e os processos de decisão foram lentos.»

 

Porque transcrevo estas linhas? Pelo mais simples dos motivos: porque gostaria que houvesse editoriais destes na imprensa portuguesa. 

Infelizmente, procuro mas não os encontro. Se existem, estão bem escondidos. O que se vai lendo por cá é conversa mole, cheia de rodriguinhos e de complacência perante os decisores políticos e sanitários. O que é sintoma da profunda crise em que mergulhou a nossa imprensa.

Um voo cego a nada

Pedro Correia, 17.01.20

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1

Oitenta anos após o fim da guerra civil, a "verdadeira esquerda" - como se intitulam os filo-comunistas da coligação Unidas Podemos agora coligados com o outrora odiado Partido Socialista - chega enfim ao poder em Espanha. Pedro Sánchez, com apenas 28% de votos recolhidos nas urnas e só com 120 assentos entre os 350 lugares do Congresso dos Deputados, decidiu coligar-se com os radicais de quem andou a demarcar-se durante toda a campanha eleitoral que conduziu às legislativas de 10 de Novembro.

«Nem eu nem 95% dos espanhóis dormiríamos tranquilos com o Podemos no Governo», chegou a dizer Sánchez semanas antes da segunda ida às urnas para tentar ampliar a escassa percentagem alcançada nas legislativas de Abril - e de que saiu com uma margem de manobra ainda mais estreita. É uma frase que vai persegui-lo durante toda a legislatura, dure o tempo que durar, assombrando-lhe as noites no Palácio da Moncloa. Mal foram contados os votos, o líder socialista apressou-se a transformar em parceiros de coligação os mesmos que diabolizara com aquelas palavras tão duras.

 

2

Num parlamento atomizado como nunca, com 19 diferentes agrupamentos políticos agora ali representados, o Executivo de Sánchez só conseguiu ser eleito por maioria simples no segundo escrutínio, graças às abstenções de 18 independentistas republicanos da Catalunha e do País Basco em momentânea trégua com as instituições políticas de Madrid: recebeu 167 votos a favor e 165 contra no hemiciclo. Basta um deputado de uma das forças minoritárias mudar de campo para esta frágil maioria tremer - o que poderá acontecer já na votação do orçamento do Estado para 2020.

A margem pode ser pequena, mas o Executivo é indubitavelmente grande - ao ponto de ser o maior, em número de lugares, de toda a União Europeia. Ao todo, são quatro vice-presidentes, 22 ministros, 31 secretários de Estado e 22 subsecretários de Estado. Contando com Sánchez, somam 80 cadeiras. Prevendo-se que sejam acolitados por outra cifra recorde em Espanha: 182 assessores - o dobro do que havia no Executivo do PP, liderado por Mariano Rajoy.

O jornal El Confidencial fez as contas à factura, que promete ser bem pesada: mais cinco milhões de euros em salários governamentais até ao fim da legislatura.

 

3

Dispondo de uma maioria tão precária, Sánchez actua no entanto como se ostentasse maioria absoluta.

Numa das primeiras medidas, anunciou a nomeação da sua ministra da Justiça cessante, Dolores Delgado, para procuradora-geral do Estado - em óbvia colisão com o princípio da separação de poderes, contrariando não apenas a mais elementar ética política mas também toda a jurisprudência sobre a matéria firmada pelo Tribunal Constitucional espanhol e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. A mesma pessoa que andava há dois meses a fazer campanha eleitoral pelo PSOE, como quinta candidata socialista pelo círculo de Madrid, passa a dirigir um órgão que deve reger-se pela imparcialidade: nada bate certo aqui.

Sem surpresa, a nomeação não tardou a suscitar contestação aberta no Conselho Geral do Poder Judicial, a máxima instância de gestão e disciplina dos magistrados espanhóis, e a crítica frontal da presidente da Associação de Procuradores, que antevê a nova procuradora-geral a receber ordens daquele que até há poucos dias era seu superior hierárquico no Governo.

 

4

Eis uma decisão típica da «casta política» que o actual secretário-geral do Podemos, Pablo Iglesias, denunciava nas pantalhas quando era comentador televisivo. Os tempos mudaram: Iglesias, que se gabava de morar então num modesto apartamento, é hoje o feliz proprietário de uma vivenda com jardim e piscina na serra madrilena. E a sua companheira, Irene Montero, que ele em 2017 escolhera para líder parlamentar do partido, coabita agora com ele também no Governo: Pablo é o vice-presidente para a área social, ela é a titular da pasta da Igualdade. Tudo em família, como nas vetustas casas nobiliárquicas.

