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Delito de Opinião

A lei das consequências não intencionais

Pedro Correia, 06.03.25

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Cometemos o erro de procurar interpretar sempre os acontecimentos políticos à luz da estrita racionalidade. E assim falhamos o alvo. Porque a política obedece demasiadas vezes àquilo que Henry Kissinger designava, com sapiência irónica, «a lei das consequências não intencionais». Alguns actos produzem determinadas efeitos que nunca chegaram a ser previstos e estavam longe de ser desejados. 

Vem isto a propósito da alucinante cascata de acontecimentos que está prestes a gerar nova dissolução de uma legislatura e as terceiras eleições parlamentares em três anos no nosso país. Depois de ruir um governo com maioria absoluta, o actual executivo - empossado há escassos 11 meses - prepara-se para cair. Mesmo após superar duas moções de censura no hemiciclo - a primeira só com 50 votos favoráveis em 230 deputados, a segunda tendo recolhido apenas 14 votos de apoio. Nenhuma dessas moções foi sequer apresentada pelo principal partido da oposição, que aliás inviabilizou ambas no hemiciclo. O que torna tudo ainda mais anómalo.

Impôs-se, portanto, a lei das consequências não intencionais: a aparente estabilidade de anteontem degenerou em toada de montanha russa para o caos do momento que só favorece o mais desbragado populismo político. Sem que nenhum dos protagonistas, aparentemente, o tivesse desejado. Sem indícios de mudança substancial de opinião entre os portugueses que foram às urnas a 10 de Março de 2024. Sem a menor garantia de que o próximo acto eleitoral produza uma solução governativa mais estável. Conduzindo o País a um ciclo de três eleições em oito meses (legislativas, autárquicas, presidenciais) quando a actual situação na Europa e no mundo é a mais explosiva em muitas décadas.

«Há quase um sentimento de I República», observou ontem Carlos Moedas, em entrevista à SIC Notícias. Frase certeira. Lembremos esse período nada recomendável do nosso século XX: em menos de 16 anos houve sete legislaturas, oito presidentes, 45 governos e uma junta revolucionária. Num quadro de convulsões sociais, instabilidade económica e violência política que desembocou em meio século de ditadura. 

A história pode sempre repetir-se: basta certos actos impensados produzirem determinadas consequências não previstas.

Alguém devia alertar os aprendizes de feiticeiro para evitarem brincar com o fogo.

Este país não tem emenda

Contra-reforma em marcha: ressuscitem-se as freguesias extintas no séc. XIX

Pedro Correia, 18.01.25

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Em votação esmagadora, a Assembleia da República aprovou ontem a reversão de parte significativa da reforma do mapa administrativo, que vigorava desde 2013. Das 4259 até então existentes, baixou-se o número para 3092 após amplo debate público. Agora são repostas 302 - quase um terço das que haviam sido agregadas para ganhar escala, racionalizar meios, atrair investimento e reforçar capacidade reivindicativa perante o poder central. 

Espantosamente, o PSD que promoveu a reforma - imposta no memorando de entendimento assinado pelo Executivo socialista em Maio de 2011 - esteve agora na primeira linha da contra-reforma. Como se fosse um partido de duas caras. E se calhar é mesmo.

Só a Iniciativa Liberal votou contra, o que muito a honra.

 

Dizem-me que a contra-reforma se tornou "imprescindível" porque algumas freguesias sofriam afrontamentos e experimentavam dolorosas "crises de identidade" em consequência da agregação. 

Lamento muito. Por isso atrevo-me a sugerir ao parlamento que aproveite o balanço para restaurar também as centenas de municípios extintos nas reformas administrativas de 1835 e 1853, em pleno reinado de D. Maria II.

Chegou a hora de ressuscitar essas sedes de concelho, que chegaram a ser cerca de 900. Atenção Águas Belas, Buarcos, Colares, Dornes, Ericeira, Freixo de Numão, Galveias, Horta, Idanha-a-Velha, Juromenha, Lavradio, Messejana, Negrelos, Odeceixe, Penha Garcia, Quiaios, Rabaçal, Samora Correia, Tentúgal, Ucanha, Vilar de Maçada e Zebreira: é tempo de todas soltarem o grito do Ipiranga. De A a Z.

