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Delito de Opinião

Está no Governo a fazer o quê?

Pedro Correia, 20.08.22

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Foto: Global Imagens

 

Portugal sofre neste momento uma das maiores catástrofes ambientais de que há memória. Cerca de um terço do Parque Natural da Serra da Estrela - património nacional, reserva ecológica europeia - já foi consumido pelas chamas. Há fortes suspeitas de incúria e de incompetência no combate a esta acção devastadora das chamas, como tem sido reportado na comunicação social. Incluindo o registo de aviões a fazerem descargas de água em locais onde nada ardia.

Mas não só ali. Ontem, registavam-se 95 fogos florestais e agrícolas em todo o País, tendo duplicado para 26% o registo de acções criminosas, segundo o ministro da Administração Interna. A linha ferroviária do Norte foi encerrada quando as chamas já ameaçavam as carruagens, como ficou registado em vídeo por passageiros.

 

Neste quadro, potencialmente agravado pela perspectiva de subida das temperaturas, o que fez o Governo? Esperou por esta sexta-feira para anunciar que no domingo Portugal entrará em «situação de alerta».

Porquê tão lenta reacção?

Porquê este absurdo hiato de 48 horas?

Ninguém sabe explicar.

Muito menos a secretária de Estado da Protecção Civil, Patrícia Gaspar, que ontem à noite compareceu sorridente nos estúdios da SIC para uma entrevista em que se revelou incapaz de responder às perguntas feitas pelo jornalista Rodrigo Pratas.

«Uma situação deste género foi de alguma forma trágica», disse esta cultora de eufemismos, chamando «ocorrência» à destruição florestal em curso na Serra da Estrela. Enquanto, confrontada com sucessivas questões concretas do seu pelouro, ia balbuciando: «Não tenho informação.»

 

Neste trágico Verão, já arderam 92 mil hectares no nosso país. Portugal é hoje o terceiro Estado da União Europeia com mais área queimada em números absolutos, sendo superado apenas por Espanha e Roménia, países com maior superfície territorial. 

Perante isto, o que disse a secretária de Estado, que anteriormente foi número dois da Protecção Civil a nível nacional? 

Algo espantoso, depois de consultar um papel. Afirmou ela: «Os algoritmos dizem que a área ardida que devíamos ter devia ser 30% superior.»

Patrícia Gaspar considera portanto, com base na esforçada consulta à sua cábula, que ainda ardeu pouco. Apenas 70% do território que estaria previsto no tal canhenho algorítmico foi consumido pelas chamas.

Em vez de nos indignarmos, devíamos até comemorar. 

 

Oiço estes dislates e uma vez mais me interrogo: esta gente está no Governo a fazer o quê?

Os mesmos

Pedro Correia, 14.09.21

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Os mesmos que se atiram com fúria ao Padrão dos Descobrimentos concebidos pelo arquitecto Cottinelli Telmo, um dos grandes nomes do modernismo português, e se encarniçam contra sete quadros existentes no salão nobre da Assembleia da República, concordam certamente que as solenes exéquias de um Chefe do Estado, como agora aconteceu com Jorge Sampaio, ocorram no magnífico claustro do Mosteiro dos Jerónimos, mandado edificar por D. Manuel I em 1496 em homenagem à Virgem de Belém para abençoar os navegadores portugueses na façanha dos Descobrimentos. 

Por um dia, anteontem, os ferozes arrasadores de símbolos históricos deram-nos tréguas. Ainda bem.

Blogue da semana

Pedro Correia, 11.07.21

É uma prova viva de que os blogues são úteis e necessários. Também como instrumentos de cidadania. A denúncia que este tornou pública sobre o assalto ao histórico Palácio Burnay, comprovando que o Estado é incapaz de salvaguardar os edifícios à sua guarda, foi um autêntico serviço público. Que a imprensatornou notícia por ter lido aqui em primeira mão.

Daí a minha escolha: Cidadania Lx é o nosso blogue da semana.

Quem protege Sintra?

