Dignidade
Ontem acompanhei a transmissão das exéquias fúnebres de Jimmy Carter, falecido a 29 de Dezembro, aos 100 anos. Foi uma exemplar lição de dignidade. Estavam presentes todos os sucessores do 39.º presidente norte-americano ainda vivos - de Bill Clinton até ao actual, Joe Biden. Simbolizando ali, na catedral nacional de Washington, 32 anos ininterruptos de vida política norte-americana.
Mas os momentos mais comoventes vieram de duas vozes além-túmulo: do antigo presidente Gerald Ford (falecido em 2006) e do antigo vice-presidente Walter Mondale (falecido em 2021). Mensagens lidas por filhos de ambos: Steven Ford, primeiro, e Ted Mondale, depois.
Há muito tempo que não via Steven, filho mais novo do republicano Gerald Ford. Creio que desde o filme When Harry Met Sally, em que intervém como actor, num papel importante. Mas lembro-me bem dele e sobretudo da sua irmã Susan, que "conheci" quando ela era uma bela adolescente, sob os holofotes mediáticos.
Na catedral estava outra figura que me era familiar: Amy, a única filha do falecido presidente (tem três irmãos mais velhos). Muito fotografada naquela década de 70 por ser a primeira criança que vivia nos aposentos presidenciais da Casa Branca desde a administração John Kennedy: tinha apenas nove anos quando Jimmy foi eleito.
Steven partilhou com o auditório pormenores sobre a sólida amizade que o pai e Carter desenvolveram desde a década de 80, já enterrado o forte antagonismo que os levou a enfrentarem-se na campanha eleitoral de 1976, ganha pelo democrata Carter. As diferenças políticas e as clivagens ideológicas passaram para segundo plano. A tal ponto que combinaram ambos fazer o elogio fúnebre um do outro.
Carter cumpriu, chegou agora a vez de Ford pela voz do filho. Amy, ao ouvi-lo, estava visivelmente comovida
Notável também o depoimento post mortem de Mondale, vice-presidente dos EUA durante o quadriénio Carter e em 1984 candidato democrata à Casa Branca, derrotado por Ronald Reagan. Ao contrário do que tantas vezes acontece na política, designadamente entre gente do mesmo partido, nunca houve notícia do menor desentendimento entre eles. O que ficou bem evidente no testemunho lido por Ted.
Consciente das lacunas e das imperfeições daqueles anos da parceria com Carter à frente do Executivo norte-americano, Mondale pôde apesar disso proclamar com orgulho pela voz do filho: «We told the truth, we obeyed the law and we kept the peace.» Palavras que hoje servem de lema ao prestigiado Centro Carter.
Dignidade.
O patético reverso desta medalha aconteceu ao fim da manhã de hoje, no plenário da Assembleia da República. Quando apenas o grupo parlamentar comunista recusou subscrever um voto de pesar pelo falecimento de Jimmy Carter que o próprio presidente do parlamento propôs.
Gestos como este confirmam como o PCP congelou no tempo. Vive ancorado na Guerra Fria do século XX. Daí o apoio incondicional que devota ao Kremlin: olha hoje para Putin e imagina que é ainda Brejnev quem lá está.