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Delito de Opinião

Avilezas

Sérgio de Almeida Correia, 18.04.24

ppcoelho_pportas_miguel_a._lopes.jpg(créditos: Miguel A. Lopes/LUSA)

Tenho estranhado o silêncio, enorme silêncio, do PSD, dos seus antigos companheiros de partido e da direita em geral, com excepção de Manuela Ferreira Leite, às declarações proferidas pelo antigo líder do PSD e ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.

Desconheço se Passos Coelho ainda tem, e quais sejam, as suas ambições políticas. Não sei se pretende tomar de assalto o PSD a seguir às eleições europeias, se vai abandonar esse partido para se juntar ao Chega, se equaciona a formação de um novo partido ou se, simplesmente, naquele dia acordou com os pés de fora. Mas qualquer que seja a resposta, o que ficou registado não é bonito de se ver.

Independentemente do momento escolhido para a entrevista, e a quem foi, logo após apadrinhar a apresentação de um livro onde colocou em xeque o novo primeiro-ministro, antigo líder parlamentar e seu companheiro de partido, o teor do que disse sobre Paulo Portas, o actual PSD e Cavaco Silva, e as revelações que entendeu por bem fazer, levantam várias questões.  

Começa por colocar em causa o seu sentido de Estado; muito em especial a confiança que outros nele depositaram, e a confiança que aqueles que o ouviram terão de si no futuro.

Não é normal, mesmo para quem não ambiciona outros voos políticos, que um político faça as acusações que ele fez a um antigo parceiro de coligação e membro do seu Governo, meia-dúzia de anos volvidos, sem mesmo esperar que a poeira assentasse e se resguardasse numas futuras memórias.

Acusar Paulo Portas e o CDS de falta de solidariedade política – não tenho procuração de nenhum deles – sabendo que sem aqueles não teria vencido eleições, nem sido primeiro-ministro, dizendo perante os portugueses e o mundo que um ex-ministro de Estado, duas vezes, dos Negócios Estrangeiros, da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar que não era pessoa confiável, inclusivamente confessando publicamente um facto que, segundo o entrevistado, nem o visado tinha conhecimento, é um exercício de grande baixeza ética e política.

Esse juízo revela-se de tal forma hipócrita que me levou a pensar por que motivo, depois de ser ter “atravessado” por Portas perante a troika, e sabendo que essa pessoa não era politicamente confiável, e apesar de todos os problemas que lhe causou no Governo, ainda se apresentou de novo a eleições perante os portugueses integrando Paulo Portas e o CDS na coligação “Portugal à Frente”. Imagino, se tivessem chegado a governar, que o rol de queixas e confissões seria hoje um lençol muito maior. E mais imundo.

Depois, é natural que o modo como se pronunciou sobre aquele que foi o seu líder parlamentar durante anos, actual presidente do PSD e seu “companheiro” de partido, acusando-o pifiamente de querer “desconectar-se do passado”, enquanto dizia bem compreender a sua posição, tenha deixado incrédula Manuela Ferreira Leite. E certamente que muitos dos que o apoiaram ao longo dos anos e entusiasticamente o aplaudiram na apresentação do tal livro do homem das Neves e desse visconde de saias saído directamente da Baixa Idade Média para as páginas dos jornais.

Se a isto somarmos o que disse de Cavaco Silva, sublinhando que o ex-Presidente da República, quando se reunia com ele, Passos Coelho, “não sabia do que falava” e que “estava ultrapassado”, compreende-se mal o que quer dizer quando, ao referir-se ao PSD actual, enfatiza que tem uma “relação natural e descomplexada” e “o grande cuidado de não interferir”, pelo que a última coisa que queria era “criar constrangimentos”. Nota-se.

Não sei, à semelhança do que se passou nos tempos da troika, se Passos Coelho virá ainda corrigir o que disse, ou defender-se com uma deficiente interpretação das suas palavras pelos destinatários, mas como sempre desconfiei da bondade da criatura, e sempre achei que o homem não prestava, fico satisfeito, sabendo que vai andar a vaguear por aí, por ficarem todos cientes, em toda a plenitude, da sua formatação jotinha como político e homem de Estado.  

Nunca saberemos o que o futuro nos reserva, mas não há nada como ser o próprio a revelar-se perante os outros. Na primeira pessoa. Sem filtros. Os portugueses ficam a dever-lhe essa generosidade.

O livro

José Meireles Graça, 11.04.24

O assunto da semana é o livro que quase ninguém (ainda) leu. Mas o assunto da semana não é o livro, porquanto a esmagadora maioria das pessoas está com Pessoa: Livros são papéis pintados com tinta/Estudar é uma coisa em que está indistinta/A distinção entre nada e coisa nenhuma, de modo que, mesmo com o redemoinho opinativo, não se antevê um êxito editorial; e, em que pese à seriedade do assunto (vertido logo no título Identidade e Família – Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade) é pouco provável que a obra provocasse comoções se fosse apresentada por qualquer dos coordenadores, ou um dos 22 autores dos ensaios recolhidos.

Mas foi apresentada por Passos Coelho e como nos assuntos de que trata veicula pontos de vista que revelam, no mínimo, preocupação com a forma como a importação de mundividências de esquerda (como a famosa ideologia de género, por exemplo) têm vindo a influenciar a opinião e a legislação em matérias como a família, o papel da mulher, a educação pública, a sexualidade – em suma, com engenharias sociais ditas progressistas – caiu o Carmo e a Trindade.

Juntou-se aqui a fome com a vontade de comer: Não só Passos ganhou a reputação de ser, mais do que Ventura, o Némesis da esquerda, como nestes assuntos o fio condutor dos ensaios parece ser o catolicismo para todos e a situação à direita no espectro político para a maior parte. Duas abominações, está bom de ver.

No livro há autores que conheço e respeito mas dos quais discordo em pontos essenciais, outros dos quais discordo em pontos menores e outros que não conheço. Não é de todo uma obra em que todos digam as mesmas coisas nem exactamente pelos mesmos ângulos.

Todos têm porém um ponto comum – desafinam do coro triunfal de rejeição das concepções da maior parte das pessoas comuns nestas matérias e de qualquer tradição. E isso não se lhes pode perdoar porque do que estamos a falar quase sempre é de “conquistas” da esquerda. Esta sempre que está no poder faz “avanços” e os avanços não se podem reverter porque, lá está, as reversões são recuos em direcção às trevas que prestimosamente o PCP e o Bloco, esses faróis da democracia, e o PS, esse gestor do capitalismo de rosto humano ou lá o que é, iluminaram. Uma versão qualquer da direita que ocupe o poder pode suspender a marcha para o ideal de uma sociedade sem categorias de cidadãos que possam ser identificadas como oprimidas, nem crianças cuja educação possa ser influenciada pelos pais mais do que pelo Estado, nem cidadãos com diferenças de fortuna ou rendimento assinaláveis. Mas não pode fazer mais do que isso – suspender. Porque quando, em nome da alternância, a esquerda regresse, apenas tem de prosseguir o seu glorioso caminho no ponto em que o deixou porque verdadeiramente só ela detém as chaves do Progresso, do Bem e outros entusiasmantes desígnios adequadamente maiusculizados.