Alexandre Guerra, 02.03.20

Sintra celebra este ano o 25º aniversário da atribuição do estatuto de Património Mundial da UNESCO. Uma classificação que se deveu à importância da “paisagem cultural” da vila histórica e da sua serra, com toda a “mancha verde” e monumentos que por lá se escondem. “Devo apenas observar que a vila de Cintra na Estremadura, é talvez a mais bela do mundo”, disse um dia Lord Byron numa carta redigida a um amigo durante a sua estada em Sintra, em Julho de 1809. Para quem conhece Sintra, a sua Serra e todos os seus recantos, não pode ver nestas palavras qualquer exagero. Por isso, as suas especificidades culturais e naturais foram reconhecidas pela UNESCO no final do século XX.

Mas o que neste ano deveria ser um momento de festa e de celebração para qualquer munícipe, dá lugar à indignação e à revolta perante as atrocidades que se têm cometido nos últimos anos na gestão do património da Vila e da Serra. As responsabilidades maiores só podem ser atribuídas à Câmara Municipal de Sintra liderada por Basílio Horta, um político desprovido de qualquer sensibilidade ambiental e cultural. Mas, sejamos francos, historicamente, Sintra foi sempre muito mal tratada pelos seus Executivos camarários. Não estamos a falar apenas da área circunscrita ao centro histórico e à Serra, já que o Concelho de Sintra era na sua grande maioria composto por uma vasta área arborizada e rural, onde se incluíam quintas de enorme valor cultural e histórico, que se prolongava até ao limite do Concelho com a Amadora. Tudo isso foi delapidado brutalmente nos últimos 30 anos. Ao mesmo tempo que se urbanizava de forma selvagem e desgovernada, a Vila de Sintra e a sua Serra foram sendo cercadas pelo betão, com custos ambientais e culturais irreparáveis.  

Verdade seja dita que nunca houve um edil sintrense com “visão” para perceber a pérola que tinha em mãos. Pelo contrário, não só não perceberam, como os vários dirigentes locais que foram passando por Sintra ao longo dos anos não se coibiram de validar projectos e construções que atentavam de morte o património cultural e natural do Concelho. A lista das atrocidades é imensa e os seus responsáveis políticos vão da esquerda à direita, com a conivência de técnicos e entidades que, supostamente, teriam como função primeira acautelar os interesses do município.

Numa lógica de responsabilidades partilhadas, a empresa Parques de Sintra-Monte da Lua não pode ser ilibada. Se é verdade que, como disse Paulo Ferrero num artigo recente no PÚBLICO, “o seu trabalho tem sido bastante bom no que toca ao património edificado (o arbóreo já será outra discussão), que tem restaurado, divulgado e reaberto ao público”, é igualmente evidente que toda a sua política de gestão dos últimos anos tem entrado num desvario completo, focando-se exclusivamente na obtenção de lucro através das receitas das entradas, comprometendo zonas naturais de valor inegável (basta ver o site daquela empresa e facilmente se percebe que há uma única orientação para a vertente comercial).

O caso da Peninha, notado há dias, é o mais recente “negócio”. As máquinas já estão a operar na clareira de terra que dá acesso ao santuário. Pelo que se percebe das obras, a ideia é empedrar aquele espaço natural para que turistas ali possam aceder sem que sejam incomodados pelo pó. Daí à colocação de um quiosque, passando pela cobrança de entradas até ao miradouro, será  um instante. E com isso virão as inevitáveis hordas de gente. Dirão os responsáveis daquela empresa que tudo é feito em nome do progresso, para ficar “arranjadinho” e “bonitinho” e com isso “atrair” mais turistas, logo, mais receitas. É uma lógica que parece fazer sentido na óptica dos seus ideólogos, mas o elementar bom senso de qualquer munícipe ou amante de natureza vê neste gesto um acto contraproducente, uma autêntica profanação de uma zona que lá ia resistindo à massificação de carros e pessoas, onde conservava alguma autenticidade natural. Qual é então a visão de sustentabilidade a médio a longa prazo por parte da empresa Parques de Sintra-Monte da Lua? A resposta a esta pergunta é óbvia para qualquer sintrense ou verdadeiro entusiasta da natureza no seu estado mais autêntico: não existe.

