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Delito de Opinião

É Natal. Pás na terra.

Paulo Sousa, 19.12.23

Mortes evitáveis incomodam-nos a todos. Quem de bons sentimentos consegue ficar indiferente perante a morte de inocentes ou, mesmo de patifes, que pudesse ser evitada? Apenas para os mais simplistas o mundo é dividido entre pessoas boas e pessoas más. Eu não vou nessa. Todos somos bons e maus, uns maioritariamente maus e outros o seu contrário. Mas todos bons e maus. Mesmo nos sítios onde só se fazem boas coisas e se reúnem boas pessoas com bons sentimentos, residem maus fígados, recalcamentos quase esquecidos, pequenas arrogâncias disfarçadas e, o pior de tudo, a indiferença. Dante, na sua viagem pelo inferno acompanhado por Virgílio, encontrou no último círculo, naquele onde só existia o breu sem estrelas, onde se ouviam gritos de dor, de raiva e de medo, sobrevoado por nuvens de insectos venenosos, encontrou aqueles que nunca se tinha movido para fazer o bem ou o mal.

No Natal celebramos coisas boas, coisas positivas, celebramos o bem, a renovação, um novo recomeço. O mal não é perdido nem achado no Natal. Todos os o querem esquecer e dele se afastar. No Natal, paz na terra, diz-se.

Apesar disso, as notícias entopem-nos com guerras incómodas. Do alto de mais de setenta inéditos anos de paz na Europa, já são poucos os que se recordam da última guerra. Só gente antiga, e documentários, nos podem contar histórias de guerra na primeira pessoa. Viver em cima de quase oitenta anos de paz, rodeado de dezenas de conflitos, é quase como como aquele tipo que, no seu carro novo, passeia na única rua transitável de um bairro de lata. Incomoda? Pois é claro que incomoda. No bairro da lata, há sempre um rufia maior que por não ter nenhum carro para passear, sente-se aliviado em apedrejar o carro do outro. Qual é o bom e o mau nesta história? Uns dirão que a miséria é a caixa de Petri onde se cultivam os maus sentimentos, a inveja, a ira e até o ódio. Outros dirão que o tipo do carro novo se tivesse noção nunca iria passear para aqueles lados (mesmo que seja naquela rua que ele reside) sujeito a acordar a inveja e os maus fígados dos demais.

Há uma visão que distingue a esquerda da direita pela forma como se considera o ser humano no mundo. A esquerda acha que o humano é essencialmente bom, mas estragado pela sociedade e, pelo contrário, a direita não duvida que todos transportam dentro de si uma dose de maldade e que por isso têm de ser moldados pela sociedade de forma a impedir males maiores. A esquerda aspira por mudar a sociedade e a direita a manter a sua coesão. Em Portugal existe ainda uma visão classista da coisa que leva a que o voto seja condicionado pelos interesses imediatos do eleitor, que assim se preocupa mais com o seu umbigo do que com a sociedade.

É preferível impedir o tipo do carro novo de circular ou o rufia maior de apedrejar o seu carro?

Não procuro aqui dar respostas a esta questão, pois é inegável que a resposta de cada um seja condicionada pelo lado com que mais se identifica. Qual de nós escolheu em que lado da barricada ia nascer? Em que geografia? Com que cor de pele? Com que nível conforto físico ou emocional? Acredito profundamente que o mais razoável é ser tolerante e colaborativo, mas como levar na tromba é aborrecido, o melhor seria mesmo ter umas forças armadas capazes e bem equipadas.

As notícias, dizia, entopem-nos com guerras incómodas. Em todas as que são faladas, existe ali sempre a mácula do tipo do carro novo. Tentam convencê-lo de que tem de expiar o pecado de viver em paz e ser razoavelmente próspero. Quem é que o mandou? Agora tem de se aguentar.

Algumas guerras, porém, não se enquadram na mácula do tipo do carro novo e por isso não aparecem nas notícias. Não cabem na narrativa do ocidente decadente, culpado, provocador e … próspero.

Para além das guerras mais mediáticas em curso, na Ucrânia e Israel, decorrem pelo mundo algumas dezenas de conflitos armados que aqui vou tentar elencar. Espero não deixar nenhum para trás.