É neste ponto que radica o escândalo: lá que uns senhores respeitáveis com muito ou algum crédito intelectual se reúnam para abundar em opiniões reaccionárias e retrógradas é uma coisa; que o fruto das suas cogitações seja apresentado por um político que toda a direita respeita e que tem potencial para vir a desempenhar um relevante papel é outra.

É que ensaios, livros e artigos de opinião desalinhados da maré woke podem ser soterrados pela imensa produção dos dez mil ensaístas, escritores, jornalistas e comentadores de esquerda; mas se vierem acompanhados com a ameaça realista de poderem vir a ser postos em prática então o caso muda de figura.

Passos Coelho, na sua extensa apresentação, falou quase sempre apenas do livro e dos seus temas mas a comunicação social respigou uma ou outra frase, frequentemente descontextualizada, para fazer passar a ideia de haver ali um obscuro conluio objectivo com André Ventura, que estava na assistência.

Acho que a comunicação social, por ínvios caminhos, detectou bem o problema: a tese de que a direita ganhou mas há três blocos (a esquerda, a AD e o Chega) é o trambolho permanente com que, hoje a propósito disto e amanhã a propósito de outra coisa qualquer, vamos viver.

Sucede que as pessoas que, como eu, votaram na AD e desejam o seu sucesso não têm por isso de fechar a matraca das suas opiniões e absterem-se de dizer esta coisa simples: o diálogo preferencial é, na ordem natural das coisas porque foi a direita que ganhou as eleições, com o Chega. Equilíbrio é o outro nome da tibieza e esta, para quem souber ler os sinais do tempo, é a antecâmara da derrota.

A família da direita está desavinda? Está, acontece muito nas famílias e nem por isso estas deixam de ser os melhores lugares para crescer, tese que decerto todos os autores subscrevem.

Passos Perdidos

jpt, 11.04.24

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1. Não li nem lerei o livro que Passos Coelho apresentou, o colectivo "Identidade e Família – Entre a Consistência da Tradição e as Exigências da Modernidade". E como tal não o posso comentar. Nem quero. A minha indisponibilidade para a leitura tem uma razão simples: família, parentesco e identidade são temas centrais na antropologia. Sei que mesmo se estudando a disciplina há quarenta anos me falta ler muitos textos relevantes sobre os assuntos. Mas também sei, e exactamente pelo ror de leituras havidas, que não mais me iluminarei lendo autores como César das Neves ou Portocarrero de Almada - cujas mundividências desde há muito vêm apresentando na imprensa. Ou Guilherme de Oliveira Martins, já agora - cuja indigna defesa da censura, após o atentado à Charlie Hebdo e que aqui abordei, me cerceia qualquer curiosidade sobre o seu pensamento. Ou seja, não é com este rol pensante, mesmo que algo plural, que melhor pensarei sobre estes tópicos.

Lamento (mais uma vez) que entre os muitos antropólogos portugueses não haja "intelectuais públicos". Que tenham agora - exactamente por esse estatuto e essa vocação - a disponibilidade (e a paciência) para dissecarem as argumentações que o livro traz. Esclarecendo-nos, com sinopses das teses apresentadas e articulando-as com as suas raízes intelectuais e políticas. E, comparativamente, inserindo-as em polémicas similares, em especial se decorridas em países algo congéneres. Seria precioso esse olhar especializado, em especial se imune a derivas polemistas, o "activismo" - tão demagógico - que subjaz o opinar dos poucos colegas que costumam assomar à praça pública. Presumo que historiadores ou sociólogos - oriundos de corporações mais activas no discurso público - o venham a fazer, mas sem exercerem a especificidade do olhar antropológico sobre tais questões.

2. A minha falta de curiosidade nada tem a ver com algo contra os quais alguns clamam: que as críticas ou insensibilidades (apriorísticas) face à publicação de teses conservadoras procuram a ilegitimação da liberdade de expressão - queixas reforçadas face a uma dúzia de pategos "activistas" manifestando-se contra a publicação de um livro durante a sua apresentação, coisas do habitual cretinismo esquerdista... Sempre o digo, o problema radica na (in)compreensão da língua portuguesa, mesmo entre os letrados: pois uma coisa é o "dever de respeitar a liberdade de opinião" (publicada, neste caso), algo estruturante na nossa sociedade. Outra coisa, completamente diferente, é o "dever de respeitar a opinião". Pois todos podem opinar e publicar - e é inqualificável uma manifestação contra um livro curial. Mas ninguém é obrigado a aturar (ler, bem considerar) o que outros opinam e publicam.

Apenas avanço uma citação (longa, avessa ao frenesim do "scroll down") para contextualização do debate que surgiu sobre este livro dedicado - como o disse, com temperança, o apresentador Pedro Passos Coelho - à "idealização da família". Escolho-o porque se trata de um trecho de livro publicado em Portugal: o "Sociologia da Família" (Terramar, 1999) da grande antropóloga francesa Martine Segalen. Diz ela, no começa da introdução (p.9) do seu livro, centrado na sociedade francesa (mas não a esta limitado): 

"Quando o presente vai mal, reinventa-se o passado. A inquietação suscitada pelas rápidas mudanças que têm vindo a afectar a instituição familiar desde há mais de vinte anos leva ao sonho de uma idade de ouro perdida da família. Assim , na década de 70, só se falava de "enfraquecimento da família", de "famílias desfeitas", de "famílias em crise", que contrastavam com as sólidas estruturas de outrora. Era então frequente afirmar-se que a família tinha passado a limitar-se ao casal e respectivos filhos, que tinha perdido as suas funções "tradicionais", que tinha deixado de manter relações com os outros membros da parentela. Dando os pormenores dos elementos da "crise" da família, todos estavam de acordo quanto ao facto de a família ser um lugar que proporciona apoio efectivo aos seus membros. Numa sociedade desumanizada, a família surgia como um "bastião", uma "fortaleza" contra o mundo exterior submetido às duras leis do mercado, do racionalismo, do progresso técnico, etc. (...)

Nos anos 90, depois de quinze anos de queda das taxas de nupcialidade e de fecundidade, de aumento de coabitação e do divórcio, o discurso sobre a crise da família desapareceu, dando lugar a uma redescoberta da importância dos laços familiares e do peso da instituição  na sociedade moderna. Os media celebram novamente a família, sem compreenderem que esta já nada tem a ver com a instituição dos anos 50 e, a fortiori, dos períodos anteriores e falam com saudade das estabilidades matrimoniais e das generosas taxas de fecundidade de um passado próximo. 

A nossa análise do contemporâneo não poderá pois deixar de fazer referência ao que era a família de outrora; observar-se-á assim que o discurso sobre a crise da família não é novo, tendo sido recorrente ao longo de todo o século XIX, quando a instabilidade familiar dos grupos operários proletarizados inquietava as famílias burguesas". Etc...