Os responsáveis que lideram estas entidades assim como os desígnios camarários em Sintra têm uma certa dificuldade em compreender que nem tudo precisa do tal progresso nem do facilitismo no acesso ao turismo de massas. Cada vez mais, em matéria de sustentabilidade ambiental e social, o progresso passa pela preservação e conservação e nada mais. Nem sempre tem que haver exploração comercial ou turística. É aí que reside o segredo. Há que encontrar um equilíbrio entre as necessidades económicas e sociais de um Concelho e a exploração dos seus recursos. Mas em Sintra esse equação nunca foi feita e a dinâmica de gestão (ou ausência dela) foi de desbaste acentuado do tecido patrimonial, natural e social (a vila histórica de Sintra tem cada de vez menos habitantes).

Nos anos mais recentes – não escapando infelizmente a uma tendência generalizada –, a revolução do turismo na Vila de Sintra foi avassaladora, com poucos ganhos substanciais para a comunidade. Pelo contrário. A Vila e a Serra de Sintra têm vindo a deteriorar-se naquilo que é a sua essência. Transformou-se num circo de turismo massificado, um destino caótico em moldes terceiro-mundistas, com os operadores turísticos sedentos de “apanhar” logo pela manhã as centenas de turistas que são despejados pelos comboios que vêm do Rossio até à estação de Sintra. É um espectáculo diário deplorável e que Paulo Ferrero também alude no seu artigo.

Tudo isto vai acontecendo com a conivência do poder político local, onde a hipocrisia e a falta de sensibilidade ambiental imperam. Sintra e a sua Serra deveriam ser um santuário “verde” a proteger a todo o custo. Porém, são uma “presa” fácil das irresponsabilidades e incompetências de quem gere a coisa pública. Como é possível que as coisas tenham chegado a este ponto? Como é que um presidente de Câmara pode apregoar princípios da sustentabilidade ambiental e depois conviver pacificamente com práticas que merecem cada vez mais o repúdio de qualquer cidadão minimamente consciente? Como é possível que ainda se permita a circulação de tuk tuks a gasolina no meio da Vila e da Serra, quando até em Lisboa já há muito que deixaram operar (só eléctricos)? São viaturas altamente poluentes e ruidosas que circulam livremente perante a indiferença de Basílio Horta.

Como é possível que Basílio Horta promova alterações de trânsito, sem qualquer nexo, ignorando a Polícia Municipal e a GNR? Alterações que vieram colocar uma pressão de tráfego nunca vista na zona que vai da “Rampa da Pena” aos Capuchos. Basta ver carros estacionados ao longo dessa estrada, muitas vezes obstruindo a entrada de estradões de terra, numa zona que até há bem pouco tempo gozava de uma certa tranquilidade. As mudanças de Basílio Horta tornaram os “quatro caminhos” dos Capuchos mais movimentados que muitos cruzamentos em Lisboa.

Como é possível que não haja a coragem para reduzir ao máximo todo o trânsito na Serra e na Vila, criando-se mais parques nas zonas circundantes da Portela e apostando nos “shuttles” pequenos e médios? Como é possível permitir a circulação de viaturas turísticas de dois andares nas estreitas estradas da Serra? Como é possível que a Câmara de Sintra ainda permita atentados como o da Casa da Gandarinha?

Basílio Horta é um líder obsoleto nas ideias, nas propostas, nas abordagens e nos paradigmas. É de outro tempo, onde tudo valia, sem que houvesse qualquer tipo de preocupação ou sensibilidade com a comunidade social e natural que nos rodeia. Mas o pior é que os Parques de Sintra-Monte da Lua parecem acompanhar alguns destes males, porque não parecem ter percebido que o factor da sustentabilidade não está na massificação do turismo, mas sim na preservação da autenticidade do património natural da Vila e da Serra. Acima de tudo, Basílio Horta e os Parques de Sintra-Monte da Lua deviam estar focados na defesa dos interesses do território e dos seus munícipes. E isso, seguramente, já se precebeu que não estão.

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As alterações de trânsito da Câmara de Sintra acabaram com a tranquilidade no cruzamento dos Capuchos, bem no coração da Serra.