E não parem aí, senhores deputados: vão mais longe. Equiparem cada paróquia eclesiástica a um município. São só 4361, não custa nada. Aliás antes de haver freguesias já existiam paróquias em Portugal: in illo tempore, o termo "freguês" servia para designar os paroquianos, enquanto fregueses do pároco.

Engatem a marcha-atrás, operem o milagre da multiplicação das paróquias. Para que a contra-reforma seja imparável.

 

Confirma-se, mais a sério: etapa a etapa, vamos voltando ao Estado pré-troika. O mesmo que nos condenou à perda da soberania financeira.

Eis uma evidência: este país não tem emenda. 

Já não há tempestades como antigamente*

José Meireles Graça, 04.12.24

Os Portugueses votam aos seus políticos um grande desprezo, com excepção talvez dos comunistas porque esses, ao menos, “são sérios”.

Comentadores de todos os sectores do espectro, listando os nomes da primeira Assembleia, e os das seguintes duas décadas do regime, e comparando-os com os actuais, declaram com os abraços abertos de desalento, o cenho franzido e a voz cava, que há uma evidente degradação da qualidade. Porque é que é assim em geral não explicam.

Não explicam porque os que conheceram as luminárias da política nacional de há 30 ou mais anos estão velhos e tudo, não apenas os políticos, lhes parecia melhor no antigamente. Houve uma Revolução, com vencedores e vencidos, uma longa batalha para empurrar os militares para os quartéis, outras para ir podando a Constituição do seu terceiro-mundismo ideológico (uma tarefa ainda não concluída), uma troca de partes da independência nacional por subsídios e a garantia de normalidade democrática, e vários momentos para ir demolindo o PREC na economia. Nestes últimos se distinguiu Cavaco, que terá sido talvez, até ao aparecimento de Ventura mas com grande diferença de grau, o último político a excitar amores acrisolados e ódios virulentos.

Já não há tempestades como antigamente, diziam dantes filosoficamente os velhos quando o vento uivava, árvores tombavam pelo pé e o mar entrava pelas praias adentro. Hoje não dizem porque a “ciência” os convenceu de que o clima vai ter cada vez mais excessos, mas têm a mesma atitude face ao resto. Eu também. Lembro quando tinha mais cabelo, menos achaques, mais esperança, menos realismo, e mais admiração pelos heróis do dia e menos cinismo.

Houve um tempo asado para heróis e hoje é o tempo de gestores do que está. Isto não pode entusiasmar até ao dia em que o que está seja suficientemente irrespirável para regressarmos aos heróis improváveis, como sucedeu agora nos EUA com Trump.

A aversão aos políticos não é exclusivamente portuguesa: Desde que o Estado se vem ingerindo em todos os interstícios da vida, regulando, proibindo, multando, prodigalizando benefícios, fundando instituições e serviços, é dele crescentemente que vem a chuva e o bom tempo, este último para todos os grupos barulhentos com capacidade reivindicativa ou suficientemente numerosos para garantirem o resultado das eleições. E como não é possível dar a uns sem tirar a outros, e o que é dado nunca é suficiente, os descontentes vão crescendo.

Acontece que houve uma votação na AR para eliminar um corte de 5% dos vencimentos dos políticos, que permanecia desde 2011. As circunstâncias que lhe deram origem há muito se extinguiram mas permanecia por mera cobardia – o partido que isso propusesse não ganharia um voto e é provável que perdesse alguns.

Ladrões, já não lhes chega o que roubam e agora querem aumentos!, dizem os reformados no meu café. Se porém tivesse sido uma outra categoria de cidadãos a ser objecto daquela medida austeritária não apenas teriam há muito visto com bons olhos a anulação do corte como exigiriam compensação.

Ciente deste parti-pris antipolíticos, o líder Ventura resolveu surfar a onda da indignação popular e escolheu prantar uns pendões nas janelas do Parlamento protestando contra o “aumento”. O presidente da AR ficou piurso mas o próprio Ventura ajudou a retirá-los perante o olhar, imagina-se que divertido, dos bombeiros que numa grua iam proceder a essa operação.

No regime de separação de poderes os tribunais são independentes na aplicação das leis, mas não as fazem; o Governo tem competências próprias mas depende da AR; e o próprio presidente da República, em homenagem à sua eleição directa, pode em certas circunstâncias abanar a barraca, mas até para ir para o estrangeiro (seja, como o actual, para arejar banalidades, seja para alguma deslocação de mérito) precisa de autorização da AR.