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Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 30.01.23

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Hoje é O Dia Escolar da Não-Violência e da Paz

«Esta data foi instituída em 1964, em Espanha, pelo poeta, pedagogo e pacifista maiorquino Llorenç Vidal Vidal. Foi escolhida como forma de assinalar o 15.º aniversário do falecimento do pacifista indiano Mahatma Gandhi. Tratou-se de uma iniciativa pioneira, não-governamental, independente, gratuita e voluntária para popularizar os ensinamentos da “educação não violenta e pacificadora”, absorvidos pelos quadros educacionais em todo o mundo.

Hoje, este dia é comemorado mundialmente, também conhecido pela sigla DENIP, derivada do nome espanhol. O DENIP trabalha para promover uma educação que valorize a não-violência e a paz. 

Neste dia, escolas em diversos países organizam eventos e conferências onde educadores, professores e alunos de todos os níveis são convidados a debater a melhor forma de criar sociedades não violentas, pacíficas e justas, fundadas no respeito universal pelos direitos humanos.»

 

O nascimento é um violento acto de amor, mas não é por isso que os seres humanos se tornam violentos. Como dignos descendentes dos símios, somos uns macaquinhos de imitação. A fala, por exemplo, adquire-se imitando os sons que se ouvem, numa tentativa de os reproduzir. Sendo as crianças esponjas de conhecimento, absorvem tudo o que é bom e também o que é mau. É função dos progenitores ensinarem-lhes a separar o trigo do joio, para que quando interajam com outras crianças haja reciprocidade na convivência. Não se pode nem deve exigir às famílias menos do que isto.

 

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Hoje é O Dia do Croissant

«O famoso pãozinho de massa folhada faz sucesso em muitos países. Feito com recheios doces ou salgados, o croissant tem uma história lendária. Ao contrário do que muitos pensam, não é de origem francesa mas austríaca. Nasceu em 1683, em Viena.

Inicialmente, chamaram-lhe viennoiserie, e só foi conhecido pelos franceses por volta de 1770. Foi a austríaca Maria Antonieta, que viria a ser rainha de França, quem encomendou a iguaria. Croissant, do francês, significa “crescente”, em formato de meia-lua. Durante o cerco de Viena pelos otomanos, um padeiro assou uma massa em forma de meia-lua para simbolizar a bandeira da Turquia e chamou-lhe Croissant [Crescente] para a Paz.

Nas suas primeiras receitas, era um pouco diferente do que conhecemos hoje. Com massa mais pesada e mais densa, semelhante a um pão comum. No início do século XX um padeiro francês decidiu alterar a receita, tornando a massa folhada mais leve e crocante. Daí vem a constante confusão que o croissant é uma invenção gaulesa, mas em França apenas refinaram a receita original dos austríacos.»

 

Parentes afastados dos originais e dos tradicionais, os croissants feitos de farinha integral e com sementes são a melhor maneira de começar o dia junto a uma chávena de café, quente e aromático. Com fiambre, queijo ou doce, são a fundação do meu dia de trabalho e são uma delícia.

(Imagens Google)

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 01.01.23

Votos de um Bom 2023 para toda a tribo delituosa, autores, comentadores, leitores e passantes. Que haja saúde e que alveje a paz.

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Hoje celebra-se O Dia de Ano Novo

«A partir de hoje, feriado em muitos países, começa um novo calendário anual. A história do Ano Novo é antiga. No império romano, a população celebrava este dia em homenagem a Jano, deus das mudanças e transições. Em 46 a.C., Júlio César decretou que a partir desta data seria comemorado o novo ano, estabelecendo o calendário juliano.

Apenas no final do século XVI este dia foi oficializado com a adopção do calendário gregoriano pela Igreja Católica. 

Ano Novo é esperança, renovação e mudança. Todos aspiramos à concretização de sonhos e aspirações diversas. Não faltam neste dia listas de projectos sempre animadas de boas intenções. Em Portugal e em quase todas as partes do globo".

Esperança,  renovação e mudança... Esperança,  sempre, quanto ao restante, se for para melhor e para todos, apoio incondicionalmente a grande aspiração dos povos .

 

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A 1 de Janeiro celebra-se O Dia Mundial da Paz

«A mensagem para a celebração deste Dia Mundial da Paz em 2023 tem como tema "Ninguém pode salvar-se sozinho". Juntos, recomecemos a partir da covid-19 para traçar sendas de paz.