Isto demonstra que o elevador social funciona em Espanha para a esquerda radical. Mesmo aquela que, quando a direita governava, não hesitaria em qualificar de nepotismo esta inédita parceria conjugal num Conselho de Ministros do país vizinho. Por muito menos os dirigentes do Podemos fizeram ferozes críticas a Ana Botella, mulher de José María Aznar, ao assumir a presidência da Câmara Municipal de Madrid quando o marido já não liderava o Governo.

 

5

Sánchez - um tacticista puro, só preocupado com as manobras de curto prazo e os exercícios de contorcionismo político que lhe permitam sustentar-se no poder - anda agora de braço dado com os mesmos que, segundo ele, tirariam o sono a 95% dos espanhóis. Não lhe faltarão noites de insónia. Ao empossá-lo como presidente do Executivo, a 8 de Janeiro, o Rei Filipe VI ironizou: «Foi rápido, simples e sem dor. A dor virá depois.»

Palavras que se revelarão proféticas. Vejo esta coligação entre socialistas e comunistas - que inclui, como ministro do Consumo, o coordenador federal da Esquerda Unida, Alberto Garzón, autor do livro Por Qué Soy Comunista  - amparada pela fina flor do nacionalismo separatista e vem-me à memória um verso de Reinaldo Ferreira: «Um voo cego a nada.»

Há países e povos que parecem aprender muito pouco com as lições da História.

O aprendiz de feiticeiro

Pedro Correia, 11.11.19

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1

Pedro Sánchez sai das urnas mais fragilizado do que havia saído há seis meses, nas legislativas espanholas de 28 de Abril. Tendo ascendido ao poder por uma votação parlamentar negativa, em Junho de 2018, foi incapaz de transformar essa soma conjuntural que o impulsionou para o Palácio da Moncloa numa coligação governamental - experiência aliás inédita no país vizinho desde a guerra civil, terminada há 80 anos.

O líder socialista, chefe do Executivo em exercício que continua a governar com o orçamento do seu antecessor, o conservador Mariano Rajoy, apostou tudo em novas eleições legislativas, fazendo os espanhóis regressar às assembleias de voto. Foram cálculos egoístas, que levaram em conta o básico interesse partidário em vez do interesse nacional: Sánchez nunca pretendeu gerar consensos para a formação de uma maioria sólida e contava com trunfos acessórios - a sentença condenatória do Supremo Tribunal sobre os líderes separatistas da Catalunha e a exumação dos restos mortais de Francisco Franco - para crescer em votos e mandatos.

Afinal, nem uma coisa nem outra: este tacticismo de vistas curtas só deu fôlego às franjas mais radicais do independentismo catalão e ao nacionalismo identitário e populista, entrincheirado no Vox.

 

2

Se era difícil governar Espanha em Abril, mais difícil se tornará a partir daqui. Com o seu irresponsável aventureirismo, Sánchez sai agora das urnas com menos 0,7% (baixou para 28%) e menos três deputados no Congresso (tem só 120 em 350). Perdeu a maioria absoluta no Senado, deixou fugir mais de 800 mil eleitores e encontra agora um parlamento muito mais pulverizado e tribalizado. As forças soberanistas e regionalistas, somadas, passam a ter 40 assentos parlamentares - equivalendo ao quarto maior bloco no Congresso de Deputados.

Imediatamente à sua esquerda e à sua direita, encontrará partidos mais debilitados. O Podemos (socialista revolucionário) recua: tem menos sete deputados, menos 2,2% - representa agora só 9,8% dos eleitores - e menos 800 mil votos. O Cidadãos (centrista liberal) sofre uma hecatombe: baixa de 15,9% para 6,8%, vê o grupo parlamentar reduzido de 57 para 10 lugares e perde 2,5 milhões de eleitores nestes seis meses.

Enquanto o Partido Popular progride (cresce de 16,7% para 20,9%, atrai mais 700 mil eleitores, conquista 23 novos lugares no Congresso e outros 24 no Senado, recuperando 33% dos assentos parlamentares em relação a Abril) e o Vox ascende a terceira força política em Espanha, com mais cinco pontos percentuais (tem agora 15,1%), 52 deputados (mais 28) e 3,6 milhões de votos (um milhão acima do que obtivera no anterior escrutínio), tornando-se já o primeiro partido em Múrcia e Ceuta, enquanto regista um crescimento espectacular na chamada "cintura vermelha" de Madrid, que sempre votou à esquerda.