É pacífico: A AR, tenha a composição que tiver, e qualquer que seja a personalidade concreta dos deputados que a compõem, é o pináculo do regime democrático. Daí que o respeito dos procedimentos, o civismo no trato, até mesmo as convenções no vestuário, façam parte de um quadro de convivência civilizada. Não é que desmandos não sucedam por esse mundo fora em parlamentos democráticos, é que não temos de importar disparates – já basta a produção própria.

Em 230 deputados não é possível garantir que nenhum tire macacos do nariz; nem impedir que alguns levem a modernidade a ponto de se apresentarem praticamente de pijama, ou que, no calor das discussões, recorram à retórica do insulto.

Há porém limites: não se espera que as senhoras deputadas, no Verão e caso o ar condicionado esteja avariado, se apresentem de bikini (mesmo que, em casos raros, isso pudesse atrair maior interesse nos debates parlamentares); que deputados se tratem reciprocamente de “bestas” ou “imbecis”, ainda que nem sempre estivessem a faltar à verdade; e o pedir a palavra fosse substituído por punhadas furiosas na bancada.

Não se espera nada disso. Nem que as manifestações de rua, os pendões, as palavras de ordem, sejam transportadas para aquele lugar. O direito à manifestação é, na AR, apenas o direito à manifestação civilizada de opiniões, o resto tem o seu lugar – na rua.

Seria este o momento de dizer que André Ventura conspurcou a instituição que tem obrigação de respeitar. Hesito porque tem atenuantes: Não há muito tempo o Palácio de S. Bento foi iluminado com as cores da Bandeira LGBTurbo, isto é, de grupos ultra-minoritários que se inserem no vasto movimento de autovitimização de categorias de cidadãos que têm diferenças que deveriam ser irrelevantes mas servem de matéria prima para marxistas actualizados que precisam de hostes de protegidos para combater os inimigos de sempre.

Entre os pendões de Ventura e a iluminação furta-cores não há diferença nenhuma: o edifício serve de pretexto para propagandear uma ideia, nos dois casos errada.

Mas nem que estivesse certa.

* Publicado no Observador

A mãe dolorida e o circo mediático

Pedro Correia, 25.06.24

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Sempre considerei que o caso das gémeas convoca o pior do voyeurismo conjugado com o pior da inveja social.

Se alguém merece ser criticado não é seguramente a empresária Daniela Martins, mãe dolorida que tudo fez para proteger duas filhas em risco de vida, aceitando agora comparecer numa sessão de cinco horas em comissão parlamentar de inquérito num país que alguns dizem não ser dela. Mesmo sendo descendente de quatro avós portugueses. Nossa compatriota, portanto.

Esta senhora apedrejada no "tribunal da opinião pública" - o mais injusto dos tribunais - marcou presença no mesmo local onde já pontificou, como líder parlamentar, um antigo deputado acusado de assassinar há década e meia outra portuguesa residente no Brasil, permanecendo este crime impune até hoje.

Isto sim, devia suscitar escândalo nacional. Mas não suscita.

 

Apetece perguntar: enquanto Daniela Martins enfrentava deputados de várias cores ideológicas e respondia com dignidade ao acintoso André Ventura na Assembleia da República, onde estava o pai das gémeas? Sumiu-se, saiu de cena.

Onde estava o amigo "portuga" de São Paulo, filho do Presidente e suposto instigador da cunha hospitalar? Fora de palco, em silêncio completo, pecando por falta de comparência e desrespeito à Casa da Democracia.

De repente os homens eclipsam-se, só resta ela. Criticada até por ter cumprido o dever cívico de atravessar o Atlântico e submeter-se a um interrogatório em que não faltaram parlamentares quase aos gritos.

 

Vi, ouvi, reflecti. E concluo que só ela esteve bem nesta história ainda com vários ângulos por esclarecer.

Sem esquecer as meninas, que não têm culpa de padecerem de uma doença rara e grave. Expostas num circo mediático que as reduz a um rótulo depreciativo ("gémeas luso-brasileiras") pelos mesmos jornalistas que, quando dá jeito, enaltecem as supostas virtudes da "lusofonia" e aludem ao visionário universalismo de Camões. Renegam na prática tudo quanto proclamam com vibração hipócrita, soando a falso do princípio ao fim.