O Papa Francisco convida, na sua mensagem, a “mudar o coração”, no pós-pandemia, apelando ao reforço do “sentido comunitário” e de fraternidade, na humanidade.

“Não podemos continuar a pensar apenas em salvaguardar o espaço dos nossos interesses pessoais ou nacionais, mas devemos repensar-nos à luz do bem-comum, com um sentido comunitário, como um ‘nós’ aberto à fraternidade universal”, indica o Papa

“Não podemos ter em vista apenas a nossa própria protecção, mas é hora de nos comprometermos todos em prol da cura de nossa sociedade e do nosso planeta, criando as bases para um mundo mais justo e pacífico, seriamente empenhado na busca dum bem que seja verdadeiramente comum”, sustenta Francisco.

O Dia Mundial da Paz foi instituído em 1968 por São Paulo VI (1897-1978) e é celebrado no primeiro dia do novo ano com uma mensagem papal.»

Pensar na guerra é apenas pensar na guerra, porque felizmente nenhum de nós sentiu a guerra na pele e desejamos ardentemente que nunca venhamos a sentir. Não há ninguém, que nunca tenha vivido uma guerra, a poder "calcular" o que as pessoas estão a sentir. Creio que todos sentem medo. Não é cobarde ter-se medo, muito pelo contrário. Podemos fazer o quê pela Paz? Nada, senão rezar. Não está nas nossas mãos acabar com este sacrifício de vidas. Podemos ajudar, mas o fim, esse depende da vontade de alguém que nunca foi bom. Talvez o Ano Novo traga uma revelação que lhe ilumine os pensamentos. 

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Hoje é O Dia do Domínio Público 

«No primeiro dia do ano, as obras de autores que morreram há 70 anos perdem os direitos autorais e entram em domínio público para serem distribuídas e partilhadas gratuitamente. As leis variam, mas muitos países os direitos autorais terminam 50 ou 70 anos depois da morte do criador. Em Portugal os direitos autorais caducam só 70 anos após a morte do autor (incluindo os direitos das obras póstumas). 

Livros, filmes, músicas, fotografias, pinturas ou outros produtos com direitos autorais deixam de necessitar de autorização para partilha, saindo da posse dos herdeiros do autor, das editoras ou outros detentores do conteúdo. Estas obras passam a estar acessíveis ao consumo do público em geral, fazendo parte do património cultural comum.»

A Wikipédia tem uma lista de autores cujas obras passam ao domínio público em 2023. Segue o link:

https://en.m.wikipedia.org/wiki/2023_in_public_domain

          (Imagens Google)

Porque é livre como o vento

Pedro Correia, 10.10.22

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Raras vezes o Nobel da Paz foi tão bem atribuído como este ano, marcado pelas atrocidades da Rússia de Putin na Ucrânia, com a cumplicidade do ditador bielorrusso Lukachenko, vassalo do Kremlin.

Um prémio tripartido.

Que distingue um dos mais célebres presos políticos da Bielorrússia, o activista Ales Biliatski, fundador do Centro de Direitos Humanos Viasna, ilegalizado pelo grotesto tirano de Minsk. Detido por defender a instauração da democracia no seu país, Biliatski é um corajoso combatente pela liberdade.

Distingue também o Centro para as Liberdades Civis da Ucrânia, influente no movimento popular que derrubou o corrupto regime pró-russo do ex-presidente Viktor Ianukovitch e mantendo-se na defesa dos direitos humanos no país.

Distingue ainda a prestigiada associação Memorial, fundada em 1989 por Andrei Sakharov (ele próprio galardoado com o Nobel, em 1975) para investigar e tornar públicos os crimes do estalinismo. Perseguida e silenciada pela ditadura de Putin faz agora um ano, comprovando que o actual senhor do Kremlin - antigo oficial do KGB - se comporta como os bolorentos déspotas soviéticos.

Nobel tripartido contra os senhores da guerra, que odeiam arautos da paz, imaginando que podem interditar o pensamento. Mas não podem. Porque é livre como o vento. 