Ou seja, é totalmente legítimo que alguns defendam a disseminação de um modelo de família que privilegiam. Por mais "conservador" que seja apupado por outros. Mas querer fundamentar essa opção ("conservadora") numa avaliação ética (ou até moral), ancorada numa putativa "tradição" benevolente, nisso elidindo a multiplicidade histórica da nossa sociedade, a diversidade entre várias sociedades (esqueçamos a sacrossanta "cultura", sempre propagandeada como algo "visceral", qual "natural"), e a pluralidade das legítimas e ordeiras aspirações contemporâneas? Essa é uma argumentação deficiente - por ignorância ou por estratégia. Enfim, uma falsificação. E assim indigna de ascender ao debate político.

3. Dito isto, restrinjo-me a olhar o que disse Pedro Passos Coelho na apresentação do livro. E em algumas declarações à imprensa. Pois a sua participação tem impacto político, ultrapassando o conteúdo do livro, e é esse que me interessa.

Qual ressalva: tenho apreço por Passos Coelho. Nele votei - no partido a que ele presidia -, esperando que derrubasse o execrável socratismo. Assim aconteceu. Apreciei a forma como governou, sob aquele espartilho do colapso financeiro internacional exponenciado pela deriva socialista nacional. É certo que não repeti o voto - pois a poucos dias das eleições ele consagrou Dias Loureiro como figura recomendável aos (jovens) sociais-democratas. Resmunguei então "há limites" ("linhas vermelhas", como se diz agora), e a esse elogio entendi-o como o cruzar de um Rubicão, político.

Depois soube-o isento de cargos nas "administrações (não) executivas" e quejandas prebendas, típicas em alguns apparatchicos muito louvados. Recolhido à docência universitária - algo que lhe foi vilmente criticado (como aqui abordei) por um conjunto de académicos, alguns mesmo infrequentáveis (entre os quais membros da ralé de publicistas socratistas). Tal postura deixou-me antever que Passos Coelho regressaria à política. O que, até pela vigência do recente socratismo sem Sócrates, esperei. Nunca lhe entoarei o "tens aqui a tua gente". Mas estou disponível para nele votar, enfrentando o clientelismo estatista antidesenvolvimentista do PS. Mesmo que, se calhar, depois venha de novo a recusar-me a repetir o voto.

4. Esta sua apresentação do livro "Identidade e Família" é uma actividade normal para um professor universitário. Mas, pelo conteúdo e pelo contexto, deixa entrever ser este o seu regresso à política. E parece óbvio que esta sua participação tem dois vectores: 1) o de mais curto prazo, procurando influenciar - o que explicitou - o actual governo minoritário para inflectir à direita as suas articulações políticas, assim mostrando-se Passos Coelho avesso ao cada vez mais evidente "bloco central" implícito em formação. Algo relevante, pois este poderá gerar um governo fraco, suportado num venenoso apoio avulso do PS, assim originando rápidas eleições, e nelas o crescimento do CHEGA e a recuperação do PS; 2) um outro, de mais longo prazo, o encetar da sua campanha presidencial, congregando as diferentes sensibilidades de centro e direita.

Neste (aparente) regresso à vida política activa, Passos Coelho associa-se a um conjunto de preocupações predominantes entre os sectores de maior conservadorismo cultural, patentes neste livro - ao que se depreende pelas breves sinopses propaladas e pelos perfis do rol de autores - e/ou explícitos na sua intervenção. E nisso aludindo a causas que têm sido agitadas pelo CHEGA. Já várias vezes referi (recentemente neste aqui) que é incompetente reduzir o voto nesse partido a "protesto" e a "fascismo/racismo". Mas aparecer agora a associar-se ao conservadorismo mais estrito levanta, relativamente a uma futura candidatura presidencial anti-PS, a dúvida sobre que efeitos isso terá entre o eleitorado urbano, e o de maior  formação escolar, e a juventude. Enfim, e uso a palavra, entre o eleitorado civilizado.

5. A apresentação de Passos Coelho não me choca, julguei-a ponderada. Tem razão quando afirma ser necessário o debate público entre perspectivas diferentes, sem estereótipos, achincalhantes. Mas o importante é perceber se é necessário discutir alguns temas cruciais, talvez até urgentes, da sociedade, com ponderação, ou se os devemos misturar com outros mais espúrios, apenas porque agitados em discursos políticos demagógicos ou em agendas intelectuais hiper-conservadoras - com os tais potenciais efeitos entre largos núcleos do eleitorado, já agora.

Ou seja, será que para debater um tema que começa a ser premente, como o é a preservação da extrema segurança pública - como o é a actual realidade portuguesa - temos de o associar a discursos que potenciam hipotéticas derivas xenófobas? Em vez de se optar por debater algumas alterações no funcionamento policial ou no controlo da imigração, este necessário e totalmente legítimo. Até para preservação dos imigrantes.

Pois tem razão quando alude à questão sobre as hipotéticas relações entre criminalidade e imigração, sem que isso implique criminalizar e repudiar os núcleos imigrados - e isso é uma problemática patente na Europa ocidental, e com actuais profundos efeitos políticos. Talvez em termos de efectiva criminalidade entre imigrantes e seus descendentes. Mas essa é argumentação que reclama verdadeira fundamentação sociológica - entenda-se, dados obtidos por investigações sedimentadas e não por impressões retiradas do frenesim mediático e da demagogia política. Mas acima de tudo, devido às representações (concepções, preocupações) dos cidadãos, incomodados face aos núcleos imigrados. E neste último aspecto, incluem-se as concepções e preocupações de vagas de imigrantes pretéritas e seus descendentes face às mais recentes, fenómeno que muitos se recusam a entender em nome da aversão ao que reduzem a "xenofobia". Ou seja, esta hipotética articulação de imigração e criminalidade, real ou imaginada, é uma realidade e deve ser discutida, assumida. Enfim, devemos "sair do armário" sobre o assunto, mesmo que ... "pareça mal".

Mas, e de outra forma, mais explícita, será possível congratular-se com a presença de Ventura, ombrear com seus apoiantes, e seus evidentes "compagnons de route" intelectuais, dissertar sobre as suas "causas", mantendo-se num registo de debate público sereno? Pois será possível debater a possível relação entre segurança, criminalidade e imigração quando Ventura tem o desplante aldrabão de confundir "refugiados" e "imigrantes" (exactamente como os "activistas" esquerdistas)? Quando Ventura tem o atrevimento de acusar directamente a política de imigração do governo de António Costa de responsabilidade directa no assassinato de duas trabalhadoras de um centro ismaelita por um refugiado afegão com transtornos psicológicos? É sob este magma de xenofobia desbragada que haverá um debate "sereno"? Será possível debater a imigração e o trânsito dentro da CPLP, quando Ventura propagandeia aldrabices - como quando "denunciou" o financiamento português de 32 milhões de euros para um museu angolano -, evidentemente indutoras de revanchismo pós-colonial, e de concomitante xenofobia? É com este líder, com os seus apoiantes, que se irá fazer um debate ponderado sobre a problemática da imigração? E da sua hipotética (hipotética, sublinho) relação com aumento e alteração da tipologia da criminalidade?

