1. Não li nem lerei o livro que Passos Coelho apresentou, o colectivo "Identidade e Família – Entre a Consistência da Tradição e as Exigências da Modernidade". E como tal não o posso comentar. Nem quero. A minha indisponibilidade para a leitura tem uma razão simples: família, parentesco e identidade são temas centrais na antropologia. Sei que mesmo se estudando a disciplina há quarenta anos me falta ler muitos textos relevantes sobre os assuntos. Mas também sei, e exactamente pelo ror de leituras havidas, que não mais me iluminarei lendo autores como César das Neves ou Portocarrero de Almada - cujas mundividências desde há muito vêm apresentando na imprensa. Ou Guilherme de Oliveira Martins, já agora - cuja indigna defesa da censura, após o atentado à Charlie Hebdo e que aqui abordei, me cerceia qualquer curiosidade sobre o seu pensamento. Ou seja, não é com este rol pensante, mesmo que algo plural, que melhor pensarei sobre estes tópicos.
Lamento (mais uma vez) que entre os muitos antropólogos portugueses não haja "intelectuais públicos". Que tenham agora - exactamente por esse estatuto e essa vocação - a disponibilidade (e a paciência) para dissecarem as argumentações que o livro traz. Esclarecendo-nos, com sinopses das teses apresentadas e articulando-as com as suas raízes intelectuais e políticas. E, comparativamente, inserindo-as em polémicas similares, em especial se decorridas em países algo congéneres. Seria precioso esse olhar especializado, em especial se imune a derivas polemistas, o "activismo" - tão demagógico - que subjaz o opinar dos poucos colegas que costumam assomar à praça pública. Presumo que historiadores ou sociólogos - oriundos de corporações mais activas no discurso público - o venham a fazer, mas sem exercerem a especificidade do olhar antropológico sobre tais questões.
2. A minha falta de curiosidade nada tem a ver com algo contra os quais alguns clamam: que as críticas ou insensibilidades (apriorísticas) face à publicação de teses conservadoras procuram a ilegitimação da liberdade de expressão - queixas reforçadas face a uma dúzia de pategos "activistas" manifestando-se contra a publicação de um livro durante a sua apresentação, coisas do habitual cretinismo esquerdista... Sempre o digo, o problema radica na (in)compreensão da língua portuguesa, mesmo entre os letrados: pois uma coisa é o "dever de respeitar a liberdade de opinião" (publicada, neste caso), algo estruturante na nossa sociedade. Outra coisa, completamente diferente, é o "dever de respeitar a opinião". Pois todos podem opinar e publicar - e é inqualificável uma manifestação contra um livro curial. Mas ninguém é obrigado a aturar (ler, bem considerar) o que outros opinam e publicam.
Apenas avanço uma citação (longa, avessa ao frenesim do "scroll down") para contextualização do debate que surgiu sobre este livro dedicado - como o disse, com temperança, o apresentador Pedro Passos Coelho - à "idealização da família". Escolho-o porque se trata de um trecho de livro publicado em Portugal: o "Sociologia da Família" (Terramar, 1999) da grande antropóloga francesa Martine Segalen. Diz ela, no começa da introdução (p.9) do seu livro, centrado na sociedade francesa (mas não a esta limitado):
"Quando o presente vai mal, reinventa-se o passado. A inquietação suscitada pelas rápidas mudanças que têm vindo a afectar a instituição familiar desde há mais de vinte anos leva ao sonho de uma idade de ouro perdida da família. Assim , na década de 70, só se falava de "enfraquecimento da família", de "famílias desfeitas", de "famílias em crise", que contrastavam com as sólidas estruturas de outrora. Era então frequente afirmar-se que a família tinha passado a limitar-se ao casal e respectivos filhos, que tinha perdido as suas funções "tradicionais", que tinha deixado de manter relações com os outros membros da parentela. Dando os pormenores dos elementos da "crise" da família, todos estavam de acordo quanto ao facto de a família ser um lugar que proporciona apoio efectivo aos seus membros. Numa sociedade desumanizada, a família surgia como um "bastião", uma "fortaleza" contra o mundo exterior submetido às duras leis do mercado, do racionalismo, do progresso técnico, etc. (...)
Nos anos 90, depois de quinze anos de queda das taxas de nupcialidade e de fecundidade, de aumento de coabitação e do divórcio, o discurso sobre a crise da família desapareceu, dando lugar a uma redescoberta da importância dos laços familiares e do peso da instituição na sociedade moderna. Os media celebram novamente a família, sem compreenderem que esta já nada tem a ver com a instituição dos anos 50 e, a fortiori, dos períodos anteriores e falam com saudade das estabilidades matrimoniais e das generosas taxas de fecundidade de um passado próximo.