 

3

Mal chegou ao poder, Sánchez apressou-se a rumar à Catalunha para dar face ao líder separatista catalão Quim Torra, como se fosse seu homólogo, e no debate televisivo de há uma semana absteve-se de criticar o dirigente máximo do Vox, Santiago Abascal, na secreta esperança de que este travasse a progressão eleitoral do PP. Abriu a caixa de Pandora e terá de enfrentar as consequências - infelizmente com péssimas expectativas para o país, nosso principal parceiro comercial, numa altura em que a Comissão Europeia antevê um anémico crescimento económico espanhol para 2020: apenas 1,5%.

O jornal digital El Confidencial - o mais lido em Espanha - faz uma síntese perfeita neste título: «Uma Espanha ingovernável, sem centro e com Vox como terceira força». Cada vez mais se confirma: o tabuleiro político de longo prazo não é propício aos aprendizes de feiticeiro.

Fora da caixa (10)

Pedro Correia, 18.09.19

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«Tentámos tudo, mas foi impossível

Pedro Sánchez, presidente em exercício do Governo espanhol

 

Não conheço político mais afortunado que António Costa: as circunstâncias acabam sempre por favorecê-lo. Bafejado pelo ciclo de fortes estímulos introduzidos pelo Banco Central Europeu às economias periféricas durante esta legislatura, pela manutenção em baixa das taxas de juro e do preço do petróleo durante o mesmo período e pela nova estratégia global de Bruxelas, hoje muito mais compreensiva e benevolente para Portugal do que no quadriénio anterior. Aconchegado pelo abraço fraterno de um Presidente da República em quem não votou. Favorecido pela rendição dos partidos à sua esquerda, que da noite para a manhã puseram termo aos clamores contra o pacto de estabilidade e silenciaram os insistentes apelos à «renegociação da dívida», assinando de cruz quatro orçamentos do Estado. Robustecido enfim por uma crise sem precedentes neste século do maior partido à sua direita, onde até já se registou uma cisão.

Ainda há governantes assim, cada vez mais raros nesta era de turbulências: parecem sempre a coberto de ventos incómodos. Faltava a Costa a cerejinha em cima do bolo eleitoral, surgida nas últimas horas com a confirmação da ruptura entre o PSOE de Pedro Sánchez e o Podemos de Pablo Iglesias que levará os espanhóis novamente às urnas, a 10 de Novembro, para escolherem o próximo elenco do Congresso dos Deputados - as quartas eleições legislativas em quatro anos. Nem Sánchez nem o partido hermano do Bloco de Esquerda se entenderam nas negociações subsequentes às legislativas de 28 de Abril  para uma solução governativa estável e coesa. Porque o PS de lá é mais fraco do que o nosso e o BE deles tem maior expressão eleitoral do que o congénere luso. Consequência: Espanha permanece há cinco meses sem governo em plenas funções e com um parlamento que se limita a cumprir serviços mínimos.

Costa aponta a dedo para a bagunça no país vizinho e acena aos eleitores de cá com a palavra mágica: estabilidade. Até isto o ajuda a pedalar para a cobiçada meta da maioria absoluta.

Reafirmo: não conheço político com tanta sorte.

A geringonça e a caranguejola

Pedro Correia, 26.07.19

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1

A caranguejola em Espanha - o equivalente à geringonça em Portugal - funcionou muito bem para destruir, deitando abaixo o anterior Executivo, de Mariano Rajoy. Mas está a revelar-se totamente ineficaz para construir: à segunda votação consecutiva, Pedro Sánchez - o émulo de António Costa em Madrid - continua sem conseguir reunir os votos na Câmara dos Deputados que lhe permitam tomar posse como presidente do Governo. 

Ao contrário de Costa, derrotado por Passos Coelho nas legislativas de 2015, Sánchez venceu a eleição parlamentar de 28 de Abril - após quase 11 meses de Executivo interino, governando com o orçamento de Rajoy e sem se sujeitar ao teste das urnas. Mas foi uma vitória muito insuficiente para governar sem parcerias: não chegou aos 29% dos votos recolhidos nas urnas e apenas conseguiu eleger 123 deputados, num hemiciclo em que são necessários 176 lugares para atingir a maioria absoluta.