6. Neste seu deambular pela agenda hiper-conservadora, Passos Coelho tem algumas derivas escusáveis. Tem também toda a razão quando diz que é possível, e positivo, discutir a "família" enquanto instituição socializadora e sua relação com o Estado, e que isso pode ser feito, como frisa, no âmbito de um discurso de "idealização" dessa família - como reconhece no conjunto de textos -, mesmo que a realidade demonstre a pluralidade histórica, cultural e actual, dos formatos de "família". 

É é certo que é necessário debater o incremento do apoio social (estatal, organizacional, familiar) aos mais velhos, nesta sociedade tão envelhecida. Mas - mais uma vez - sem reificar a imagem idílica de uma "família tradicional", sempre "cuidadora" dos anciãos. E acima de tudo - porque foi a isso que Passos Coelho aludiu, sem explicitar - é urgente regulamentar e normalizar a eutanásia. Tendo consciência da presença histórica, sob plurais formatos, da eutanásia na nossa sociedade - mais uma vez escapando-nos à tal visão "idealizadora" da família tradicional como "bastião" "cuidador" dos gerontes.

Não se trata de pugnar pela "sovietização" da sociedade (para glosar o próprio Passos Coelho), de defender o extermínio dos mais-velhos (como na distopia de Bioy Casares). E isto não significa prosseguir sob uma "cultura da morte" - como diziam os fundamentalistas católicos quando se discutia a lei do aborto, essa que alguns da neo-AD parece quererem rever. Um miserável epíteto que a clique católica e seus sequazes continuam indignamente a utilizar no debate sobre a eutanásia. Mas sim para com humanitarismo ("humanismo", sói dizer-se) nos equipararmos a algumas das nossas sociedades congéneres, numa ascensão civilizacional. Expurgando-nos da vilania obscurantista dos radicais católicos. Essa que tem sido bandeira do actual presidente Sousa. E a qual se espera ausente no próximo presidente.

7. Mais ainda, alguns dos temas a que Passos Coelho aludiu - talvez por estarem integrados no conjunto textual que apresentou - são espúrios. Aquilo que refere como a "sovietização do ensino" prende-se com a polémica face à disciplina "Educação para a Cidadania". Esta tem (e assim daqui a anos será considerada) o mesmo valor que a ridícula reacção da hierarquia católica face à exibição do simplório filme "Pato com Laranja" na RTP em finais de 1980. Ou a disparatada reacção cardinalícia face às "entrevistas históricas" de Herman José nos anos 1990 - posição pateta e patética, intelectualmente abjecta, sufragadaa pelo então presidente do PSD, este Rebelo de Sousa que sofremos como presidente da república.

Já o disse aqui, o intuito da escola é formar cidadãos, e apenas alguém que padeça de cretinismo é que o incompreende. O currículo geral é escolhido em função daquilo que o Estado, em determinado momento histórico, entende necessário transmitir aos seus cidadãos (por isso se aprende história de Portugal com ênfase bem superior a qualquer outra, por isso se estuda Camões e não Cervantes, Eça e não Flaubert, por isso se privilegia a futebolada e se esquece o cricket, por isso se prescinde da obrigatoriedade do latim ou da matemática...).

A polémica, tão anacrónica que até aviltante neste 2024, sobre a educação para a cidadania assenta na falsificação dos âmbitos das chamadas "esferas de valores", a "privada" (familiar) e "pública" (escolar). E advém do catolicismo trôpego que sempre quis recusar a educação (de facto, informação) sexual escolar. Disse-o aqui, e agora sumarizo: o currículo diversificado da "Educação para a Cidadania" é muitíssimo menos demoníaco do que o que alardeiam os núcleos ignorantes do fundamentalismo católico. É criticável: em abstracto, na pluralidade dos seus temas tem dois pontos discutíveis, o propagandear de uma visão hiperliberal da sociedade, na apologia do mitológico "empreendedorismo"; e uma implícita ênfase na benevolência estruturante das relações homossexuais face à violência constante das relações heterossexuais. E (disse-o nesse postal de 2021) "é patente a ausência curricular da apresentação de dimensões virtuosas das formas socialmente dominantes de reprodução social e biológica, as famílias." Mas o que de facto choca os hiperconservadores, o que levanta toda esta polémica, não são estas questões, é apenas uma superficial análise e uma preconceituosa rejeição: afirma-se na escola a naturalidade da homossexualidade. O que "parece mal" aos fundamentalistas católicos, que preferem o silêncio sobre o assunto, mesmo que - como sabem e vivem - tal "acontece nas melhores famílias". É, insisto, ridículo.

8. Há temas para enfrentar, perspectivas que urge combater? Claro que as haverá. Desde logo esta provinciana vaga dita "woke". Como aqui disse, quantos votos custa um disparate como o caso do teatro da Trindade, com aquele imigrante prostituto a exigir um lugar no teatro e a soi-disant intelligentsia portuguesa a apoiar? Pois é constante e loquaz esta "ideologia de género" incomodando a maioria. Essa ideologia de género de facto existe - apesar dos seus paladinos (oriundos do marxismo e reclamando-se pós-marxistas) refutarem a sua existência, como se naturalizando as suas perspectivas, numa verdadeira falsária contradição com as suas bases teóricas. Pois com eles vivemos a pressão discursiva de um radical neoliberalismo racialista. Pelo qual as sociedades são reduzidas a conglomerados de indivíduos, racionais, movimentando-se autónomos no mercado de género, adquirindo identidades no cardápio de categorias genderísticas existentes, ou a estes criando (numa "destruição criadora"). Algo depois crimado na patética sigla LGB..., consagrando uma aparente infinitude de (id)entidades discretas, o que é uma verdadeira refracção do velho racialismo (de teor efectivamente racista), que presumia que a cada grupo identitário ("raça", "tribo", "etnia") corresponderiam não só características, capacidades e tendências, mas também problemas sociais específicos e reclamando políticas (formas de administração e de apoio) peculiares.

E se esta trapalhada ideológica poderia ser apenas algo risível, a forma como alguns partidos de poder (no nosso caso em particular o PS da geringonça) cooptam estas minorias "activistas", vem influenciando de forma despropositada e desproporcional, as agendas públicas. E induzindo - até porque é esse o seu objectivo - alterações das práticas/opções individuais no interior das gerações mais novas. E isso é necessário combater, até reverter. Sem que implique qualquer aversão às liberdades individuais, à informação, à educação.

Mas também sem implicar a associação a agendas hiper-conservadoras cristocêntricas. E, muito menos, aos políticos demagogos aldrabões. A la Ventura... Assim evitando que sejam os apoiantes destes que se procuram para que ululem "tens aqui a tua gente!".