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Além do trânsito constante, o cruzamento dos Capuchos transformou-se num parque de estacionamento e num "posto" turístico caótico.

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Entre o "verde" da Serra, a terra ainda resiste no caminho de acesso à Peninha, mas por pouco tempo.

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As máquinas já trabalham na clareira de acesso à Peninha, para ficar tudo "arranjadinho" de modo a facilitar os passeios dos turistas.

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Lá em cima na Peninha, ainda há tranquilidade, mas o piso já foi cimentado. E muito mais virá.

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Na estrada que liga a "Rampa da Pena" aos Capuchos, calma até há bem pouco tempo, o caos instalou-se.

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Os carros vão parando ao longo da estrada sem qualquer tipo de preocupação.

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Sem qualquer preocupação, os carros bloqueiam acessos a estradões, impossibilitando a passagem de uma viatura de bombeiros.

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Uma zona da Serra sempre tranquila deu agora lugar ao turismo de massas.

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Carros e mais carros no meio da Serra, porque não há visão para limitar a sua circulação.

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Este cenário de "invasão" automobilística é recente. É consequência da política desastrosa da Câmara de Sintra.

 

Nota: As fotografias foram tiradas no passado sábado, 29 de Fevereiro, de manhã.

A capela manuelina na Ilha de Moçambique

jpt, 13.06.19

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Este é o actual estado da Capela da Nossa Senhora do Baluarte na Ilha de Moçambique, devastada pelo ciclone que assolou a região no final de Abril. A capela é mais do que simbólica: está na extremidade da Ilha, é a primeira igreja cristã no Índico austral (construída cerca de 1522), é o único edifício manuelino em toda a região (e presumo que em toda a África austral).

Não creio que o Estado moçambicano possa, na actualidade, repará-la. Muitos (portugueses e até moçambicanos) dirão que por incúria. Não me parece: as urgências e as emergências são gigantescas e os recursos muito escassos. Muitos (portugueses) dirão que é abandono de agora. Falso: a história da Ilha, pelo menos de XVIII para a frente, é a das constantes reclamações do estado arruinado das edificações - crises económicas, abalos na administração, guerras. E, acima de tudo, as intempéries. Pois ali a manutenção dos edifícios é trabalhosa e custosa, tanto devido às razões climáticas como ao particular material utilizado nas construções - de facto, na Ilha a ideia de arquitectura perene tem que ser bem relativizada. Lembro os opinadores apressados que em finais de 1960s se procedia à "reabilitação da Ilha", dado o estado deficitário em que já se integrava, piorado com a crise económica devido à abertura do porto de Nacala na década anterior.

Em 1996/1997 esta capela estava em muito mau estado, tal como toda a "cidade de pedra-e-cal". A Ilha havia sido proclamada Património Mundial pela UNESCO e houve alguma atenção sobre os edifícios. Em Portugal, a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses - então comissariada por António Manuel Hespanha, um grande intelectual e que fez um belíssimo trabalho, na sequência do que havia feito Vasco Graça Moura, ainda que com um perfil algo diferente de intervenção - promoveu a reabilitação desta capela, devido ao seu estatuto histórico e ao seu simbolismo. A intervenção não foi muito cara (o edifício é pequeno e, julgo, não particularmente complexo) e correu muito bem, sob direcção do arquitecto José Forjaz e com utilização suficiente de mão-de-obra local.

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Eu sei que os tempos são diferentes, que há menos disponibilidades financeiras no Estado português. E que nas instituições culturais não abundam homens da densidade de Graça Moura ou António Hespanha (ou, noutro plano, Lucas Pires ou Carrilho), que possam sensibilizar-se, de imediato, para os efeitos efectivamente culturais, e como tal socioeconómicos, de uma intervenção num edifício destes. Mas ainda assim espero que haja nas autoridades portuguesas pessoas com a suficiente atenção para Moçambique e para a questão do património cultural tangível para disponibilizar a ajuda necessária para uma intervenção nesta capela, de importância única. E que o Estado moçambicano possa e queira acolher esse contributo.