A nossa análise do contemporâneo não poderá pois deixar de fazer referência ao que era a família de outrora; observar-se-á assim que o discurso sobre a crise da família não é novo, tendo sido recorrente ao longo de todo o século XIX, quando a instabilidade familiar dos grupos operários proletarizados inquietava as famílias burguesas". Etc...
Ou seja, é totalmente legítimo que alguns defendam a disseminação de um modelo de família que privilegiam. Por mais "conservador" que seja apupado por outros. Mas querer fundamentar essa opção ("conservadora") numa avaliação ética (ou até moral), ancorada numa putativa "tradição" benevolente, nisso elidindo a multiplicidade histórica da nossa sociedade, a diversidade entre várias sociedades (esqueçamos a sacrossanta "cultura", sempre propagandeada como algo "visceral", qual "natural"), e a pluralidade das legítimas e ordeiras aspirações contemporâneas? Essa é uma argumentação deficiente - por ignorância ou por estratégia. Enfim, uma falsificação. E assim indigna de ascender ao debate político.
3. Dito isto, restrinjo-me a olhar o que disse Pedro Passos Coelho na apresentação do livro. E em algumas declarações à imprensa. Pois a sua participação tem impacto político, ultrapassando o conteúdo do livro, e é esse que me interessa.
Qual ressalva: tenho apreço por Passos Coelho. Nele votei - no partido a que ele presidia -, esperando que derrubasse o execrável socratismo. Assim aconteceu. Apreciei a forma como governou, sob aquele espartilho do colapso financeiro internacional exponenciado pela deriva socialista nacional. É certo que não repeti o voto - pois a poucos dias das eleições ele consagrou Dias Loureiro como figura recomendável aos (jovens) sociais-democratas. Resmunguei então "há limites" ("linhas vermelhas", como se diz agora), e a esse elogio entendi-o como o cruzar de um Rubicão, político.
Depois soube-o isento de cargos nas "administrações (não) executivas" e quejandas prebendas, típicas em alguns apparatchicos muito louvados. Recolhido à docência universitária - algo que lhe foi vilmente criticado (como aqui abordei) por um conjunto de académicos, alguns mesmo infrequentáveis (entre os quais membros da ralé de publicistas socratistas). Tal postura deixou-me antever que Passos Coelho regressaria à política. O que, até pela vigência do recente socratismo sem Sócrates, esperei. Nunca lhe entoarei o "tens aqui a tua gente". Mas estou disponível para nele votar, enfrentando o clientelismo estatista antidesenvolvimentista do PS. Mesmo que, se calhar, depois venha de novo a recusar-me a repetir o voto.
4. Esta sua apresentação do livro "Identidade e Família" é uma actividade normal para um professor universitário. Mas, pelo conteúdo e pelo contexto, deixa entrever ser este o seu regresso à política. E parece óbvio que esta sua participação tem dois vectores: 1) o de mais curto prazo, procurando influenciar - o que explicitou - o actual governo minoritário para inflectir à direita as suas articulações políticas, assim mostrando-se Passos Coelho avesso ao cada vez mais evidente "bloco central" implícito em formação. Algo relevante, pois este poderá gerar um governo fraco, suportado num venenoso apoio avulso do PS, assim originando rápidas eleições, e nelas o crescimento do CHEGA e a recuperação do PS; 2) um outro, de mais longo prazo, o encetar da sua campanha presidencial, congregando as diferentes sensibilidades de centro e direita.
Neste (aparente) regresso à vida política activa, Passos Coelho associa-se a um conjunto de preocupações predominantes entre os sectores de maior conservadorismo cultural, patentes neste livro - ao que se depreende pelas breves sinopses propaladas e pelos perfis do rol de autores - e/ou explícitos na sua intervenção. E nisso aludindo a causas que têm sido agitadas pelo CHEGA. Já várias vezes referi (recentemente neste aqui) que é incompetente reduzir o voto nesse partido a "protesto" e a "fascismo/racismo". Mas aparecer agora a associar-se ao conservadorismo mais estrito levanta, relativamente a uma futura candidatura presidencial anti-PS, a dúvida sobre que efeitos isso terá entre o eleitorado urbano, e o de maior formação escolar, e a juventude. Enfim, e uso a palavra, entre o eleitorado civilizado.
5. A apresentação de Passos Coelho não me choca, julguei-a ponderada. Tem razão quando afirma ser necessário o debate público entre perspectivas diferentes, sem estereótipos, achincalhantes. Mas o importante é perceber se é necessário discutir alguns temas cruciais, talvez até urgentes, da sociedade, com ponderação, ou se os devemos misturar com outros mais espúrios, apenas porque agitados em discursos políticos demagógicos ou em agendas intelectuais hiper-conservadoras - com os tais potenciais efeitos entre largos núcleos do eleitorado, já agora.