E como tal, julgo que esta saída do antigo primeiro-ministro consistiu em Passos Perdidos.

Seria "racismo" ou só "crime de ódio"?

Pedro Correia, 15.06.23

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Quando Pedro Passos Coelho era primeiro-ministro, chegou a ser recebido com edificantes e ternurentas imagens como esta, na selecta Faculdade de Direito de Lisboa. Prefigurando, com expressiva metáfora, a «morte ao Coelho».

Nessa altura - Fevereiro de 2013 - não havia divas do comentário a rasgar as vestes contra o «racismo», nem virgens à beira do desmaio perante «crimes de ódio». Nem sequer almas sensíveis a clamar contra o animalicídio, entre «vivas à liberdade» e palminhas pseudo-revolucionárias.

Valia tudo. Até sorrisos cúmplices perante estas "traquinices" da brava rapaziada anti-Passos.

A chico-espertice como método

João Sousa, 26.11.21

Um apoiante de Rui Rio (ou talvez um funcionário do call-center ao qual Rio delegou a sua campanha?) achou por bem criar um perfil no Facebook, supostamente de Passos Coelho, onde este expressaria o seu apoio em Rui Rio. Passos Coelho já veio a público declarar não ter nada a ver com o assunto. A maior ironia é que Rui Rio foi muito mais esforçado na sua oposição ao governo de Passos Coelho do que alguma vez foi na oposição (qual oposição?) ao governo de Costa.

O regresso

Pedro Correia, 27.05.21

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Foto: João Relvas / Lusa

 

O estado de anemia do espaço político tradicional do centro-direita ficou bem patente, nestes dois últimos dias, com o regresso de Pedro Passos Coelho aos focos noticiosos. Nem precisou de abrir a boca. Bastou-lhe aparecer na convenção promovida pelo MEL no centro de congressos de Lisboa para se tornar notícia. Em silêncio, conseguiu mais protagonismo do que todos os oradores.

Quem esteja atento aos sinais, percebe que nada disto acontece por acaso. No segundo dia, Passos entrou na sala seguido de Paulo Portas - numa espécie de hierarquia natural, reproduzindo a existente no Governo que ambos formaram há dez anos. Também aqui foram desnecessárias palavras: a linguagem não-verbal dizia tudo. Com um toque de premonição, como o futuro próximo demonstrará.

Enfim, o tratamento que o ex-primeiro-ministro dispensou a André Ventura foi igualmente revelador. O ansioso deputado do Chega acercou-se dele de mão estendida, procurando potenciar aquela photo op, como se diz em jargão de assessoria mediática. A reacção de Passos não deixou margem para dúvidas: nem se levantou para lhe retribuir o cumprimento, nem lhe deu uma segunda hipótese para nova imagem conjunta, abandonando a sala antes de o líder do Chega descer do palco.

Enfim, evidências de profissionalismo político. Demonstrando aos amadores como se faz. Sem necessidade de nenhuma agência de comunicação a ditar regras ou dar o mote. Quando há dotes naturais de liderança tudo isto parece fácil. Quando não há, até a própria sombra atrapalha. 

A culpa é de Passos Coelho

jpt, 12.03.21

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Estes são dados do Observatório da Emigração. Aproveito para recordar um postal - "O Milagre das Rosas" - de 2010, no qual ecoei um artigo do Libération (o qual deixou de estar disponível). Portugal fora na década então finda o 3º país mundial com menor crescimento económico e tinha 350 mil emigrantes naquele quinquénio. E para não deixar resumir isto da estrutural emigração portuguesa a dichotes advindos das querelas partidárias, recomendo este artigo de 2019, "Portuguese emigration today", do sociólogo Rui Pena Pires. O qual será insuspeito de simpatias pela "direita".

Há muito a reflectir e mais ainda a fazer para obstar a este constante (e histórico) drenar. Mas há algo mais imediato que poderia ser feito, para melhorar essa necessária actuação. Há um mês aqui deixei nota sobre a execrável afirmação televisiva de Ana Drago, no afã de salvaguardar o actual governo: a disseminação do Covid-19 após o Natal deveu-se às visitas dos emigrantes em Inglaterra, fluxo acontecido durante o governo de Passos Coelho. Os números, consabidos, mostram bem a indecência da formulação. Drago nem sequer é (por enquanto) militante do PS, a vil patacoada não foi uma fidelidade conjugal mas apenas um episódio de prostituição política. 

A questão é a da expressão pública televisiva e sua influência. Já nem falo desta pantomina de haver políticos no activo a fazerem de comentadores, em contextos que lhes encenam poses algo "neutrais", como se autónomos dos seus partidos - o caso mais risível é o da secretária-geral adjunta Mendes, ali ombreando com os aparentes "senadores flanantes" Pacheco Pereira e Lobo Xavier. Ou este Medina, que nos cabe como presidente de Lisboa, também "comentador" a tempo parcial, como se não estivesse a "full-time" em campanha. Mas a questão é para além disso, que pelo menos esses os espectadores reconhecem de imediato como "a voz do partido". A questão é a da pertinência das televisões se encherem destes Drago, simulando "olhares distanciados", analíticos e mesmo críticos. E que nada mais são do que "vozes de dono", cartilheiros.

E este caso, constante, da utilização da emigração portuguesa como invectiva a um governo - que geriu, mal ou bem, uma situação herdada - é um exemplo típico do aldrabismo de gente que é paga para nos "fazer a cabeça". Para baixar a emigração será melhor começar por melhorar a locução. Expugar-nos de cartilheiros, venham de onde vierem. E depois fazer o resto...

Pacheco, Rio e o ódio a Passos

Pedro Correia, 06.01.21

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Faça-se justiça a Pacheco Pereira: ele continua a criticar sem desfalecimentos o governo. Mas não este: o governo que ele ataca com vigor é o de Passos Coelho. Com aquela gravitas que sempre demonstra mesmo quando abre a boca para dizer que amanhã vai estar de chuva.

 

Na última Circulatura do Quadrado de 2020, como se estivesse em 2015, o famoso historiador da Marmeleira debitou isto:

«Desde os anos de governo de Passos Coelho que se assistiu a uma enorme deslocação à direita da vida pública portuguesa em certas áreas. Essa deslocação ainda hoje não desapareceu. Ela manifesta-se sob muitos aspectos: manifesta-se na análise económica, na análise social, também na linguagem. (...) Esta degradação da linguagem é má para a democracia. Porque, entre outras coisas, acaba com o centro e com a moderação.»

E isto:

«Quem foi o governo que em Portugal mais atacou os velhos, chamando-lhes "peste grisalha" e defendendo a chamada "justiça geracional", que era tirar reformas e pensões aos mais velhos?»

E mais isto:

«O radicalismo da linguagem à direita tem uma história nos últimos dez anos em Portugal e tem a ver, evidentemente, com deslocações políticas nas quais o PSD teve uma grande responsabilidade.»