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Assombro e dor

Pedro Correia, 16.04.19

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A sensação é de enorme consternação, de profunda tristeza. Direi mais: é de luto. Hoje, como centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, sinto-me enlutado. Pela perda irreparável da catedral das catedrais. Notre-Dame, que sobreviveu incólume a incontáveis guerras, escapou à carnificina de dois conflitos mundiais e em 1944 se manteve imune à desvairada ordem de Hitler, que queria ver Paris a arder, acaba de ser praticamente reduzida a escombros. No início da Semana Santa, num dia em que o Presidente francês anunciara um discurso à nação. 

Ver as imagens das chamas a devorarem o edifício medieval, jóia absoluta da arquitectura gótica, marco da espiritualidade universal, símbolo supremo da cultura cristã que é também matriz europeia, dilacera todos quantos algum dia ali haviam entrado - e fomos muitos, pois Notre-Dame recebia cerca de 13 milhões de visitantes por ano, gente de todas as crenças e todas as latitudes.

O mundo em que vivemos é um mundo em contínua perda de referências, que padece de uma confrangedora falta de memória. O pavoroso incêndio que destruiu Notre-Dame acaba de nos cortar mais um emblemático vínculo às gerações precedentes. Tudo se torna cada vez mais precário e descartável. Assente num passado sem vestígios, o futuro já nasce mutilado.

Notre-Dame, cujos alicerces são contemporâneos da fundação de Portugal, demorou quase dois séculos a ser erguida. Para a destruir bastaram duas horas. E nós a assistirmos, num silêncio impotente e magoado, feito de assombro e dor.

Paris já está a arder.

Luís Menezes Leitão, 15.04.19

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A destruição de Notre Dame por um violento incêndio representa o dobre a finados da civilização ocidental. O que nem Hitler conseguiu fazer, é agora conseguido em pleno séc. XXI. Tenha sido isto o resultado de um acto terrorista ou da simples negligência daqueles a quem competia cuidar do monumento, neste momento não interessa. Uma das maiores criações do espírito humano, que inspirou o génio de Victor Hugo, desaparece hoje. É um dia triste para todos aqueles que lutam pela nossa civilização e pela preservação da memória da Europa.

Depois de arrumada a cozinha do Panteão

Inês Pedrosa, 20.11.17

Não alinho em morais públicas que não sirvam toda a gente de igual forma; acresce que, certamente para minorar outros défices, tenho uma memória maior do que a de uma dúzia de robots Sofia, até porque pude desenvolvê-la, já que, por sorte, não nasci na Arábia Saudita. Assim, estranhei os brados e a indignação geral (a que prestamente se juntou o senhor primeiro-Ministro) quanto ao fruste jantar no Panteão Nacional, porque ainda me recordava bem de ter visto em vários canais televisivos hordas de crianças aos pulos, à meia-noite, no referido Panteão, então transformado em laboratório de feitiçarias, por mor do lançamento de um qualquer volume da saga Harry Potter, nos idos de 2002. Soube, depois, que naquele sítio se realizaram entretanto diversos repastos, um dos quais com o patrocínio da Câmara Municipal de Lisboa e da EGEAC, empresa municipal de cultura, num período em que o agora indignado primeiro-Ministro presidia aos destinos municipais e em que a EGEAC era presidida pelo actual secretário de Estado da Cultura. 

Em muitos países europeus (não sei mesmo se em todos), o aluguer de monumentos para banquetes, festas de empresas, filmagens, casamentos ou baptizados, é prática comum e devidamente regulamentada. Evidentemente que as regulamentações deixam sempre espaço à interpretação individual e à decisão dos responsáveis pelos edifícios patrimoniais. Por exemplo: o convento de Cristo, em Tomar, tem uma tabela de preços para filmagens (e a fita mediática que se fez, há meses, por causa dos danos, afinal inexistentes, que ali teria causado um filme de Terry Gilliam, foi também épica). Mas parece-me óbvio que a proposta de realização de um filme pornográfico naquele cenário seja rejeitada. Ou de um manifesto partidário. No Panteão, o problema prender-se-ia, segundo os indignados, com o facto de se tratar de um monumento funerário: jantar junto dos Grandes Mortos, ao que parece, é ofendê-los. Sucede que nos Jerónimos também estão sepultadas Grandes Figuras. E, a bem dizer, em toda a cidade, por toda a parte, caminhamos sobre túmulos - de mortos tão antigos e anónimos que, felizmente, já não contam para a Honra Nacional, senão morríamos todos à fome. 

