Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Os patriarcas (7)

Pedro Correia, 11.08.21

galopim.png

 

Se há peça jornalística inspiradora e gratificante que pude ler nas últimas semanas, é uma entrevista que hoje o Público divulga dando a palavra a um genuíno sábio: António Marcos Galopim de Carvalho. Geólogo, paleontólogo, escritor, pedagogo, divulgador do conhecimento científico.

O título já diz muito, com esta declaração do entrevistado: «Puseram-me numa prateleira e eu não quis lá ficar.»

Lição de vida, portanto. Num país em que pessoas muito mais jovens que ele se acomodam, desaparecem de circulação, desistem, entram numa espécie de estado vegetativo ainda em vida. 

Parabéns à Teresa Firmino, a jornalista que assina esta bela peça - exemplo de jornalismo que cumpre a sua vocação de serviço público. O professor Galopim de Carvalho bem merece este destaque. No dia em que cumpre o seu 90.º aniversário. 

 

Transcrevo, com a devida vénia, outras frases da saborosa conversa de quatro páginas em que este ilustre eborense desfia o novelo das memórias, partilhando-as com a esposa, Maria Isabel Fialho, alentejana como ele:

«No pós-profissional, tenho uma vida bastante feliz, trabalho muito. Continuo a escrever. Estou agarrado ao Facebook e, ao computador, convivo com o mundo inteiro.»

«Agora faço lições por videoconferência, dantes fazia nas escolas presencialmente. Portanto, tenho uma vida cheia. Tenho uma cozinha boa, gosto de cozinhar.»

«Escrever é uma necessidade. Como aquelas pessoas que não podem passar sem correr. Às quatro da manhã, que é quando me levanto, acordo cheio de ideias e cheio de vontade de escrever. Se não me deixassem fazer isto, estava muito infeliz.»

«Os professores da escola pública estão desmotivados, longe da família, a pagar um quarto. São instados à mediocridade. Defendo que devia considerar-se a educação. Tem de se rever toda a política de colocação de professores. Tem de se rever o vencimento dos professores.»

«Eu só sinto a idade a entrar no táxi e a sair do táxi. Estou aqui consigo e julgo que tenho 20 anos, sinceramente. Costumo dizer que mantenho a criança que fui, o adolescente, o homem adulto e o homem idoso que sou. Mantenho isso tudo em mim. A idade está na nossa expressão do olhar, está na nossa maneira de sentir.»

«[No meu aniversário] vou fazer eu o almoço. Posso dizer-lhe o que é o almoço: é um belíssimo ensopado de borrego, como aquele que se faz no Alentejo. Os netos adoram, os filhos adoram e todos nós gostamos.»

 

Galopim de Carvalho está aposentado há 20 anos. Recebeu inúmeras manifestações de apreço e honrarias. Até tem duas escolas em seu nome - uma em Queluz, outra em Évora. Algo raro num país que só costuma prestar tributo aos mortos. «É muito agradável ter isso em vida», confessa, sem falsas modéstias. 

A verdade é que este professor que formou imensos discípulos nunca se adaptou à passividade do sofá de reformado: mantém-se um cidadão atento e activo. De certa forma, constitui um exemplo para todos nós.

Seu admirador de longa data, amigo e colega do seu filho Nuno, deste local de veraneio onde passo uns dias de férias brindo à sua saúde, Professor. Fazendo votos para que o tenhamos cá por bons e felizes anos. Todos temos a ganhar com isso.

 

 

António Galopim de Carvalho, nascido a 11 de Agosto de 1931, festeja hoje 90 anos.

Patriarcado

Cristina Torrão, 28.05.21

A propósito da dominância dos homens sobre os outros seres humanos e sua consequente impunidade, lembrei-me de algumas histórias passadas na aldeia de origem do meu pai, perdida nos montes transmontanos, no concelho de Macedo de Cavaleiros. Das que conheço, escolhi quatro, todas passadas durante a primeira metade, ou meados, do século XX. Achei interessante apresentar testemunhos deste contexto especial, porque, devido ao isolamento da aldeia até aos anos 1970, a justiça raramente lá chegava. Era um mundo fechado. E este acaba por ser um retrato da nossa província, pois em todo o lado haveria casos semelhantes. 