E ainda isto:

«As pessoas agora têm esta nostalgia do Pedro Passos Coelho. Esquecem-se de que quando o Pedro Passos Coelho abandonou a direcção do PSD os resultados nas sondagens eram muito maus.»

 

Plena militância anti-governo, pois. O governo de coligação PSD/CDS, finado há mais de cinco anos, mas que ele teima em enfrentar com intrepidez e denodo, imitando os antigos combatentes nipónicos infiltrados na selva filipina que continuavam a pelejar pelo imperador Hirohito várias décadas após o armistício de 1945.

Manso perante António Costa e furibundo ad aeternum com o presidente do partido que conduziu os sociais-democratas às duas últimas vitórias em legislativas: este homem é um dos mais influentes conselheiros políticos de Rui Rio, o que explica o naufrágio do PSD, patente de sondagem em sondagem.

A luta continua. A derrota é certa.

Palavras para recordar (58)

Pedro Correia, 31.10.19

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PEDRO PASSOS COELHO

Diário de Notícias, 22 de Março de 1997

«O PSD procederia mal se, um ano e meio após as legislativas, em que o PS praticamente obteve uma maioria absoluta, fizesse uma oposição mais voluntariosa ou sistemática, como que criando a ideia de que o Governo poderia cair um destes dias e o PSD pudesse voltar ao Governo no dia seguinte.»

Contra o código genético do PSD

Pedro Correia, 01.08.19

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Outros tempos: Santana, Ferreira Leite, Durão e Rio (Dezembro de 2001)

 

Durão Barroso venceu o congresso de Viseu em 2000, contra Pedro Santana Lopes e Luís Marques Mendes - um congresso muito dividido e disputado. O passo seguinte era unir o PSD, estendendo pontes para os dois derrotados. Foi o que Durão fez, com um balanço largamente positivo: Santana avançou como candidato do partido à Câmara de Lisboa, que venceu em Dezembro de 2001, e Mendes encabeçou a lista eleitoral laranja pelo distrito de Aveiro às legislativas de Março de 2002, ganhas pelos sociais-democratas. A mensagem de unidade interna dada por Durão Barroso favoreceu assim o PSD em dois combates eleitorais.

 

Pedro Passos Coelho venceu a eleição interna no partido em Março de 2010, derrotando por larga margem as candidaturas adversárias protagonizadas por Paulo Rangel e José Pedro Aguiar-Branco. O seu primeiro gesto, mal ascendeu à presidência dos sociais-democratas, foi apaziguar as hostes adversárias, convidando os antagonistas da véspera para os órgãos nacionais. Assim, a convite dele, Rangel encabeçou a lista ao Conselho Nacional do PSD e Aguiar-Branco presidiu à comissão formada para rever o programa do partido. No ano seguinte, com Passos na liderança não só do partido mas já também do Governo, o segundo assumiu o cargo de ministro da Defesa enquanto o primeiro se manteve como deputado europeu, recandidatando-se em 2014 com o apoio expresso de quem o derrotara quatro anos antes.

 

Nesses tempos de progressão eleitoral e política do partido laranja tudo decorreu desta forma. Agora, com outra liderança e outras cabeças a definir a estratégia para as legislativas de 6 de Outubro, todos os sinais vão no sentido oposto: fragmentar em vez de unir, congregar fiéis em vez de estimular o pluralismo interno que faz parte do código genético do partido fundado por Francisco Sá Carneiro. Como se este PSD de Rui Rio mimetizasse os velhos movimentos da extrema-esquerda, que iam purgando dirigentes e militantes em nome da pureza ideológica e da estrita obediência à voz de comando.

Estamos em plena contagem decrescente: faltam 66 dias para conhecermos o resultado de tão brilhante estratégia.

Um postal cansado: El Salvador, Passos Coelho e o resto

jpt, 05.07.19

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Há dias aqui escrevi um breve postal a propósito das reacções portuguesas às mortes por afogamento  de dois salvadorenhos que tentavam cruzar a fronteira norte-americana, reacções essas que invectivam o governo americano. E comparei-os com as reacções que o mesmo tipo de locutores tiveram aquando da discussão sobre os fluxos migratórios portugueses durante o anterior governo - os quais, já agora, não só eram anteriores como lhe sucederam.

Logo alguns comentários surgiram, com aquela rispidez que aqui no DO se mantém constante, querendo ensinar-me que as migrações oriundas da América Central não têm as mesmas causas e conteúdos das que emanam do nosso Portugal ("o que é que um tipo responde a este tipo de comentários?", resmungo-me. "Nem respondas ...", respondo-me). Outros (de facto, os mesmos) reavivam - como se fosse isso o relevante no meu postal - que o anterior primeiro-ministro mandou os portugueses emigrar, em particular os professores. E assim, entre a reprodução de chavões construídos por políticos e ecoados pelos jornalistas avençados, e a mania presumida de dar lições com a mão na anca, as auto-certezas se vão mantendo e reafirmando. O mero achismo.

Enfim, a única coisa que procurei dizer é que não é inteligente apontar apenas causas norte-americanas às derivas dos fluxos migratórios oriundos da América Central. Que estes terão causas endógenas. E que é estranho que ninguém as refira quando tanto discurso, e tão exaltado, há sobre o assunto. Que, neste caso, ninguém na imprensa, blogs ou redes sociais, surgisse a falar de El Salvador. Eu pesquisei, o assunto da situação político-económica da América Central e de El Salvador é bem secundário no mundo google mas encontra-se algo. Mas a esmagadora maioria fica presa à fúria anti-yankee (ou anti-partido republicano) e nem liga a isso. É uma mundividência. Ignorante. E racista, no sentido de desvalorizar dinâmicas sociais em contextos não "ocidentais", com o pântano nocional que este termo carrega.

E ontem li no New York Times as declarações do novo presidente de El Salvador, sobre o drama daquela família migrante. Certo que é um discurso de quem acaba de chegar ao poder. Mas é significante. Será que os comentadores do DO, em particular os (quase)sempre ariscos, porão as mãos nas ancas diante destas declarações?

Há mais um assunto que quero abordar neste postal cansado. Eu nunca votei no PSD liderado por Passos Coelho. Em 2011 bloguei que votaria CDS, apesar de não ser demo-cristão (se é o que o CDS ainda o era), "porque não tem aparelho autárquico", voraz como todos estes o são. E nas eleições seguintes bloguei que votaria PAN (do que me arrependo agora) exclusivamente porque Passos Coelho acabara de discursar na terra natal de Dias Loureiro apontando-o aos jovens como um exemplo. Entenda-se, num país homogéneo como o nosso (e para os da mão-na-anca, dizer um país homogéneo não é dizê-lo sob uma unicidade sociocultural) as dinâmicas anti-democráticas vêm da degenerescência do sistema político, da sua cleptocratização. Como tal, apoiar Dias Loureiros ou Silva Pereiras não é apenas uma imoralidade ou uma parvoíce clubística, é cumprir (ou deixar cumprir) uma agenda anti-democrática. Por mais meneios que se tenha. Coloco estre intróito para contextualizar o que se segue: não sou um eleitor PSD ou um "seguidor" de Passos Coelho.