Ou seja, será que para debater um tema que começa a ser premente, como o é a preservação da extrema segurança pública - como o é a actual realidade portuguesa - temos de o associar a discursos que potenciam hipotéticas derivas xenófobas? Em vez de se optar por debater algumas alterações no funcionamento policial ou no controlo da imigração, este necessário e totalmente legítimo. Até para preservação dos imigrantes.
Pois tem razão quando alude à questão sobre as hipotéticas relações entre criminalidade e imigração, sem que isso implique criminalizar e repudiar os núcleos imigrados - e isso é uma problemática patente na Europa ocidental, e com actuais profundos efeitos políticos. Talvez em termos de efectiva criminalidade entre imigrantes e seus descendentes. Mas essa é argumentação que reclama verdadeira fundamentação sociológica - entenda-se, dados obtidos por investigações sedimentadas e não por impressões retiradas do frenesim mediático e da demagogia política. Mas acima de tudo, devido às representações (concepções, preocupações) dos cidadãos, incomodados face aos núcleos imigrados. E neste último aspecto, incluem-se as concepções e preocupações de vagas de imigrantes pretéritas e seus descendentes face às mais recentes, fenómeno que muitos se recusam a entender em nome da aversão ao que reduzem a "xenofobia". Ou seja, esta hipotética articulação de imigração e criminalidade, real ou imaginada, é uma realidade e deve ser discutida, assumida. Enfim, devemos "sair do armário" sobre o assunto, mesmo que ... "pareça mal".
Mas, e de outra forma, mais explícita, será possível congratular-se com a presença de Ventura, ombrear com seus apoiantes, e seus evidentes "compagnons de route" intelectuais, dissertar sobre as suas "causas", mantendo-se num registo de debate público sereno? Pois será possível debater a possível relação entre segurança, criminalidade e imigração quando Ventura tem o desplante aldrabão de confundir "refugiados" e "imigrantes" (exactamente como os "activistas" esquerdistas)? Quando Ventura tem o atrevimento de acusar directamente a política de imigração do governo de António Costa de responsabilidade directa no assassinato de duas trabalhadoras de um centro ismaelita por um refugiado afegão com transtornos psicológicos? É sob este magma de xenofobia desbragada que haverá um debate "sereno"? Será possível debater a imigração e o trânsito dentro da CPLP, quando Ventura propagandeia aldrabices - como quando "denunciou" o financiamento português de 32 milhões de euros para um museu angolano -, evidentemente indutoras de revanchismo pós-colonial, e de concomitante xenofobia? É com este líder, com os seus apoiantes, que se irá fazer um debate ponderado sobre a problemática da imigração? E da sua hipotética (hipotética, sublinho) relação com aumento e alteração da tipologia da criminalidade?
6. Neste seu deambular pela agenda hiper-conservadora, Passos Coelho tem algumas derivas escusáveis. Tem também toda a razão quando diz que é possível, e positivo, discutir a "família" enquanto instituição socializadora e sua relação com o Estado, e que isso pode ser feito, como frisa, no âmbito de um discurso de "idealização" dessa família - como reconhece no conjunto de textos -, mesmo que a realidade demonstre a pluralidade histórica, cultural e actual, dos formatos de "família".
É é certo que é necessário debater o incremento do apoio social (estatal, organizacional, familiar) aos mais velhos, nesta sociedade tão envelhecida. Mas - mais uma vez - sem reificar a imagem idílica de uma "família tradicional", sempre "cuidadora" dos anciãos. E acima de tudo - porque foi a isso que Passos Coelho aludiu, sem explicitar - é urgente regulamentar e normalizar a eutanásia. Tendo consciência da presença histórica, sob plurais formatos, da eutanásia na nossa sociedade - mais uma vez escapando-nos à tal visão "idealizadora" da família tradicional como "bastião" "cuidador" dos gerontes.
Não se trata de pugnar pela "sovietização" da sociedade (para glosar o próprio Passos Coelho), de defender o extermínio dos mais-velhos (como na distopia de Bioy Casares). E isto não significa prosseguir sob uma "cultura da morte" - como diziam os fundamentalistas católicos quando se discutia a lei do aborto, essa que alguns da neo-AD parece quererem rever. Um miserável epíteto que a clique católica e seus sequazes continuam indignamente a utilizar no debate sobre a eutanásia. Mas sim para com humanitarismo ("humanismo", sói dizer-se) nos equipararmos a algumas das nossas sociedades congéneres, numa ascensão civilizacional. Expurgando-nos da vilania obscurantista dos radicais católicos. Essa que tem sido bandeira do actual presidente Sousa. E a qual se espera ausente no próximo presidente.