A liberdade em marcha-atrás

Mortágua em 2024 desmente o Louçã de 2008

Pedro Correia, 21.05.24

 

Mariana Mortágua lidera um movimento favorável à supressão da liberdade de expressão no reduto onde ela deve estar mais salvaguardada: a sala das sessões da Assembleia da República, sede da soberania nacional.

Uma frase de mau gosto debitada por André Ventura na sexta-feira de manhã desencadeou uma onda de exclamações inflamadas contra o presidente da Assembleia da República por não ter mandado silenciar aquele deputado. Aguiar-Branco declarou, pelo contrário, que advoga um conceito muito lato, nada restrito, da liberdade de expressão. Pelo mais louvável dos motivos: não tem vocação para censor.

Faz muito bem. O contrário é que seria preocupante, tratando-se da segunda figura do Estado.

Era o que faltava, neste ano em que celebramos o 50.º aniversário do 25 de Abril, os cravos murcharem ao ponto de alguns quererem transformar o presidente da AR num mestre-escola a distribuir reguadas pelos meninos irreverentes ou num velho regedor de aldeia pronto a suprimir expressões indecorosas. Como se a liberdade em Portugal andasse em marcha-atrás.

 

Acontece que o presidente da AR não pode censurar nenhum deputado. O mandato popular confere-lhes, em absoluto, o direito a não serem perseguidos judicialmente pelas opiniões que emitem em sede parlamentar.

Nem poderia ser de outra forma. Concordemos ou discordemos do que dizem, todos representam a nação, eleitos pelos portugueses. Se exprimirem opiniões que detestamos, mais ainda devemos garantir que possam continuar a emiti-las.

Esta é uma trave mestra da democracia liberal. 

 

Não me espanta que a coordenadora do Bloco de Esquerda pretenda silenciar quem discorda dela: o radicalismo que imprimiu ao partido, desfazendo o legado de relativa moderação de Catarina Martins, é o corolário disto.

Nem sequer me surpreende que um cortejo de «personalidades da música e do entretenimento» tenha logo saído em defesa da lei da rolha. E que uma organização intitulada SOS Racismo, que nenhum português elegeu, exija aos gritos a demissão de Aguiar Branco. Dando razão a Ricardo Araújo Pereira, quando em 24 de Abril escrevia no Expresso: «A frase, tão popular, "a minha liberdade acaba onde a dos outros começa" é curiosa porque, fingindo ser sensata, costuma ser usada para justificar vários atropelos à liberdade. Normalmente, quem a profere não está mesmo a falar dos limites da sua liberdade. A minha formulação "a minha liberdade acaba" faz parte do logro. É sempre da liberdade dos outros que se trata.»

Já me espanta um pouco mais que uma dirigente socialista que respeito, como Alexandra Leitão, navegue nas mesmas águas. Ao ponto de, nessa manhã de sexta-feira, quase ter intimado Aguiar Branco a retirar a palavra ao líder do Chega. Como se o presidente da AR tivesse alguma tutela sobre aquilo que os restantes 229 deputados afirmam, no pleno uso da liberdade que a Constituição lhes faculta.

 

Neste lamentável episódio, Mortágua faz o papel de José Sócrates, que em 11 de Julho de 2008, no mesmíssimo local, exigiu a Francisco Louçã - fundador e então deputado do BE - que tivesse «tento na língua». Enquanto bradava: «Eu não confundo a liberdade com a liberdade de insultar.» E perorava sobre «o excesso de liberdade que põe em causa a liberdade dos outros.» Nada mais triste.

Levou réplica sem demora.

«Entendo que qualquer vertigem censória nunca passará neste parlamento. Eu direi sempre aqui, na minha bancada e neste parlamento, tudo aquilo que quero dizer. E se algum dia alguém lhe disser a si para ter tento na língua, eu estarei a defendê-lo. A grandeza da democracia é defender também o direito de opinião de todos, sem excepção.» 

Palavras de Louçã nessa sessão parlamentar, ripostando a Sócrates em defesa intransigente da liberdade de expressão. Palavras que mereciam aplauso antes e continuam a merecer aplauso agora.

Que diferença. Que degenerescência do Bloco de Louçã para o actual bloco censório de Mariana Mortágua. Pronto a silenciar os outros - hipocritamente, em nome da liberdade.

Da ignorância galopante

Pedro Correia, 17.01.24

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Há umas semanas tropecei nesta legenda no canal televisivo AR, que exibe as sessões do hemiciclo de São Bento e preenche intervalos com pequenos documentários relacionados com a Assembleia da República. 