Há quem condene, pura e simplesmente, toda e qualquer rentabilização do património. Pergunto: então, como fazemos? Aumentamos os impostos? Onde é que se vai buscar o dinheiro? A cultura portuguesa é muito resistente ao mecenato - precisamente porque temos uma cultura empresarial muito pouco culta, o que aliás se reflecte desde logo na baixa produtividade do país. Deveria, em meu entender, criar-se um sistema de apoio ao mecenato cultural que realmente funcionasse, isto é, que incentivasse as empresas a investir no apoio às artes e na preservação do património de uma forma eficaz e, sobretudo, desburocratizada. Porém, para animar os responsáveis de museus e monumentos a procurar mecenas, seria necessário que os patrocínios granjeados fossem aplicados no equipamento cultural que trabalhou para os alcançar. Não é isso o que acontece: os apoios são canalizados para a Direcção Geral do Património Cultural, que depois os reparte, segundo os seus critérios. Enquanto não houver reconhecimento pelo trabalho e pelo mérito individuais não haverá estímulo nem responsabilização dos dirigentes. Temos uma Função Pública recheada de chefes que não mandam nada - e, se forem espertos, procurarão mesmo nunca decidir coisíssima nenhuma, porque quem nada faz nunca tem problemas e, de diuturnidade em diuturnidade, chega à reforma remediada e tranquilamente. É nisto que ainda estamos.

A longa madrugada do ajuste

Tiago Mota Saraiva, 04.10.16

A obra de conclusão do Palácio Nacional da Ajuda mereceu capa de jornais como raramente os projectos de arquitectura merecem. Além das imagens e do anúncio da realização da obra, todos os textos destacavam a autoria do projecto de um arquitecto da Direcção Geral do Património Cultural.
Dediquei-me, nos dias posteriores, a aplaudir a resiliência desta equipa de projecto sobrevivente à depauperação de técnicos e gabinetes de projecto a que o Estado foi sendo sujeito ao longo dos anos. Mas estava a ser enganado. Não havia equipa. Se parece ser verdade que quem assina o projecto é um técnico da DGPC, a própria instituição, alegando “falta de recursos internos”, contratou, por ajuste directo, uma empresa privada para “apoio na elaboração do projecto de arquitectura”. Ou seja, fugiu ao concurso público de concepção a que a lei obriga.
Infelizmente, a fuga ao concurso é a regra e perante o insuficiente escrutínio público e do Tribunal de Contas só nos resta o escárnio sobre o anedotário. Alguém ouviu falar das 20 contratações entre estudos, projectos e levantamentos para o Mercado do Bolhão, fraccionadas de modo a não atingir os 75 mil euros (limite para o ajuste directo), superiores em valor somado a 850 mil euros? Alguém foi confirmar se o projecto do campus da Universidade Nova, tão elogiado pelo Presidente da República, foi a concurso público como se escreve?
Até 10 de Outubro está para discussão pública uma nova revisão do Código da Contratação Pública. Apesar desta alteração ir, a meu ver, no bom sentido - assim que expurgada de alguns disparates como a possibilidade de haver júris de um indivíduo - não irá mexer no que é estrutural. No que faz com que, a partir de 2008, o concurso público de concepção tenha passado a ser raríssimo. Como não creio que a maioria dos decisores públicos sejam corruptos ou tenham arquitectos de eleição a quem queiram adjudicar trabalhos, entendo que o problema estrutural está no facto de ser muito mais simples e rápido fazer um ajuste directo a uma empresa do que padecer dos longos e intrincados processos de concursamento. A chave do problema está na inversão deste paradigma. Importa tornar mais complexa e fiscalizável a decisão de contratar sem concurso e mais céleres todos os procedimentos de concursamento.