A viagem da Alina em busca da paz

Paulo Sousa, 21.04.22

Alina nasceu e cresceu em Lugansk. Tinha dois anos quando se deu o colapso da URSS e por isso, ela e um quinto dos seus concidadãos residentes, sempre se conheceram como ucranianos. Em casa dos seus pais falava-se russo, mas desde que ela sempre a língua ucraniana na perfeição.

Formou-se em Direito e em 2013 casou-se com o Nikolay que é programador informático. A formação académica dos dois permitiu-lhes um bom emprego e um rendimento regular algo acima da média. Daí até terem uma casa e um carro foi quase um instante, e à frente deles tinham um futuro abundante em planos.

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Foto do casamento de Alina e Nicolay

Tal como Alina, a maioria dos habitantes da região do Donbass sempre usaram o russo como língua principal. Segundo o que me relatou, esse foi apenas o motivo usado por Moscovo para dividir os ucranianos e desencadear a violência que se seguiu.

Na Primavera de 2014 surgiram no Donbass agitadores empunhando armas fornecidas pela Rússia. Começaram a criar distúrbios, a ameaçar a população e rapidamente impuseram as suas regras baseadas apenas na força das armas que exibiam. Ameaçaram toda a gente e impuseram um recolher obrigatório. As detenções arbitrárias foram outra das faces do fim da ordem legal.

Após várias semanas de instabilidade, em Junho a situação tornou-se insustentável. A casa de Alina e de Nikolay foi atingida nos combates e ainda a recomeçaram a reconstruir, mas a evolução dos acontecimentos era tudo menos animadora e acabaram por decidir deixar tudo para trás e procurar o futuro noutras paragens.

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A casa de Alina e Nicolay antes de abandonarem definitivamente Lugansk

Para recomeçar uma nova vida, escolheram Dnipro, cidade que Alina descreve como maravilhosa e onde deu à luz o seu filho Oleg.

Alina em Dnipro1.jpgAlina com o pequeno Oleg em Dnipro. A ponte é visível ao fundo.

Os dois anos de pausa para maternidade levaram a que se fosse afastando da sua carreira na advocacia.

Passado esse período, já em 2018, Alina e de Nikolay voltaram a mudar-se, desta vez para Kyiv onde se juntaram ao resto da família, que assim os poderia ajudar a tomar conta do pequeno Oleg.

Nesta nova base Alina, após vários incentivos de amigos e familiares, juntou um gosto antigo pela confecção de pastelaria e, juntamente com uns amigos de Donbass, abriram uma pastelaria cheia de coloridos cupcakes, macarons, bolos de todos os formatos e feitios.

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A pastelaria localizava-se em Kyiv, perto de uma estação de metro. O sucesso dá muito trabalho e nesta nova fase, já com uma criança para criar, com uma nova casa para pagar e com o negócio exigir-lhe a dedicação que todos os negócios exigem, o esforço que Alina colocou em todas estas tarefas foi enorme. Tudo parecia ganhar um novo caminho.

O local que escolheram para viver ficava nas periferias da capital, em Gostomel. Os últimos acabamentos só ficaram prontos no início do passado mês de Fevereiro.

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O apartamento de Alina e Nicolay no início de Fevereiro de 2022

Os sogros acabaram por ser seus vizinhos uma vez que se mudaram também para Bucha.

Desde o início do inverno passado que as notícias sobre as manobras militares russas ao redor da Ucrânia não auguravam nada bom.

A 24 de Fevereiro Alina, Nikolay e Oleg foram acordados pelo som das explosões. As notícias confirmaram o pior. A Rússia tinha iniciado a invasão à Ucrânia.

A 1 de Março, Alina e o seu filho Oleg, agora com seis anos, deixaram Kyiv e aproximaram-se da fronteira da Roménia. Através de amigos ucranianos que vivem em Portugal, tomou conhecimento da nossa Missão e rapidamente passou a fazer parte da nossa “lista de compras”. No dia 15 de Março entraram na Roménia pela fronteira de Siret e pouco depois passaram a ser hóspedes da nossa caravana.

Nikolay ficou para trás. Enquanto especialista informático foi integrado nas unidades ucranianas de ciberdefesa.

Pelas redes sociais Alina recebe dolorosas actualizações da evolução da situação.

