É Natal. Pás na terra.
Mortes evitáveis incomodam-nos a todos. Quem de bons sentimentos consegue ficar indiferente perante a morte de inocentes ou, mesmo de patifes, que pudesse ser evitada? Apenas para os mais simplistas o mundo é dividido entre pessoas boas e pessoas más. Eu não vou nessa. Todos somos bons e maus, uns maioritariamente maus e outros o seu contrário. Mas todos bons e maus. Mesmo nos sítios onde só se fazem boas coisas e se reúnem boas pessoas com bons sentimentos, residem maus fígados, recalcamentos quase esquecidos, pequenas arrogâncias disfarçadas e, o pior de tudo, a indiferença. Dante, na sua viagem pelo inferno acompanhado por Virgílio, encontrou no último círculo, naquele onde só existia o breu sem estrelas, onde se ouviam gritos de dor, de raiva e de medo, sobrevoado por nuvens de insectos venenosos, encontrou aqueles que nunca se tinha movido para fazer o bem ou o mal.
No Natal celebramos coisas boas, coisas positivas, celebramos o bem, a renovação, um novo recomeço. O mal não é perdido nem achado no Natal. Todos os o querem esquecer e dele se afastar. No Natal, paz na terra, diz-se.
Apesar disso, as notícias entopem-nos com guerras incómodas. Do alto de mais de setenta inéditos anos de paz na Europa, já são poucos os que se recordam da última guerra. Só gente antiga, e documentários, nos podem contar histórias de guerra na primeira pessoa. Viver em cima de quase oitenta anos de paz, rodeado de dezenas de conflitos, é quase como como aquele tipo que, no seu carro novo, passeia na única rua transitável de um bairro de lata. Incomoda? Pois é claro que incomoda. No bairro da lata, há sempre um rufia maior que por não ter nenhum carro para passear, sente-se aliviado em apedrejar o carro do outro. Qual é o bom e o mau nesta história? Uns dirão que a miséria é a caixa de Petri onde se cultivam os maus sentimentos, a inveja, a ira e até o ódio. Outros dirão que o tipo do carro novo se tivesse noção nunca iria passear para aqueles lados (mesmo que seja naquela rua que ele reside) sujeito a acordar a inveja e os maus fígados dos demais.
Há uma visão que distingue a esquerda da direita pela forma como se considera o ser humano no mundo. A esquerda acha que o humano é essencialmente bom, mas estragado pela sociedade e, pelo contrário, a direita não duvida que todos transportam dentro de si uma dose de maldade e que por isso têm de ser moldados pela sociedade de forma a impedir males maiores. A esquerda aspira por mudar a sociedade e a direita a manter a sua coesão. Em Portugal existe ainda uma visão classista da coisa que leva a que o voto seja condicionado pelos interesses imediatos do eleitor, que assim se preocupa mais com o seu umbigo do que com a sociedade.
É preferível impedir o tipo do carro novo de circular ou o rufia maior de apedrejar o seu carro?
Não procuro aqui dar respostas a esta questão, pois é inegável que a resposta de cada um seja condicionada pelo lado com que mais se identifica. Qual de nós escolheu em que lado da barricada ia nascer? Em que geografia? Com que cor de pele? Com que nível conforto físico ou emocional? Acredito profundamente que o mais razoável é ser tolerante e colaborativo, mas como levar na tromba é aborrecido, o melhor seria mesmo ter umas forças armadas capazes e bem equipadas.
As notícias, dizia, entopem-nos com guerras incómodas. Em todas as que são faladas, existe ali sempre a mácula do tipo do carro novo. Tentam convencê-lo de que tem de expiar o pecado de viver em paz e ser razoavelmente próspero. Quem é que o mandou? Agora tem de se aguentar.
Algumas guerras, porém, não se enquadram na mácula do tipo do carro novo e por isso não aparecem nas notícias. Não cabem na narrativa do ocidente decadente, culpado, provocador e … próspero.
Para além das guerras mais mediáticas em curso, na Ucrânia e Israel, decorrem pelo mundo algumas dezenas de conflitos armados que aqui vou tentar elencar. Espero não deixar nenhum para trás.