1 - Um pastor passava o Verão com o rebanho no monte, não ia dormir a casa meses a fio. Uma sua filha costumava ir levar-lhe a comida, todos os dias, começou a fazê-lo com cerca de dez anos, uma caminhada de várias horas, tanto a ida, como a volta. Quando tinha 12 ou 13 anos, engravidou do pai. Aquele era um tempo cheio de superstições, o fruto resultante de uma relação incestuosa era considerada diabólica, ou coisa parecida, e a miúda foi escondida/isolada durante toda a gravidez. Não consta que o pai dela sofresse restrições ou censuras. O meu pai, que me contou esta história, também não faz ideia do que foi feito ao bebé. Só sabe que desapareceu.

2 - Uma mulher, à volta de quarenta anos, acabou por morrer devido aos maus tratos infligidos pelo marido e deixou seis filhos entre os dois e os dezasseis anos. O homem ficou impune e tornou a casar. A sua segunda mulher não quis os filhos do primeiro casamento, só ficou com a mais pequena, de dois ou três anos. Os outros foram simplesmente abandonados. Os padrinhos dos dois meninos levaram-nos para as suas casas. Das meninas ninguém quis saber. O pai das crianças ficou impune também por este crime, ninguém o denunciou às autoridades. A filha mais velha, de dezasseis anos, tinha um namorado, com quem ficou a viver, e levou consigo uma das irmãs. Mas eram muito pobres, não podiam ter mais ninguém a cargo deles. Outra irmã, de doze anos, foi trabalhar numa pensão, em Macedo de Cavaleiros. Acabou por casar aos quinze com um cliente dessa pensão. A mais nova, que ficou em casa do pai e da madrasta, era sujeita a muitos maus tratos por esta. Uma vez, deu-lhe tal tareia e deixou-a tão pisada (a menina tinha três anos!), que duas senhoras da aldeia, ricas e moradoras em Lisboa, tiveram pena dela e levaram-na consigo (foi assim que me contaram, não sei mais pormenores). Pelos vistos, não se deram com ela e acabaram por a entregar à Santa Casa. A miúda fugiu, em adolescente, e terá enveredado por uma vida de prostituição.

3 - Numa casa rica da aldeia, faziam-se serões de fado, a que assistiam várias famílias, também a do meu pai, criança, à altura. Cantavam e dançavam. Um dos cantores/tocadores de guitarra fugiu para Angola com uma das mulheres que costumavam participar nesses serões. Ela era casada e deixou duas filhas de seis e oito anos com o pai. Poucos dias depois de a mãe desaparecer, a mais velha surgiu morta. Estranhou-se muito este caso, pois não se conheciam doenças à miúda. Passados mais alguns dias, surgiu morta a mais nova. Desconfiou-se do pai. Mas ninguém o denunciou às autoridades, não foi aberto nenhum inquérito. As meninas foram enterradas e o pai continuou a sua vida. Tornou a casar e a formar família.

4 - Um homem de outra aldeia foi trabalhar para a do meu pai como sapateiro. Deixou a mulher e os filhos na sua aldeia de origem e engraçou com outra, na localidade de acolhimento. Começou a assediá-la, mas ela recusou-o sempre. Até que a paciência dele se esgotou. Um dia de manhã, foi a casa dela munido de um machado e começou a agredi-la. A vizinha deu conta e foi ajudar a amiga. Acabou por morrer com uma machadada. Entretanto, surgiu mais gente, o homem acabou por ser controlado e a mulher que ele tencionara matar sobreviveu, apesar dos muitos ferimentos infligidos. O assassino cumpriu pena, não havia como ignorar o seu ato. A mulher que ele matou deixou seis ou sete filhos, o mais novo tinha quatro anos.

Lombo anos 60 (2).jpg

Freguesia do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros, anos 1960

 

Camilo Castelo Branco também nos fala da violência que, no seu tempo, imperava nas relações humanas. Da leitura de Amor de Perdição, não foi o caso amoroso que retive, mas sim, a violência extrema no seio das famílias e a forma vergonhosa como as filhas eram tratadas:

«- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência de um pai é sempre amor (p.33)».