 

(publicado no jornal i)

O Estado a que isto chegou

Pedro Correia, 02.08.16

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 Imagem: blogue Ruas de Lisboa com Alguma História

 

Num país pobre, damo-nos ao luxo de deitar para o lixo um equipamento escolar como a Escola Secundária Afonso Domingues, alvo de "obras substanciais de melhoria e requalificação" em 2009, um ano depois de encerrar por ordem do Ministério da Educação, alegando-se expropriação do terreno para a edificação da terceira travessia sobre o Tejo em Lisboa. Que não avançou, por absoluta falta de orçamento, como todos sabemos.

Ficou a falida capital sem nova ponte e Marvila perdeu a escola, onde o nosso Nobel José Saramago foi aluno entre 1935 e 1940.

A escola está a saque, alvo de constante e crescente vandalismo, como documenta o sítio Evasão, cumprindo uma verdadeira missão de serviço público. O Estado, proprietário do espaço, encolhe os ombros. A Câmara Municipal de Lisboa não quer saber.

O arquitecto que concebeu o Mosteiro da Batalha não merecia isto.

Digam-me que hoje é o 1º de Abril, por favor.

Ana Vidal, 09.06.16

Acordo fechado entre a Visabeira e o Estado português tem a duração de 50 anos

 

"O grupo Visabeira vai investir 15 milhões de euros para instalar um hotel no Mosteiro de Alcobaça. O grupo português vai pagar ao Estado uma renda anual de 5 mil euros, mais IVA, noticia o Diário Notícias. A Visabeira assinou ontem com a Direção-Geral do Património Cultural um contrato de concessão do Claustro do Rachadouro do Mosteiro de Alcobaça, válido por 50 anos. O acordo vai permitir ao grupo a construção de um hotel de cinco estrelas, de três pisos, 81 quartos e nove suites, SPA, ginásio, para além de espaços para organização de congressos e eventos. O espaço foi atribuído depois de um concurso público internacional. A abertura do hotel está prevista para 2019."

 

Algumas das mil perguntas que esta notícia me sugere:

É esta a tão apregoada superioridade da esquerda em relação à cultura? Ou será que a cultura não inclui o património?

Para que serve uma Direção-Geral do Património Cultural, para trocar conventos por hotéis?

E a renda de 5.000 € anuais, esse valor astronómico, é para resolver o problema do défice?

Três pisos num claustro? Como, deitando-o abaixo?

O que se seguirá, uma discoteca nos Jerónimos? Um food hall na Torre de Belém?

E a Unesco, não tem uma palavra a dizer já que o Mosteiro está classificado como Património da Humanidade?

 

(é que nem consigo pôr uma tag nesta aberração)

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Uma péssima decisão!

Helena Sacadura Cabral, 12.04.15

IFP.jpegO Instituto Franco Português, o IFP, corre o risco de fechar. É esta decisão que está em causa, apesar de ser apresentada como sendo apenas de uma mudança de instalações da Av. Luís Bívar, no centro da cidade, para a Embaixada Francesa em Santos. O processo em curso representa o desmembramento do excelente património cultural material e simbólico, vivo e actuante daquele Instituto 

Intenção semelhante foi bloqueada em Berlim graças ao vasto movimento de cidadãos que foi criado para o efeito.

A petição “Não ao fecho do Institut Français au Portugal”, lançada por personalidades de vários sectores socioculturais, ultrapassou cinco mil assinaturas prossegue e pode ser assinada em:

                

                          https://www.change.org/p/sauvonsifp

 

Ajudem a evitar que uma tal decisão vá por diante e assinem a referida petição. Eu já assinei. Trata-se de um património cultural que deve ser salvaguardado e que só um movimento de massa pode levar a que seja mantido.

cante quem for de lá

José Navarro de Andrade, 28.11.14

Os deserdados cantam. Os negros das charnecas do Mississippi, os ciganos andaluzes, os ganhões do Alentejo – e outros, noutros lugares, haverá – cantam para levantarem a voz ao céu e tirarem-se da terra, num instante de liberdade. O canto trabalha como as vacinas: cantam-se os lamentos para aliviar a tristeza e espantá-la para bem longe. Cantar é primitivo, é anterior aos sentimentos e aos sentidos, não se canta por revolta ou submissão, canta-se para desafiar a sorte e o destino. Por isso o cante do Alentejo é irredutível e impermeável ao verniz da cultura; o resto da humanidade, nós, pode escutá-lo - que eles são generosos e partilham-no - mas só os alentejanos é que o sabem.