Quem a escreveu, quem a editou e quem a pôs no ar parece desconhecer em que faixa correcta deve circular a língua portuguesa. Comprovando que nem o órgão legislativo escapa ao analfabetismo funcional, algo de que eu já suspeitava.

Coitado do nosso Rei D. Luís, ali retratado - sem culpa nenhuma deste tuguês macarrónico, com timbre do parlamento. O presidente da AR, Augusto Santos Silva, devia reservar um pouco do tempo que gasta em «malhar na direita» para vergastar a ignorância galopante no Palácio de São Bento. Antes de abandonar de vez a função: já não falta muito.

Quem foram os melhores deputados?

Pedro Correia, 12.01.24

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Agora que os trabalhos parlamentares chegaram ao fim, com a Assembleia da República a ser formalmente dissolvida na próxima segunda-feira, venho perguntar-vos quem consideram ter sido os melhores deputados desta breve legislatura, iniciada em 29 de Março de 2022.

Podem indicar mais de um deputado, claro. E de vários partidos, como é evidente. Estou curioso por saber quais são as vossas escolhas.

Na morte de Odete Santos

Pedro Correia, 28.12.23

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Foto: Global Imagens

 

Quando Odete Santos abandonou por vontade própria a Assembleia da República, em 2007, deputados de todas as bancadas tributaram-lhe uma calorosa ovação em plenário. Acompanhei esse momento e questiono-me se aquela rara unanimidade voltaria a ser hoje possível, fosse quem fosse a figura em causa. Sinto-me inclinado a supor que não: os hábitos políticos mudaram muito, a crispação acentuou-se, as trincheiras foram-se aprofundando.

Odete estava há muito retirada dos palcos mediáticos. Depois do Parlamento, chegou a fazer teatro em Setúbal, cidade adoptiva desta jurista natural da Guarda. Era pessoa de verbo fácil e gargalhada espontânea. Não escondia o que pensava nem temia ser inconveniente, por vezes face ao próprio cânone do PCP, que representou durante 27 anos no hemiciclo de São Bento. «Calma, Odete» era a frase-bordão que lhe dizia o secretário-geral Carlos Carvalhas, ambos caricaturados nos bonecos da divertida e saudosa Contra-Informação da RTP.

Isso ficou patente, aliás, na entrevista que lhe fiz para o Diário de Notícias, a última que concedeu enquanto deputada. 

Quando lhe perguntei se devia haver «mais mulheres» na cúpula dirigente dos comunistas, ela não hesitou um segundo na resposta: «Sim. Deveria haver mais mulheres. Não tenho dúvidas nenhumas.»

 

Sempre simpatizei com ela. Tinha o coração ao pé da boca. Entre ortodoxos e moderados nas fileiras comunistas, alinhava com os primeiros. Mas não por cálculo ou conveniência: era isso o que sentia, era isso o que realmente pensava. Fazia parte da sua maneira de ser e da fidelidade de longa data ao magnético «camarada Álvaro» que a levou à militância no pós-25 de Abril.

No entanto, na rua Soeiro Pereira Gomes nem todos lhe apreciavam o estilo algo dissonante e a popularidade que granjeou fora das paredes partidárias. Odete nunca fez parte dos organismos executivos (Secretariado, Comissão Política), nunca foi líder parlamentar, nunca foi candidata presidencial - ao contrário dos cinzentos e sensaborões António Abreu, Francisco Lopes e Edgar Silva, funcionários diligentes mas totalmente desprovidos de carisma.

Apreciava teatro, cinema, literatura. Era vibrante declamadora de poesia. Gostava de acampar. Nunca fugia a um debate, mesmo com quem estivesse nos antípodas do seu pensamento: permanece na memória de muitos a sua vigorosa defesa de Cunhal, na RTP, como "maior português de sempre" num simulacro de concurso em que emergiu como vencedor Salazar, enaltecido por Jaime Nogueira Pinto. Nem D. Afonso Henriques, nem D. Dinis, nem D. João II, nem Vasco da Gama, nem Camões. A memória histórica é curta, os extremos exercem sobre muitos uma atracção irresistível. 