«Não sofras com paciência», diz Simão numa das suas cartas a Teresa, «luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta» (p. 67).

«Que a não desejava morta, mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquilo, e com a sua honra sem mancha»  (p. 103).

 

Nota: a paginação diz respeito à edição ebook disponível no Projecto Adamastor.

Os patriarcas (6)

Pedro Correia, 01.03.17

ng1842269[1].jpg

 Rui de Carvalho como protagonista da peça O Santo e a Porca (1971)

 

Lembro-me quando o vi pela primeira vez: num folhetim televisivo, antepassado das telenovelas, exibido pela RTP no final da década de 60. Chamava-se Gente Nova, ele era o pai. O filho era o António Feio, que todo o País conhecia então por Luisinho, o nome da personagem.

Fixei-lhe o nome: Rui de Carvalho. Um senhor de voz pausada e dicção perfeita. Dois ou três anos depois, era eu ainda miúdo, vi-o ao vivo no já desaparecido Teatro Laura Alves, na baixa lisboeta. Interpretava uma peça teatral intitulada O Santo e a Porca, do dramaturgo brasileiro Ariano Suassuna.

Nunca esqueci a intensidade e a autenticidade daquele desempenho, marcas de um grande actor nos mais diversos registos – do drama à comédia, dos textos clássicos aos contemporâneos. Interpretando Molière, Shakespeare, Tennessee Williams, Bernard Shaw, Anton Tchekov, D. Francisco Manuel de Melo, Eça de Queirós, Thomas Bernhard, Friedrich Durrenmat, Natália Correa e José Cardoso Pires - alguns entre muitos nomes ilustres da literatura de todos os tempos.

 

Acompanhei, como tantos de nós, o seu papel de protagonista, incarnando o empresário agrícola Gonçalo Marques Vila na Vila Faia – primeira telenovela da RTP, que em 1982 rompeu com merecido sucesso o monopólio brasileiro no género. Ele já tinha sido pioneiro como intérprete do Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente – primeira peça teatral transmitida pela televisão, a 11 de Março de 1957. Fui seguindo o seu percurso televisivo até ao recente Bem-Vindos a Beirais, também no canal público, em que compunha a figura de Viriato Montenegro, o aristocrata da aldeia.

Admirei-o em aparições no cinema, com destaque para a sua magnífica interpretação como médico do Instituto de Oncologia no filme Domingo à Tarde, realizado em 1966 por António de Macedo. Voltei a vê-lo no palco em 1998, desta vez no estúdio do Teatro Nacional, dando corpo a um inesquecível Rei Lear, marco cimeiro da arte da representação.

Conheci-o pessoalmente no final da década de 80, quando convivemos em amáveis cavaqueiras ao serão enquanto hóspedes da Pousada de Mong-Há, em Macau, numa temporada que ali passou. Acompanhado de D. Ruth, a mulher por quem se apaixonou quando ambos frequentavam o Conservatório de Lisboa, na década de 40, e com quem permaneceu casado até à morte dela, há dez anos. Formavam um daqueles raros casais em que a harmonia e a cumplicidade se detectam nos mais singelos gestos do quotidiano.

 

Parece estar connosco desde tempos imemoriais. Não admira: estreou-se no teatro profissional ainda adolescente, corria o ano de 1942, quando António Silva, Maria Matos, Beatriz Costa e Vasco Santana pontificavam nos palcos. Ele trabalhou com todos esses gigantes do teatro português. E foi mestre de três gerações de actores. Sempre sem pose de vedeta, com aquela humildade que caracteriza os verdadeiros artistas.

“Não sou um talento. Admito que tenho jeito e alguma experiência e isso dá a tal coisa parecida com talento. Mas talento genial tem a Eunice Muñoz. Eu tenho jeito. Isto é tudo efémero”, dizia numa entrevista concedida em 2010 ao Correio da Manhã.

Rui Alberto Rebelo Pires de Carvalho, que usa Ruy de Carvalho como nome artístico, é um dos escassos compatriotas que gozam do estatuto de unanimidade nacional. Merece-o. Fez por isso com muito trabalho, imensa perseverança e fervorosa dedicação ao ofício que escolheu. Sem nunca fazer batota, como todos lhe reconhecemos. Na vida do palco e no palco da vida.