Eu fui professor (português) em África (Moçambique) durante quinze anos. Antes disso tive como trabalho a obrigação de acompanhar (não coordenar, mas acompanhar) as actividades dos professores portugueses no país - alguns ainda na figura de "cooperantes"- bem como das escolas locais, que existiam em várias cidades, com paralelismo pedagógico com o sistema português, algumas das quais tinham professores portugueses. Depois, uma década depois, a minha filha estudou durante cinco anos na Escola Portuguesa de Maputo, então já uma escola oficial (instalação a qual acompanhara profissionalmente). Conheci vários professores portugueses dessa e doutras escolas, e com alguns constituí amizades. E ao longo dos anos conheci inúmeros professores moçambicanos, universitários meus colegas, secundários e primários. E trabalhei com professores secundários e primários, tanto como informantes em trabalhos avulsos, como na condição de intérpretes. Após a crise portuguesa de finais da década passada recebi uma assustadora quantidade de pedidos de ajuda e/ou informação sobre como emigrar para Moçambique. Muitos deles de professores. Na sua maioria de gente que não conhecia (muitos contactos vinham através do google, imensos através do célebre "amigo de amigo ..."). Sobre isso escrevi algumas vezes, até em registo sorridente.

Assim sendo, e apenas por isso, e ainda que com a cinquentenária consciência das minhas limitações intelectuais e da monumentalidade da minha ignorância global, em 2011, quando Passos Coelho falou de emigração de professores, eu sabia - por razões biográficas e interesse profissional - muito mais, incomparavelmente mais, sobre professores portugueses em África do que a esmagadora maioria dos meus conterrâneos. E, por maioria de razão, do que os comentadores actuais do Delito de Opinião.

Sei que alguns membros do governo de então aconselharam, assim como se que en passant, os compatriotas a emigrarem (ao longo da vida quantas vezes me perguntei, sobre gente no poder ou no topo da administração pública, "onde irão buscar estes bandalhos?". Nunca terei encontrado ninguém mais diminuído intelectualmente do que Vitalino Canas - expliquei aqui - mas há outros que se aproximam ...). Mas ao saber que Passos Coelho falara sobre a hipotética emigração de professores para África fui ler, com enorme interesse e com o tal meu conhecimento privilegiado. E o que era imediata e nitidamente claro é que o homem respondera muito competentemente - até de modo surpreendente para um primeiro-ministro, que tem inúmeros assuntos para apreender. Ele não mandou emigrar nem sequer aconselhou. Explicitou, acertadamente, a situação. Escrevi então sobre isto (até com citação da famosa entrevista), o postal "Passos Coelho e a emigração dos professores.". Caramba, alguém que conhece a realidade em questão que mais poderia pedir de um PM? Bem pelo contrário, só se poderia esperar menor conhecimento e reflexão. Alguns dias depois botei o postal "O Emigrão", sobre o significado do desatino generalizado em torno daquela entrevista. Um desatino demagógico mas, acima de tudo, ignorante.

Porque volto, e de modo tão detalhado, a esta velha questão, despicienda hoje? Porque há decerto imensa coisa que se pode criticar a Passos Coelho sem termos que cair na inanidade de papaguear o que políticos e colunistas avençados então botaram, fazendo as pessoas crer naquilo que não é verdade. E a operação intelectual é exactamente a mesma no que se refere aos migrantes, seja para a Europa, seja para os EUA, seja para a África do Sul (desta temática não se fala, por outras razões), ou para outros pólos de atracção. Não precisamos de ser trumpianos, de crer que muros impedem migrações, de abominar emigrantes (nunca percebi como há portugueses que abominam emigrantes, mas isso é outro assunto). Não precisamos de negar as assimetrias no mundo, os efeitos da velha doutrina Monroe e da sua perenidade. Mas também  não precisamos de papaguear as inanidades, mais ou menos moralistas, que os "teclados arrebitados", tantas vezes mercenários, rabiscam. Sobre os EUA, sobre Passos Coelho. Ou sobre outras coisas, por exemplo a excelência de Silva Pereira, para falar na espuma dos dias.

E isto tudo passa, evidentemente, pela atitude nas caixas de comentários bloguísticos. Apenas como detalhe. Mas também. E são estas que me provocam esta longa jeremíada, até memorialista.

Europeias (15)

Pedro Correia, 22.05.19

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AUSENTE MAS PRESENTE

 

A presença de Pedro Passos Coelho numa acção de campanha do PSD bastou para perturbar a campanha socialista. Ao ponto de usarem essa esporádica aparição do anterior primeiro-ministro como fio condutor de um mini-comício promovido ontem pelo PS em Aveiro.

Valia mais que os dirigentes do partido do Governo evitassem abordar este tema. Para não serem confrontados sobre a ausência, nesta mesma campanha, do primeiro-ministro que antecedeu Passos Coelho. Eles sabem muito bem que nós sabemos que eles sabem que nós sabemos quem foi.

 

Passos Coelho na Universidade

jpt, 04.03.18

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Vejo no facebook uma mole de protestos face ao anúncio de que Passos Coelho passará a ser professor no ISCSP e, posteriormente, em outras duas universidades. Todos têm implícito que o problema é ser este indivíduo (PPC) o convidado, e muitos o explicitam. É relevante notar que se a adequação do perfil político-partidário ao exercício da docência universitária foi estruturante no Estado Novo, os "democratas" d'agora convocam-na agora como critério. 

E todos esses protestos contestam a transição profissional dada a inexistência de currículo académico de PPC. Face a esse argumento consulto o Decreto-Lei 448/79, o "Estatuto da Carreira Docente Universitária" (actualizado em 2009, aparentemente sem alterações à parcela de texto que aqui convoco). Diz no preâmbulo, no seu ponto 9:

"Com o objectivo e a preocupação de abrir as portas da Universidade a todas as competências (...) concede-se ainda a possibilidade de serem especialmente contratadas individualidades que, pela sua competência científica, pedagógica ou profissional, possam dar à Universidade o seu saber e a sua experiência. E esta possibilidade tanto existe para aqueles que queiram prestar serviço em regime de tempo integral como para quantos continuem a exercer uma actividade de investigação ou profissional fora da própria escola. ( ...)
O carácter de excepcionalidade do regime das equiparações por convite e o próprio conceito que ele encerra pressupõem, no entanto, que só possam ser contratados como professores convidados individualidades que, embora não tenham enveredado pela carreira docente normal, ou não possuindo os graus académicos exigidos para as categorias que as integram, tenham um currículo científico, ou científico e profissional, susceptível de permitir concluir que a sua colaboração pode ser efectivamente útil à Universidade".

Pode ser que o governo anterior tenha sido mau. Pode ser que PPC venha a ser um mau docente. Pode ser até que encare a actividade apenas como uma pausa na sua biografia. Mas será pertinente negar, a priori, que um tipo que foi PM durante uma legislatura, governando em coligação ainda por cima, e que cruzou uma enorme crise mundial que gerou articulações com ditames económico-financeiros e administrativos externos, vá leccionar Administração Pública ou Economia?