Virou-se então para as forças políticas que se associaram ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) no derrube de Rajoy: desde logo o equivalente local do Bloco de Esquerda fundido com as migalhas que restam do quase defunto Partido Comunista sob a sigla Unidas Podemos (UP). O líder desta formação política, Pablo Iglesias, apressou-se a exigir várias pastas ministeriais e uma vice-presidência do Governo - mesmo tendo obtido nas urnas apenas 14,3% dos votos e os seus 42 deputados, somados aos do PSOE, serem insuficientes para formar maioria sólida no parlamento.

 

2

Na monarquia constitucional espanhola não existe tradição de coligações governamentais: as que existiram no país vizinho remontam ao atribulado sistema republicano, na década de 30, e não deixaram saudades. Desde a reintrodução da democracia, há 42 anos, todos os Executivos foram monocolores, à esquerda e à direita. Os minoritários acabaram por vingar com apoios pontuais do Partido Nacionalista Basco ou da antiga Convergência catalã, entretanto dissolvida na deriva independentista. 

Sánchez está hoje prisioneiro da própria armadilha que montou a Rajoy: mostra-se incapaz de transformar a anterior maioria de bloqueio ao Partido Popular em maioria de governo. Após o segundo "não" recebido pelo PSOE no hemiciclo - onde ontem só recolheu 126 votos favoráveis, contra 154 negativos e 66 abstenções - o líder socialista começa a render-se à evidência: pouco mais lhe resta senão enfrentar novas eleições, que não deverão ocorrer antes de Novembro. Quando Espanha se prepara para entrar no quarto mês de Executivo interino, sem orçamento com marca socialista e o parlamento permanece impedido de se constituir em comissões de fiscalização da actividade governativa.

 

3

Nos últimos dias, Sánchez deve ter sentido ciúmes do amigo Costa: a vida é muito mais dura para os socialistas espanhóis. Isto ficou bem evidente, no frustrado debate de investidura travado ontem nas Cortes, quando a dirigente socialista Adriana Lastra - número 2 do PSOE - subiu à tribuna para arrasar os putativos parceiros de esquerda.

«A UP exigiu [para formar coligação] controlar mais de metade da despesa pública e todas as fontes de receita - impostos, inspecção tributária, autoridade da responsabilidade fiscal. Exigiu, praticamente, controlar a economia deste país. Em privado, exigiu quatro das seis áreas de Estado prioritárias nesta legislatura: trabalho, ciência, área energética e área social», declarou no seu duríssimo discurso, sublinhando: «O PSOE necessita de sócios leais. Não necessita de quem se apresenta como guardião das essências da esquerda.»

E, visando directamente Iglesias, disse-lhe: «Não queria um Governo de coligação com o PSOE: queria um Governo exclusivamente à sua medida. Quer gerir um carro sem sequer saber onde está o volante. Esta é a segunda vez que impedirá a Espanha de ter um Governo de esquerda. Curioso progressismo, o seu...»

 

4

Costa e o seu braço direito, Mário Centeno, não têm dificuldades semelhantes às de Sánchez. Pelo contrário: o dócil BE e o cordato PCP passaram uma legislatura a aprovar sucessivos orçamentos sujeitos às regras do pacto de estabilidade imposto por Bruxelas e Berlim. Nunca mais saíram à rua a exigirem a «renegociação da dívida». Assistiram quase sem pestanejar ao mais brutal aumento da carga fiscal de que temos memória, à maior redução do investimento público de que há registo e a um montante de cativações ditadas pelo Ministério das Finanças nunca antes ocorrido em democracia. E nem se escandalizaram pelo facto de - mesmo sem tróica - o Executivo Costa/Centeno ter ultrapassado as metas do défice fixadas pelo Banco Central Europeu. 

Ao contrário dos camaradas espanhóis hoje integrados sob a sigla Unidos Podemos, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa jamais perturbaram a navegação austeritária dos socialistas, justamente premiada pela elevação de Centeno à presidência do Eurogrupo e talvez até ao cargo de director-geral do FMI.

 

5

Costa, ao invés de Sánchez, não precisa de incluir os "parceiros de esquerda" no Governo, à luz da original solução governativa que concebeu em 2015. Ao contrário do colega espanhol, que anda a negociar há três meses sem sucesso, por cá bastaram-lhe três dias e ainda lhe sobraram várias horas desses dias. Obteve quase tudo do BE e do PCP, oferecendo-lhes em troca uma mão cheia de quase nada. Manteve a legislação laboral, manteve o mapa administrativo, manteve o essencial da organização judiciária, manteve as traves mestras da ortodoxia financeira: os que antes gritavam contra tudo isto passaram a pronunciar-se sotto voce, de sorriso ameno e aplauso garantido. 