 

Rui de Carvalho, nascido a 1 de Março de 1927, festeja hoje 90 anos.

Os patriarcas (5)

Pedro Correia, 11.05.16

5033443646_a3fe7b0fe1_b[1].jpg

 Manuel Alegre com os filhos Francisco, Joana e Afonso

 

Admiro pessoas que não cedem à tentação da renúncia nem andam na vida de braços cruzados. Admiro pessoas que se mantêm activas muito para além da data legal prevista para a reforma. Admiro pessoas que nunca se esquecem de que a cidadania, mais do que um direito, é um dever. E há muitas formas de exercê-la, como faz Manuel Alegre, que parece cada vez mais imune às inclemências do tempo. No ano passado legou-nos um dos seus melhores livros de poemas, Bairro Ocidental, que estabelece uma surpreendente rima interna com as suas primeiras obras, Praça da Canção e O Canto e as Armas. Há poucas semanas reuniu uma invulgar recolha de textos dispersos, atribuindo-lhes um título feliz: Uma Outra Memória. Li-o em dois dias, com o prazer de um leitor já antigo deste magnífico prosador que Alegre também é.

Ele não tem de pedir licença a ninguém para pensar como pensa. Nem molda o discurso ao sabor das modas: por isso gosta de pronunciar na sua voz bem timbrada a palavra pátria, que outros condenam ao ostracismo. Nem autoriza que os ignorantes de turno lhe imponham listas de consoantes prontas a mutilar como tábuas de uma nova lei: ele foi um dos  quatro deputados (em 230) que na Assembleia da República votaram contra a entrada em vigor do "acordo ortográfico”, rejeitado pela esmagadora maioria dos escritores portugueses. Nem necessita das funções de conselheiro de Estado, para as quais terá sido convidado e desconvidado com manifesta falta de cortesia: receber o Prémio Pessoa ou o Prémio Vida Literária da Sociedade Portuguesa de Autores são honrarias maiores. Tal como a certeza de saber que milhares de portugueses conhecem de cor os seus poemas, recitados ou cantados.

Também não necessitou do beneplácito de chefe algum para concorrer à Presidência da República fez agora dez anos, num longo e gratificante périplo pelo País que tive o gosto de acompanhar passo a passo como repórter. Ouvi-o falar largas dezenas de vezes: nunca o ouvi amesquinhar um adversário ou sequer tratá-lo com deselegância. A crítica, para dar provas de contundência, nunca necessita baixar de nível – ele, que é mestre das palavras, sabe isso melhor que ninguém. Leiam, neste seu mais recente livro, o tocante testemunho inédito sobre Mário Soares: não há ali uma palavra deslocada nem o menor vestígio de azedume. É um texto notável, a vários títulos. Também pelo pudor que revela na recusa em reabrir feridas porventura mal cicatrizadas.

Manuel Alegre tem um porte fidalgo e modos um pouco deslocados nesta época tão propícia aos sarrafeiros de turno, à esquerda e à direita. Além disso é alguém com biografia, o que parece dispensável neste tempo de celebridades-proveta, tão instantâneas como os pudins de pacote e com prazo de validade mais breve do que um iogurte.

Muito para lá das conjunturas políticas, quando estiverem extintas as fogueiras ateadas pelas paixões de circunstância, o autor de Senhora das Tempestades – um dos mais belos livros da poesia portuguesa do século XX – sobreviverá pela sua obra, que permanece inacabada.

Privilégio dele, privilégio nosso também.

 

Manuel Alegre, nascido a 12 de Maio de 1936, faz amanhã 80 anos.

Os patriarcas (4)

Pedro Correia, 10.02.16

13390628_iEojV[1].jpg

 

MÁRIO MONIZ PEREIRA

 

Desportista nato, praticante das mais diversas modalidades (atletismo, andebol, voleibol, basquetebol, futebol, ténis de mesa e hóquei em patins), campeão nacional de vólei e recordista nacional do triplo salto, o actual sócio número 2 do Sporting Clube de Portugal começou desde cedo a treinar atletas: era esta a sua maior vocação e foi nisto que mais se distinguiu.