Santo António de Macau

Sérgio de Almeida Correia, 13.06.14

"Reza a tradição ter sido S. António alistado em Macau como soldado em 1623, ano em que veio de Goa incorporado com mais cem soldados portugueses no primeiro presídio militar, que acompanhou o primeiro governador, D. Francisco de Mascarenhas.

S. António como soldado, aqui começou por receber o seu soldo de seis reis por mês, mas em 9 de Maio de 1780 foi-lhe suspenso o soldo, já que o Senado recebeu instruções para que cada fortaleza tivesse uma guarnição real de vinte soldados. O padre Manuel Teixeira refere: "Por coincidência começou a cidade a sofrer contínuos desastres que o povo ingénuo logo atribuiu ao desacato feito ao Santo, que fora substituído por um soldado de carne e osso."Por tal razão, a 17 de Setembro de 1783, o governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria solicitou ao Senado a renovação da matrícula de Santo António. E Luís Gonzaga Gomes complementa: "a 27 de Dezembro de 1783, tendo há três anos experimentado a cidade contínuas infelicidades atribuídas ao facto de a vereação passada ter dado baixa de soldo ao glorioso St.º António, que o recebia, anualmente, como soldado, desde que houve presídio militar nesta cidade, por motivo de cada guarnição de fortaleza ter sido reduzida, em 9 de Maio de 1780, a vinte soldados efectivos, o Senado, reconhecendo a necessidade da protecção dese Santo, resolveu dar-lhe outra vez alta, com o vencimento do soldo de capitão, e com o título de Capitão da Cidade."

Não só foi promovido a capitão, com um ordenado de cinco pardaus, mas o Senado mandou-lhe pagar os salários atrasados. O que veio a acontecer a 12 de Junho de 1784, quando o Senado pagou o soldo dos três anos e um mês que estava em falta como soldado, 93 taéis, 7 mazes e 5 codrins e como capitão recebeu no mesmo dia 49 taéis, 1 maz e 4 caixas de soldos vencidos em 7 meses e 26 dias.

Nos anos 50 do século XX, o soldo do capitão St.º António era de seis mil patacas por ano. Numa publicação de 1956 encontra-se o seguinte: "No dia 16 de Junho, à tarde, acomissão administrativa do Leal Senado fez a entrega de $ 120 000 correspondente ao soldo anual vencido pelo capitão desta cidade, Santo António de Lisboa. A importância reverte a favor do cofre do "Pão dos Pobres".

St.º António foi em Macau soldado entre 1623 e 1783 e capitão entre 1783 e 1973, tendo assim prestado serviço militar nesta cidade durante 350 anos."- José Simões Morais, in O Soldo de Santo António, Hoje Macau, 13/06/2014

Ecce homo lusitano

Rui Rocha, 19.02.14

Está aí alguém?

Sérgio de Almeida Correia, 04.02.14

Os comentários a mais um episódio rocambolesco da nossa vida pública e judiciária deixo-os para os entendidos. Não discuto o valor das obras, a sua qualidade, a sua importância para o património nacional. A mim, como cidadão, compete-me apenas formular algumas perguntas para as quais ainda não obtive resposta em nenhuma das notícias que li e/ou ouvi:

 

1. Quem autorizou a saída das obras de Miró?

2. Quem negociou com a leiloeira?

3. Quem aprovou os termos da negociação e autorizou o contrato com a leiloeira?

4. Quem no Governo, ao nível do primeiro-ministro, ministros e secretários de Estado, sabia o que se estava a passar?

5. Como sai o Ministério Público desta embrulhada?

 

O resto torna-se marginal.

 

P.S. Mesmo sem respostas, descortino na leiloeira o bom senso que faltou em quem levou para lá as obras. Lá se vai o alívio dos aliviados.