De facto, este coro de protestos só mostra o fascistazito (muitos em versão "(neo-)comunistóide") que há dentro de tantos destes auto-proclamados "democratas". E mostra também a profunda ignorância, atrevida e arrogante ainda para mais, sobre o que é a universidade. E que esta fúria seja partilhada por vários académicos deixa entender não só o como estão infectados da cultura ditatorial, como também o corporativismo (salazarento, já agora) que os conduz. E, ainda mais, o desconhecimento da própria profissão. Tétricos duendes.

 

Quadratura do círculo

Pedro Correia, 30.01.18

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Ódio velho não cansa. José Pacheco Pereira - o tal que se gaba de nunca criticar quem sai de cena ou está na mó de baixo - atirou-se pela enésima vez a Passos Coelho, na Quadratura do Círculo. À falta de pretextos actuais, pela irrepreensível conduta do líder cessante no processo de transferência de poderes em curso no PSD, regressou ao passado.

"Se há partido que precisa de uma discussão interna profunda e discussão sem tabus é o PSD. Mas outra coisa é a organização de fracções e a organização de grupos que se destinam a manter uma tendência ou a manter relações de liderança alternativa. Isso seria péssimo. Se olharmos para a experiência do passado, foi o que Passos Coelho fez, por exemplo, com Manuela Ferreira Leite", arengou Pacheco na Quadratura de 18 de Janeiro. Levando o insuspeito Jorge Coelho, com impecável memória, a contestá-lo: "Que eu me lembre, quem correu de deputado com Pedro Passos Coelho foi a liderança de Manuela Ferreira Leite. Eu nunca vi isto em partido nenhum."

Pacheco, um dos ideólogos dessa vergonhosa escovadela no PSD prévia às legislativas de 2009 que contribuiu para a segunda vitória eleitoral de José Sócrates, foi incapaz de dar réplica ao ex-ministro socialista sobre este dado factual. Preferindo saudar o putativo regresso ao partido de um ex-secretário-geral que andou todos estes anos a apelar publicamente ao voto noutras forças políticas antes de ressurgir como apoiante de Rui Rio. "Vejo, com certeza, com bons olhos o regresso de António Capucho ao partido. É um social-democrata de toda a vida", alegrou-se no mesmo programa.

Recapitulemos: "manter uma tendência" interna é péssimo, mas aceitar no PSD quem apelou a votar PS com António José Seguro nas europeias de 2014 e com António Costa nas legislativas de 2015 é excelente.

Uma verdadeira quadratura do círculo. Nada que deva espantar seja quem for.

Obviamente, demite-se

Pedro Correia, 03.10.17

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 Foto: Miguel A. Lopes/Lusa

 

Esmagado pela  hecatombe eleitoral e confrontado certamente com cenários demolidores na Comissão Política do partido, Pedro Passos Coelho sai pelo seu pé, exercendo a única opção credível que lhe restava. Como escrevi ontem aqui, restava-lhe abandonar o palco empurrado - o que seria péssimo para ele e nada recomendável para um partido que mantém intactas as ambições de regressar ao poder a médio prazo.

Rui Rio é agora forçado a abandonar a prolongada reclusão a que se entregara, apenas interrompida pelo apoio que concedeu ao malogrado candidato do PSD à Câmara Municipal do Porto - pessoa cujo nome, sinceramente, não cheguei a fixar. Nada famosos, os resultados que Rio patrocinou: 10,3%, apenas um mandato na vereação da Invicta e menos de metade dos votos obtidos por Luís Filipe Menezes há quatro anos. O pior desfecho de sempre do partido laranja num acto eleitoral da capital do Norte.

Há melhores cartões de visita, convenhamos. Mas o ex-autarca portuense terá mesmo de sair da sua zona de conforto, competindo-lhe ser uma das figuras em foco na política portuguesa neste mês de Outubro, na linha do que já  aqui fora antecipado. Se a circunstância faz o homem, como dizia o outro, eis Rio precisamente por estes dias a ser moldado pela circunstância.

Fim da linha

Pedro Correia, 02.10.17

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Passos Coelho perdeu ontem nas urnas - o PSD registou o pior resultado de sempre. E perdeu também uma excelente oportunidade, aliás a única, de reagir em tempo útil ao terramoto eleitoral do seu partido. Devia ter anunciado de imediato a resignação ao cargo de presidente dos sociais-democratas ou, no mínimo, que não voltará a apresentar-se a votos no congresso que aí vem.

Não fez uma coisa nem outra. Perdeu-se - como é tão frequente nele - numa floresta de palavras. Incapaz de traduzir em actos concretos o veredicto que os eleitores lhe impuseram nas urnas. Tal como há um ano se mostrara incapaz de ler os sinais internos, prenunciadores desta hecatombe que deixa o partido só à frente de duas das 15 principais cidades do País, incapaz de recuperar qualquer capital de distrito e com uma expressão quase residual em Lisboa e Porto, onde o CDS sobe à sua custa, forçando a reorganização de forças à direita.

Sairá de palco empurrado - o que é sempre a pior forma de sair.

Um retrato da falência moral do país político (e jornalístico)

José António Abreu, 27.06.17

Ontem, porém, houve luz na escuridão. O provedor da Misericórdia de Pedrogão Grande induziu Passos Coelho num lapso, de que o líder do PSD decidiu pedir desculpa. Foi a alegria do costismo. Era a sorte outra vez. Mas talvez o sarcasmo do regime tenha desta vez ficado demasiado patente: é que tivemos desculpas do líder da oposição por um pequeno comentário, mas nem uma palavra de contrição do governo pela incompetência e descontrole que mataram 64 pessoas e deixaram mais de 200 feridas.

Rui Ramos, no Observador.

O amadorismo na política.

Luís Menezes Leitão, 26.06.17

Um líder da oposição não pode soprar um bitaite que acabou de ouvir de uma pessoa ao lado. Especialmente quando esse bitaite seria uma notícia em primeira mão, que ninguém até então tinha dado, e que portanto não se poderia repetir sem ser confirmada. Passos prejudicou objectivamente o PSD com este amadorismo e permitiu que o PS saísse por cima. Mas já se sabe que haverá muitos militantes a tudo perdoar, sabe-se lá à espera de quê. Para mim, há muito tempo que Passos Coelho deveria ter percebido que a sua oposição está a ser totalmente ineficaz e dar lugar a outro. O dia de hoje foi apenas infelizmente mais um exemplo de algo que tem sido recorrente e que explica as sondagens dramáticas que o PSD tem. Agora Passos Coelho vai ter pelo menos que passar a pasta a outra pessoa na questão de Pedrógão Grande, pois já ninguém dará qualquer crédito ao que ele disser sobre este assunto. Vamos ver quanto tempo durará até que venha a ter que passar a pasta nas restantes matérias.