Enfrentando todas as adversidades, lutando contra todos os obstáculos, ultrapassando a proverbial tendência muito portuguesa de deixar as coisas para amanhã e jamais voltar a pensar nelas, conseguiu, após décadas de esforço, pôr o País inteiro a correr. Ele dava o exemplo, fizesse chuva ou fizesse sol.

 

13397407_1c7nU[1].jpg

 

Eu vivi essa época e sei do que falo: graças a Mário Manuel Freire Moniz Pereira e aos campeões que ele treinou, o atletismo tornou-se uma paixão nacional. Porque, naqueles anos 70 e primeira metade da década de 80, só nas pistas e nos trilhos o desporto português teve as suas horas de glória. Começando em Fevereiro de 1977 com a vitória na Taça dos Campeões Europeus de corta-mato - proeza colectiva da equipa do Sporting que viria a repetir-se sete vezes nos dez anos seguintes - e culminando naquele instante irrepetível que foi a entrada de Carlos Lopes, com a sua passada larga e segura, no estádio de Los Angeles, estabelecendo novo recorde olímpico da maratona e conquistando a primeira medalha de ouro portuguesa nuns Jogos Olímpicos - proeza antecipada na medalha de prata que obtivera em 1976, na final dos 10 mil metros, nas Olimpíadas de Montreal, e que poderia ter ocorrido logo em 1980 se Portugal não tivesse aderido nesse ano ao boicote ocidental aos Jogos Olímpicos de Moscovo.

 

No momento em que a bandeira portuguesa subia ao mastro e se escutavam os acordes do hino nacional em Los Angeles, o professor Moniz Pereira via coroados 39 anos de trabalho incansável.

Em ocasiões como essa ou no mês anterior, quando Fernando Mamede bateu o recorde mundial dos 10 mil metros, em Estocolmo, o Senhor Atletismo - como também é conhecido, a justo título - demonstrava a sua verdadeira estatura de campeão não só do desporto mas também da vida: associava-se com júbilo às celebrações mas nunca reivindicou louros especiais como treinador. Como se aquela fosse uma tarefa ao alcance de qualquer um. Que diferença em relação a certos técnicos no mundo do futebol, que mesmo sem vencerem nada falam de forma petulante e empertigada, como se não fossem a nulidade que realmente são...

 

13390755_BspIp[1].jpg

 

Mantendo incólume o sportinguismo de sempre, continua a dar-nos lições. Diz-nos, por exemplo, que não devemos odiar os adeptos de outros emblemas. E gaba-se de ter amigos de todas as filiações clubísticas.

Perguntem-lhe do que mais se orgulha. Ele responder-vos-á que foi de ter conseguido, através do seu exemplo, que toda uma geração de portugueses calçasse sapatilhas e fosse correr para as ruas e estradas do País.

Apenas isto. Que é muito.

Como na letra daquele fado tão conhecido, composto por este homem de múltiplos talentos, Mário Moniz Pereira bem pode exclamar: "Valeu a pena ter vivido o que vivi."

 

Imagens:

1. Durante a homenagem que lhe foi prestada pelo Sporting em 2011, ao festejar 90 anos

2. Com Fernando Mamede, na década de 70

3. Capitão da equipa de Sporting campeã nacional de voleibol, em 1954 (jogava com o nº 8)

 

Mário Moniz Pereira, nascido a 11 de Fevereiro de 1921, faz amanhã 95 anos.

Os patriarcas (3)

Pedro Correia, 14.09.15

001ccdwf[1][1].jpg

 

ADRIANO MOREIRA

 

Há pouco mais de dois meses, no dia 10 de Julho, um senhor vestido formalmente, de cabeços brancos e testa alta, ergueu-se da cadeira onde estava sentado, numa livraria do centro de Lisboa, e durante três quartos de hora prendeu a atenção de algumas dezenas de pessoas que o escutavam com uma notável lição de história, geografia, geopolítica - tudo a pretexto da literatura.

Eu estava entre os que tiveram o privilégio de o escutar nesse fim de tarde. E admirei a impressionante rapidez de raciocínio, a notável fluência verbal e a claridade de ideias deste homem que foi advogado e político mas cuja verdadeira vocação é o ensino. Deu aulas durante dezenas de anos e deixou um rasto de admiradores em todos os continentes: é um dos portugueses com maior vocação universalista.