Se em Outubro lhe apetecer reorganizar o Governo oferecendo duas ou três secretarias de Estado a simpatizantes do Bloco, Costa comprará outros quatro anos de "paz social" à esquerda. Não precisa de mais para uma governação tranquila. Calculo que Sánchez deva invejá-lo. Seria bem diferente se o espanhol pudesse exportar Iglesias para cá, cambiando-o pela doce Catarina.

Anatomia de uma hecatombe (II)

Diogo Noivo, 19.02.19

A fotografia foi-me enviada por vários amigos. Li o texto e rapidamente conclui que era uma manipulação, um fake com alguma graça, mas obviamente falso.

Acontece que, afinal, é verdade: no seu livro de memórias políticas (a primeira vez que uma obra do género é publicada por um Presidente de Governo em exercício de funções), Pedro Sánchez diz ao mundo que a sua primeira decisão como Chefe do Executivo espanhol foi a de mudar o colchão e renovar a pintura do seu novo quarto no Palácio da Moncloa. Quando se juntam, a pobreza de espírito, a falta de noção do ridículo e a soberba redundam sempre num absurdo que provoca vergonha alheia.

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Espanha, Catalunha e a Constituição [Pub]

Diogo Noivo, 13.02.19

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"[C]omo notou o historiador Paul Preston, a Constituição e a transição espanholas resultam de uma aliança entre várias Espanhas: a parte mais progressista e moderada da Espanha franquista; a Espanha das vítimas da ditadura que renunciaram com abnegação e coragem a vinganças; e a terceira parte, composta por uma imensa Espanha, de direita e de esquerda, liberal e conservadora, que ambicionava a normalização dentro da Europa democrática. A manifestação de domingo foi, na sua essência, em defesa deste património comum que uniu vontades díspares, que permitiu ao país uma transição pacífica para a democracia domando os ímpetos de violência que à época se verificavam tanto à esquerda como à direita.

É certo que o rosto institucional dos protestos em Madrid se compôs dos partidos de centro-direita, de direita e de ultraderecha. Mas a causa é perfilhada por gente de vários quadrantes políticos. O filósofo Fernando Savater, o antigo presidente do Governo Felipe González e o ex-vice-presidente Alfonso Guerra são exemplos de personalidades assumidamente de esquerda que se opõem sem matizes à forma como Sánchez tem conduzido a relação com o nacionalismo catalão.

Estas vozes permitem entrever o lado menos noticiado da transformação na cultura política em Espanha. Se os sinais de radicalização à direita são óbvios e patentes na ascensão eleitoral do Vox, facto ao qual os desmandos do nacionalismo catalão não são alheios, também na esquerda espanhola se assiste a uma transformação. Félix Ojevero, intelectual catalão e comentador habitual na imprensa espanhola, traçou a genealogia desta mudança no ensaio La deriva reaccionária de la izquierda (Página Indómita, 2018).

Começando pelo status quo ante, Ojevero lembra que, na sua versão em castelhano, o hino da Internacional celebra “la razón en marcha”, o triunfo da razão e dos valores iluministas como via para a emancipação dos povos. Para o movimento socialista, acrescenta o autor, a comunidade política emerge como um agregado de colectivos unidos sob uma república ilustrada e racionalista, composta por indivíduos diferentes que são livres e iguais na sua condição de cidadãos. Portanto, uma república avessa a superstições religiosas e a argumentos de marginalização racial, cultural e política defendidos por comunidades assentes na identidade e na tradição.

Hoje, para Ovejero, os sentimentos prevalecem porque se atribui qualidade moral à emoção, valiosa por si mesmo e que, por isso, dispensa justificação ulterior. O primado dos sentimentos, aliado ao voluntarismo segundo o qual “estender o braço é o único requisito para satisfazer desejos”, abriu espaço à simpatia por regimes autoritários sob o argumento do respeito cultural, à vigilância totalitária da linguagem, e à defesa de particularismos culturais ou alegadamente étnicos em detrimento da noção de cidadania. Logo, a negação do triunfo da razão."

 

A minha opinião sobre Espanha, no Observador.