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Exterior dos apartamentos em Bucha onde viviam os sogros de Alina. Oleg brincava nestes escorregas quando os ia visitar.

Após duas semanas passadas nos abrigos do bloco de apartamento, os sogros de Alina conseguiram sair de Bucha, antes mesmo de sofrerem os tormentos dos que ali ficaram e tiveram de enfrentar as tropas russas.

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Estado actual da escola de Oleg em Gostomel.

Alina, ao longo das mensagens que fomos trocando em inglês, disse que esta vai ser a terceira vez que irá recomeçar a desenhar sua vida a partir de uma folha em branco. Perante a destruição do seu país e as baixas sofridas pelo seu povo, o seu recomeço parece ser a coisa mais fácil da vida.

Termina dizendo que a verdade é que os cidadãos da Ucrânia nunca se desentenderam mesmo falando línguas diferentes. Enquando russofona afirma que nunca os falantes de nenhuma das duas línguas oprimiram os demais.

“The russian speaking people was never oppressed in Ukraine, even after 2014. I know it on my own skin. That’s why I’m sure that the language problem is contrived.”

A Alina está em Portugal e já está trabalhar há duas semanas. O Oleg regressou à escola na passada segunda-feira. Desejo-lhes a melhor sorte do mundo.

 

De forma a respeitar a privacidade, os nomes apresentados são fictícios.

Quarenta anos

Maria Dulce Fernandes, 15.02.22

1982 é hoje, quarenta anos depois.

Em quarenta anos viveu-se tanto e aprendeu-se tão pouco. Nada.

Nada mesmo.

E os arrepelos e os encontrões dos que ditam aos desditados continuam, escalando de tom e intenção.

E o mundo observa impávido, mastigando mecanicamente as notícias num sofá perto de si.

Leveza de ser

Maria Dulce Fernandes, 13.11.20

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No próximo Domingo 15 de Novembro, eu e o meu marido comemoramos o que se convencionou chamar “Bodas de Esmeralda": quarenta anos de um casamento feliz, estável, com os altos e baixos normais num relacionamento normal, com o exercício de paciência diário (eu sou signo Leão, ele é Sportinguista ferrenho, eu sou apartidária, ele é PS desde “pequenino”) tão necessário a uma boa e duradoura convivência.
Para trás ficaram as atribulações dos vinte anos, da vida a correr, dos sacrifícios, das crianças para cuidar em horários desencontrados, sufocantes e difíceis. Éramos dois putos com responsabilidades acrescidas, que as levaram sempre muito a sério e as puseram acima de tudo. Qualquer semelhança com os dias de hoje é pura ficção, dado que presentemente a noção de responsabilidade é esbatida e irreal, como se tem vindo a verificar de dia para dia.
Com a utopia dos planos a longo prazo presente, a comemoração pretendida foi sendo consecutivamente adiada, renovada, remodelada, enfim, destroçada, e ficou resumida a um passeio a dois de um só dia, no dia seguinte à efeméride, porque o Domingo é mais uma vez para confinar.
Fizemos um plano que tem Fátima como um dos locais de paragem. Porquê, perguntam-me, tu nem és lá muito católica! Porque sim. Porque me faz sentir bem. Porque me transmite serenidade . Porque sempre me fez chorar sem saber bem a razão. Porque faz bem chorar. Porque para chorar, não é necessário haver uma razão. Não precisamos de molhadas, podemos apenas pensar em paz e sentirmo-nos gratos pela quietude e levidade espiritual.

Está tudo na minha cabeça? É provável, mas também é um excelente indicativo de que a minha cabeça pode não funcionar assim tão mal.

A falta que fazem os Jogos

Cristina Torrão, 25.07.20

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Não fosse a pandemia e ter-se-ia realizado ontem a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio. E dei comigo a pensar que o cancelamento e/ou adiamento de eventos deste tipo podem ser bem mais prejudiciais do que pensamos.

No início do confinamento, ainda houve quem pensasse (eu incluída) que a Humanidade saísse reforçada desta crise. Seríamos levados a reflectir sobre os nossos hábitos e sobre aquilo que realmente queremos para o nosso mundo. Mera ilusão. A falta de contacto social e de convívio, o desespero e a insegurança, têm o efeito contrário, ou seja, a polarização e o radicalismo. Não mudámos nada desde a Idade Média, continuamos a acreditar naqueles que nos prometem fórmulas milagrosas. E continuamos a procurar bodes expiatórios, crendo em teorias da conspiração, como antigamente se acreditou que os judeus eram os culpados pela Peste Negra, pois teriam envenenado as fontes.