A expressão francesa sagesse aplica-se por inteiro a Adriano Moreira, que nessa tarde em Lisboa discorreu sobre a "comunidade de afectos" que a CPLP é acima de tudo - e como a língua comum funciona como poderoso traço de união entre os Estados-membros. Ao contrário do que sucedeu com outras antigas potências coloniais europeias, como a Bélgica ou a Holanda, incapazes de gerar laços afectivos com os povos residentes nas paragens que tutelaram.

Adriano Moreira foi subsecretário de Estado da Administração Ultramarina (1958-61) e depois ministro do Ultramar (1961-62) com António de Oliveira Salazar, de quem chegou a ser apontado como um dos seus mais jovens e promissores delfins. Enquanto ministro, aboliu a lei do indigenato - uma das medidas de maior alcance social alguma vez decretadas nos então territórios ultramarinos.

A corte da ditadura fervilhava de intrigas contra aquele jovem governante com 40 anos recém-cumpridos que se atrevia a revelar protagonismo num regime em que tantos progrediam na penumbra. Um dia, em Dezembro de 1962, Salazar chamou-o e foi sucinto: "Nós acabamos de mudar de política." Adriano Moreira foi igualmente sucinto: "Então acaba de mudar de ministro."

Nunca mais reassumiu um posto governativo. Correu mundo, escreveu livros, (Tempo de Vésperas, O Novíssimo Príncipe), radicou-se no Brasil após o 25 de Abril, regressou a Portugal, foi deputado e presidente do CDS, retomou a sua paixão de sempre: o ensino.

"A minha mãe ensinou-me que Deus é companheiro e nunca me esqueci disso. Nunca ando sozinho, nunca ando sozinho", declarou em Maio, numa longa entrevista concedida ao jornal i que vale a pena ser relida.

Pensa bem e diz o que pensa. Gostem ou não do que ele diz. Se em Portugal existisse Senado, ele seria o nosso primeiro senador. E, dobrado o cabo dos noventa, continua a ser um sonhador. Ouvi-lo falar com tão espantosa agilidade mental é também uma lição de vida. 

 

Adriano Moreira completou 93 anos no passado dia 6.

Os patriarcas (2)

Pedro Correia, 15.07.15

OriginalSize$2015_04_08_16_58_24_116009[1].jpg

 

FERNANDO CORREIA

 

Há vozes que nos acompanham desde a infância: são elas que nos vão transmitindo a convicção de que não existem saltos bruscos no tempo mas uma perpétua linha de continuidade da madrugada ao crepúsculo da existência. Vozes treinadas, bem timbradas, em que cada sílada se entende. Vozes de um tempo que já não é bem este - cheio de gente a arfar aos microfones, incapaz de fazer pausas no momento certo, com defeitos de pronúncia de pasmar.

Quando Fernando Correia se estreou na rádio, com apenas 19 anos, as ondas hertzianas estavam circunscritas àqueles que sabiam colocar a voz e a tinham bem treinada, sem aquelas convulsões asmáticas que se tornaram corriqueiras nestes dias em que até os gagos se ufanam de picar o ponto em antena.

Foi animador de emissão e repórter radiofónico durante quatro anos nos Emissores Associados de Lisboa. Em 1958 entrou por concurso na Emissora Nacional e viria a destacar-se nesta estação a partir de 1964 como relator desportivo. "Locutor de 1ª classe" desde 1966, conforme atestava a sua carreira profissional, é um dos raros sobreviventes dessa era de ouro da rádio portuguesa. Em que cada voz era inconfundível.

Trabalhou em vários jornais, incluindo o Record, e continua a ser presença regular nos ecrãs televisivos. Passou pelo Rádio Clube Português e destacou-se mais ainda, após o 25 de Abril, na Rádio Comercial - num dos melhores períodos da actividade radiofónica no nosso país. Lembro-me dele desde miúdo, quando acompanhava os relatos da bola com o transístor de pilhas encostado ao ouvido. Aquelas Tardes de Desporto, domingo após domingo, perdurarão para sempre na memória de quem as escutou.

