(In)Justiça
Pedro Arroja foi em tempos alvo de uma queixa-crime por difamação (ou injúrias, já não recordo bem) por causa de umas coisas relativamente inócuas que disse sobre, salvo erro, o político Rangel. Processo esse que acabará possivelmente no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e com a condenação, tão habitual que já ninguém fica escandalizado, do Estado Português. Quem tiver curiosidade pode encontrar a história no seu blogue Portugal Contemporâneo, enterrada muito lá para trás, que Arroja escreve quase todos os dias, e quase sempre sobre o nosso sistema de Justiça.
Escreve com liberdade e coragem, que é mais do que se pode dizer sobre a quase totalidade dos escreventes, na blogosfera e fora dela. Liberdade porque não se importa de sustentar teses inteiramente originais; e coragem porque diz o que lhe vai na alma e na cabeça sobre as magistraturas, em particular a do ministério público, isto quando os membros deste último não estão habituados a que se lhes contestem as práticas e dispõem de um poder largamente não sindicado.
Não subscrevo boa parte do que diz (acho muito discutível que o Ministério Público seja herdeiro da Inquisição, por exemplo) nem, muito menos, acharia prudente que, como sucede em muitos países, este dependesse hierarquicamente do Governo ou sequer do Procurador-Geral (neste último caso apenas no que toca a decisões concretas nos processos).
Basta lembrarmo-nos do processo Sócrates, o qual, presumivelmente, nunca teria sido indiciado se houvesse dependência do ministério da Justiça.
Porém, alguma coisa terá de ser feita, não rumo a um sistema perfeito – não existe – mas para pôr a Justiça a funcionar de forma minimamente satisfatória. Não é razoável que um primeiro-ministro que esteve preso preventivamente quase um ano, a benefício de não interferir na investigação, ainda não tenha sido julgado seis anos mais tarde; que qualquer pessoa acusada pelo MP veja a sua vida arrasada, como sucedeu com o ex-ministro Miguel Macedo, sem que os magistrados que o acusaram sofram qualquer sanção disciplinar, não obstante terem sido criticados na sentença absolutória; que as taxas de sucesso das acusações sejam ridículas, o que revela ou incompetência ou encarniçamento acusatório; e que Portugal seja com tanta frequência condenado no TEDH, não obstante o Gólgota para lá chegar, o que quer dizer que inúmeras acusações e condenações foram injustas e a injustiça se manteve por falta de recursos e/ou teimosia dos réus.
E não se me venha dizer que estes assuntos são demasiado técnicos e herméticos, e portanto requerem professores de Direito, sindicatos de magistrados (cuja existência não deveria sequer ser permitida, por o Poder Judicial não dever ao mesmo tempo ser independente e comportar-se, nas suas reivindicações, como uma corporação de metalúrgicos ou amanuenses de ministério), os próprios magistrados, funcionários dos tribunais e advogados. Porque toda esta gente é responsável pelo estado calamitoso da Justiça, e passa culpas daqui para ali e, sobretudo, para o legislador. De modo que do que precisamos é de leigos – menos treta e mais sentido prático.
Por hoje, não é bem disto que quero falar, mas da última clamorosa asneira do MP, cuja história está contada, por exemplo, aqui. Uma magistrada de nome Andrea Marques decidiu mandar seguir dois jornalistas (e espiolhar as contas de um deles) no âmbito do processo e-Toupeira (moscambilhas do futebol), e isto porque queria saber quem os informou da detenção do assessor jurídico do Benfica e das suspeitas que incidiam sobre um polícia da PJ, presumido bufo.
Caiu o Carmo e a Trindade, os jornalistas e o seu sindicato abespinharam-se e todo o cão e gato zurziu na magistrada e na sua “chefe”. Esta, a chefe, veio declarar que “é tudo legal, tudo legal. Vocês seguem-nos e isso é possível. Então nós não podemos seguir jornalistas na via pública? Não é nas vossas casas, pois não?"
Fantástico: a magistrada acha que seguir jornalistas por suspeita do “crime” de divulgarem notícias verdadeiras é legítimo. E não se pergunta a si mesma se a liberdade de informação, que é um valor estruturante da democracia, não sairia prejudicada se a divulgação fosse considerada um crime em si sob pretexto de prejudicar a eficácia da investigação. A qual eficácia tem, como deveria ser óbvio, de ser assegurada por quem investiga, e não por quem tem outra profissão, que é a de dar notícias. E nem vale a pena falar da salvaguarda de reputações ofendidas (a outra razão para a existência do segredo de justiça): a detenção já é ofensa bastante, o segredo dela agrava o opróbrio e o risco de abusiva, não o diminui; e o que prejudica os arguidos (ou réus, parece que agora é assim que se designam) é sobretudo a lentidão, não a exposição pública que nas sociedades abertas pertence ao rol dos inconvenientes inevitáveis. Acresce que o que fazem os juízes é público, ao menos na fase de julgamento, maxime na sentença, e podemos razoavelmente presumir que não fiquem particularmente satisfeitos consigo mesmos por ver uma decisão anulada em sede de recurso. No MP os mecanismos de incentivo ao brio profissional talvez existam, mas eu, que sou razoavelmente informado, não os conheço. E deveria porque o instituto serve o povo, e não a si mesmo.
A Procuradoria-Geral abriu um inquérito, que dará em nada: é prata da casa a investigar prata da casa. E, parece, o pano de fundo desta lamentável história é uma guerra entre o MP e a PJ.
É para mim evidente que o MP não deveria investigar coisa alguma, tarefa policial para a qual não se percebe que qualificações ou experiência tem; e que, portanto, se deveria limitar a acusar quando ache que há razões para uma provável condenação, mandar a polícia bugiar no caso contrário e, eventualmente, denunciar inoperâncias de que tenha conhecimento no trabalho policial. Agora, guerras? Uns e outros são empregados da comunidade que lhes paga. E o que lhes garante este diletantismo das querelas intestinas é a impunidade.
Alguma coisa de bom poderia sair daqui. Mas não vai porque, ó deuses, há quem ache que o que a magistrada abusadora fez é perfeitamente razoável.
Qual é o truque do raciocínio? É considerar que o mensageiro e a mensagem são a mesma coisa; e que, se se impedir a publicação de notícias obtidas por ínvios processos, ficaria garantida a impossibilidade da prática do crime de violação do segredo de justiça.
Ficaria, de facto. E ficaria também dificultada a exigência de que certos crimes sejam perseguidos, porque ficava aberta a porta para que as investigações fossem sustadas; desapareceria o incentivo para o MP ter o pouco escrutínio que tem; e ficava a comunicação social reduzida a ser o altifalante das proclamações das autoridades judiciais e policiais.
Não tenho uma excessiva consideração pelas opiniões de Vital Moreira, cujo sol já foi Moscovo e é hoje Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt; e não me impressiona a sua condição de constitucionalista, por partilhar com outros, que todavia têm opiniões opostas, a peremptoriedade e a suficiência. Mas talvez não perdesse nada, já que conhece a Constituição de trás para a frente, em dedicar-se a estudar a jurisprudência do TEDH. Sempre tem a sede na segunda daquelas cidades.