7. Mais ainda, alguns dos temas a que Passos Coelho aludiu - talvez por estarem integrados no conjunto textual que apresentou - são espúrios. Aquilo que refere como a "sovietização do ensino" prende-se com a polémica face à disciplina "Educação para a Cidadania". Esta tem (e assim daqui a anos será considerada) o mesmo valor que a ridícula reacção da hierarquia católica face à exibição do simplório filme "Pato com Laranja" na RTP em finais de 1980. Ou a disparatada reacção cardinalícia face às "entrevistas históricas" de Herman José nos anos 1990 - posição pateta e patética, intelectualmente abjecta, sufragadaa pelo então presidente do PSD, este Rebelo de Sousa que sofremos como presidente da república.
Já o disse aqui, o intuito da escola é formar cidadãos, e apenas alguém que padeça de cretinismo é que o incompreende. O currículo geral é escolhido em função daquilo que o Estado, em determinado momento histórico, entende necessário transmitir aos seus cidadãos (por isso se aprende história de Portugal com ênfase bem superior a qualquer outra, por isso se estuda Camões e não Cervantes, Eça e não Flaubert, por isso se privilegia a futebolada e se esquece o cricket, por isso se prescinde da obrigatoriedade do latim ou da matemática...).
A polémica, tão anacrónica que até aviltante neste 2024, sobre a educação para a cidadania assenta na falsificação dos âmbitos das chamadas "esferas de valores", a "privada" (familiar) e "pública" (escolar). E advém do catolicismo trôpego que sempre quis recusar a educação (de facto, informação) sexual escolar. Disse-o aqui, e agora sumarizo: o currículo diversificado da "Educação para a Cidadania" é muitíssimo menos demoníaco do que o que alardeiam os núcleos ignorantes do fundamentalismo católico. É criticável: em abstracto, na pluralidade dos seus temas tem dois pontos discutíveis, o propagandear de uma visão hiperliberal da sociedade, na apologia do mitológico "empreendedorismo"; e uma implícita ênfase na benevolência estruturante das relações homossexuais face à violência constante das relações heterossexuais. E (disse-o nesse postal de 2021) "é patente a ausência curricular da apresentação de dimensões virtuosas das formas socialmente dominantes de reprodução social e biológica, as famílias." Mas o que de facto choca os hiperconservadores, o que levanta toda esta polémica, não são estas questões, é apenas uma superficial análise e uma preconceituosa rejeição: afirma-se na escola a naturalidade da homossexualidade. O que "parece mal" aos fundamentalistas católicos, que preferem o silêncio sobre o assunto, mesmo que - como sabem e vivem - tal "acontece nas melhores famílias". É, insisto, ridículo.
8. Há temas para enfrentar, perspectivas que urge combater? Claro que as haverá. Desde logo esta provinciana vaga dita "woke". Como aqui disse, quantos votos custa um disparate como o caso do teatro da Trindade, com aquele imigrante prostituto a exigir um lugar no teatro e a soi-disant intelligentsia portuguesa a apoiar? Pois é constante e loquaz esta "ideologia de género" incomodando a maioria. Essa ideologia de género de facto existe - apesar dos seus paladinos (oriundos do marxismo e reclamando-se pós-marxistas) refutarem a sua existência, como se naturalizando as suas perspectivas, numa verdadeira falsária contradição com as suas bases teóricas. Pois com eles vivemos a pressão discursiva de um radical neoliberalismo racialista. Pelo qual as sociedades são reduzidas a conglomerados de indivíduos, racionais, movimentando-se autónomos no mercado de género, adquirindo identidades no cardápio de categorias genderísticas existentes, ou a estes criando (numa "destruição criadora"). Algo depois crimado na patética sigla LGB..., consagrando uma aparente infinitude de (id)entidades discretas, o que é uma verdadeira refracção do velho racialismo (de teor efectivamente racista), que presumia que a cada grupo identitário ("raça", "tribo", "etnia") corresponderiam não só características, capacidades e tendências, mas também problemas sociais específicos e reclamando políticas (formas de administração e de apoio) peculiares.
E se esta trapalhada ideológica poderia ser apenas algo risível, a forma como alguns partidos de poder (no nosso caso em particular o PS da geringonça) cooptam estas minorias "activistas", vem influenciando de forma despropositada e desproporcional, as agendas públicas. E induzindo - até porque é esse o seu objectivo - alterações das práticas/opções individuais no interior das gerações mais novas. E isso é necessário combater, até reverter. Sem que implique qualquer aversão às liberdades individuais, à informação, à educação.
Mas também sem implicar a associação a agendas hiper-conservadoras cristocêntricas. E, muito menos, aos políticos demagogos aldrabões. A la Ventura... Assim evitando que sejam os apoiantes destes que se procuram para que ululem "tens aqui a tua gente!".
E como tal, julgo que esta saída do antigo primeiro-ministro consistiu em Passos Perdidos.