E nem só de futebol viveu a magnífica carreira profissional de Fernando Correia: outras modalidades, como o hóquei em patins e o atletismo, foram igualmente valorizadas com os seus relatos que nunca deixavam de ser empolgantes sem perder a elegância. Foi pela voz dele que acompanhámos em maratonas radiofónicas as inesquecíveis vitórias olímpicas de Carlos Lopes em Los Angeles (em 1984) e de Rosa Mota em Seul (1988).

Comandou durante 16 anos a Bancada Central na TSF - de segunda a sexta-feira, das 21.15 às 22 horas. Depois abriu o Lugar Cativo, no renovado (e efémero) Rádio Clube Português. Agora podemos escutá-lo na Rádio Amália e na Sporting TV. Adepto leonino desde sempre, mas sem sectarismos de qualquer espécie, tem amigos de todas as cores futebolísticas. É, acima de tudo, um excelente conversador. Porque não se limita a falar bem: também sabe ouvir.

Continua a trabalhar com o entusiasmo de um novato temperado com a veterania de quem já viu de tudo um pouco. E ainda arranja tempo para escrever livros: este ano lançou o comovente Piso 3, Quarto 313. 

"Vou continuar até ter voz", promete. E nós, seus ouvintes de sempre, fazemos votos para que a voz nunca lhe falte.

 

Fernando Correia, nascido a 16 de Julho de 1935, faz amanhã 80 anos.

Os patriarcas (1)

Pedro Correia, 09.07.15

Gentil_Martins8302f937_572x321[1].jpg

 

ANTÓNIO GENTIL MARTINS

 

Há umas semanas, um senhor vestido formalmente passou por mim em passo muito ligeiro na Praça de Londres. Olhei-o de relance e logo o reconheci: era António Gentil Martins. Quem o visse caminhar de forma tão desenvolta jamais diria que ia ali alguém já na nona década de vida.

Lembro-me da primeira vez que ouvi falar dele: foi em Outubro de 1978. Gentil Martins tornou-se notícia de primeira página ao assumir pela primeira vez em Portugal uma operação de alto risco que muitos imaginavam votada ao insucesso: a separação de duas gémeas siamesas. Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Dona Estefânia (funções que desempenhou durante 34 anos), não virou a cara ao desafio. E superou-o com êxito: as gémeas ainda hoje festejam esse dia como o do seu “segundo nascimento”.

Se de alguma coisa pode orgulhar-se naturalmente este médico – neto materno de Francisco Gentil, fundador do Instituto Português de Oncologia – é poder estar na primeira linha do socorro a vidas ameaçadas. Há uns anos confessou à jornalista Anabela Mota Ribeiro que sentiu despontar-lhe esta vocação aos 11 anos, quando viu um homem atropelado esvair-se em sangue na via pública.

Este lisboeta viveu três anos em Inglaterra antes de casar e tornar-se pai de oito filhos. Católico convicto, ainda pensou ser padre. Mas viria a exercer outro sacerdócio: resgatar vidas em vez de salvar almas. Licenciado pela Faculdade de Medicina de Lisboa em 1953, conta com mais de dez mil operações no vasto currículo. Orgulha-se em particular das seis separações de siameses – com nove sobreviventes.

Chegou a ser convidado para secretário de Estado da Saúde, mas recusou: a política nunca o atraiu. Ao contrário do desporto: praticou ténis e tiro com pistola automática – nesta última modalidade, participou como representante português nos Jogos Olímpicos de 1960, disputados em Roma.

Integrou a Direcção da Associação de Estudantes de Medicina, foi bastonário da Ordem dos Médicos (1977-86) e presidente da Associação Médica Mundial (1979-83). Através dos tempos, manteve-se fiel à divisa inspirada no célebre poema If, de Rudyard Kipling: «O homem só é verdadeiramente homem quando se ultrapassa a si mesmo.»

Tantos anos depois, lá continua com o seu passo ligeiro. Crente de que vida recomeça todos os dias. E que todos temos um desígnio a cumprir: basta sabermos exercer com perseverança os nossos dons.

 

António Gentil Martins, nascido a 10 de Julho de 1930, faz amanhã 85 anos.