Eventos como os Jogos Olímpicos não deixam de ser polémicos, seja por implicarem custos astronómicos, seja por transmitirem uma harmonia mundial fictícia, seja pelos escândalos de doping. Penso, porém, que são responsáveis por um importante efeito psicológico. Em que outra cerimónia vemos quase todos os países do mundo a festejarem juntos? As imagens que nos chegam mostram pessoas de todas as nacionalidades e etnias em celebração e convívio. E nós, os do outro lado do ecrã, também vibramos, quanto mais não seja, quando o nosso próprio país entra no estádio, cheios de expectativa pelos resultados, mal podemos esperar pelas competições. Onde há aqui lugar para pensamentos negativos?

Os vencedores dão a volta ao estádio com a sua bandeira pelas costas e os espectadores seus compatriotas acham-se os melhores do mundo. Mas é uma alegria saudável, até porque é comum os detentores do pódio abraçarem-se, confraternizarem, juntando bandeiras das mais diversas origens. Assim como se vêem vencedores a consolar perdedores. E quantas vezes o estádio vibra com algum/a atleta, seja de que nacionalidade for, perante uma performance desportiva de excepção?

Penso que imagens dessas são importantes, não duvido que têm um efeito psicológico positivo. Certo, os racistas não deixam de o ser. Mas dão menos importância a essa sua característica, até a escondem, porque no fundo, sabem que está errada. É essa a mensagem dos Jogos. A pandemia, por outro lado, faz sobressair o ódio por aquilo que é diferente. Temos medo, queremos distância, centramo-nos na desgraça do nosso país sem ligar aos outros, procuramos bodes expiatórios, veneramos quem confirma certos comportamentos e tendências, que em situação normal, se desaprovam. A vergonha cai.

Também o adiamento do Campeonato Europeu de Futebol masculino para 2021 pode ser mais grave do que pensamos. Mau grado toda a corrupção existente no futebol, este é igualmente um evento que cria uma atmosfera muito especial, apesar das rivalidades. Quem não se lembra do ambiente de excepção (no bom sentido) gerado no nosso país, em 2004? Claro, há hooligans e cenas menos bonitas nos estádios. Também as existem nos Jogos Olímpicos (incluindo um grave atentado em Munique). No cômputo geral, porém, o resultado é francamente positivo. As imagens de eventos desportivos que juntam nações são uma espécie de pausa nos ódios e nos rancores. E pausas dessas fazem muita falta.

 

P.S. O próprio Festival da Eurovisão, odiado por tantos,  é bem mais benéfico para a saúde mental de milhões de pessoas do que se pensa.

Imagine

Alexandre Guerra, 21.09.16

Quando o presidente americano Woodrow Wilson enunciou os seus famosos Catorze Pontos, em 1918, no final da Grande Guerra, tinha como ideal construir uma paz global para o mundo. Rapidamente se percebeu a ingenuidade da sua proposta e Wilson ficaria para a história como um idealista. Hoje é o Dia Internacional da Paz, uma daquelas datas que têm tanto de simbólico como de inócuo. Mas imaginemos que até seria possível...

 

Oração

Patrícia Reis, 08.04.12
Senhor
Não me ajudes hoje
Deixa-me só e triste
Dá-me só o amanhã
A certeza da Tua mão
A voz que chegará a mim

Senhor
Não me ajudes hoje
Não Te digo nada
Não apresento queixas
Amanhã saberás apagá-las e apaziguar-me
Com os outros
Comigo
Contigo

Senhor
Dá-me hoje apenas o teu colo
Sem perguntas nem certezas
Um colo apenas
Um ventre protegido das coisas que batalham
Em mim
De mim
Por mim

Senhor
No teu colo serei egoísta e centrada
Na minha dor de hoje
Amanhã, Senhor
O teu amor terá o poder apagar a dor
E voltarei ao meu caminho

Senhor
Hoje o teu colo
Apenas isso

Amanhã serei melhor