 

Nessa entrevista que lhe fiz em Abril de 2007, confessava abandonar o parlamento com «uma sensação de alívio». Saudades, só as «do futuro» - parafraseando o "poeta militante" José Gomes Ferreira. Deixando no entanto antever alguma mágoa: sentia que devia ter sido mais bem aproveitada pelo partido que nunca renegou. «Tenho pena de não ter criado condições para fazer trabalho de organização, que é importante.» Por uma vez, ficou-se pelas entrelinhas - aliás facilmente entendíveis.

Lembrei-me de várias ocasiões em que privei com ela - nomeadamente em campanhas eleitorais - ao saber ontem a triste notícia do seu falecimento, aos 82 anos. Era de um tempo em que vultos de diversos partidos se cruzavam nos corredores parlamentares sem confundirem divergência com ódio ou insulto ao adversário. Parece uma era já remota, nestes dias em que abunda o carreirismo político, cada um fala quase só para a sua bolha e as personalidades com voz própria e autonomia profissional estão cada vez mais distantes da vida parlamentar.

Não tenho a menor dúvida: a democracia portuguesa perde com isso.

Moçambique na nossa Assembleia da República

jpt, 25.10.23

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A boa política externa não se faz de modo tonitruante. E a boa diplomacia, dela instrumento, faz-se em surdina. Isto é axiomático. Em especial nas interacções entre países com relações históricas complexas, as quais podem potenciar interpretações ambivalentes dos discursos e acções das contrapartes. E mais ainda na interlocução entre antigos colonizadores e suas ex-colónias - com a escassa excepção dos três gigantes económicos americanos.

Por um lado, porque, respectivamente, numas dessas sociedades subsistem algumas tendências (até inconscientes, pois frutos de mundividências herdadas) "tutelares", e em outras vigoram tendências "reactivas", postulando ingerências ou mesmo ainda "colonialismo" em factos ou posições curiais, mesmo normais.

Mas, por outro lado, subsistem nos Estados ex-colonizadores concepções e dinâmicas emanadas do velho imperialismo, na demanda da preservação de "áreas de influência" geoestratégica e privilégio económico, sob evidente formato "neocolonial" - ainda que este não se restrinja a estas articulações.

Neste âmbito tem de se realçar que na sociedade portuguesa inexistem efectivas dinâmicas neocoloniais. Há alguma retórica política - em particular a do inepto mote "lusofonia" -, há tiques comportamentais, recorrentes em funcionários estatais de médio porte e agentes empresariais emanados do "tecido das PMEs" - evidentes frutos da fraca formação escolares desses núcleos profissionais. 

Mas tanto a CPLP - por mais que tenha sido idealizada como dínamo da relevância portuguesa -, como as nossas relações bilaterais com as ex-colónias, não têm sido vividas como instrumentos de ingerência e de imposição de privilégios. Esta inexistência não é apenas fruto de incapacidade económica, mas sim efeito de um percurso de recentramento pátrio numa Europa desenvolvimentista, e nisso reconfigurando a própria "identidade nacional". Assim esta inexistência neocolonial não é um defeito, é uma qualidade, não é uma fragilidade, é força. 

Isto é algo que pode ser intuído face á relevância de Portugal nas instâncias internacionais. Se éramos pais pária em 1974, rapidamente Portugal se tornou importante agente nas multilaterais, muito extravasando a nossa dimensão económica e geográfica. A reboque de algumas personalidades (Soares, principalmente), e assente na real e continuada excelência da nossa corporação diplomática - vítima de estereótipos negativos mas, de facto, núcleo peculiar da nosso funcionalismo. Mas, acima de tudo, pelo generalizado reconhecimento da platitude da política internacional da nossa democracia, nisso avessa ao tal imperialismo serôdio.

Preâmbulo longo para reflectir sobre uma votação ontem acontecida na Assembleia da República sobre Moçambique. Julgo necessário lembrar que Portugal e Moçambique não são "países irmãos" - como repete a incompetente retórica vigente. São "países aliados", algo formalizado na pertença desde o início na CPLP,  que em ambos coexiste com outras pertenças, e vivido através de vários vectores de robustas interacções. Ou seja, não nos une qualquer metafórica "consanguinidade"  de teor moral, mas sim uma "aliança", baseada em interesses estratégicos parcialmente confluentes. E parte fundamental dessa aliança presente é a comum adesão ao modelo democrático desenvolvimentista, vivido segundo as idiossincrasias de cada Estado soberano. 

Vive agora Moçambique uma crise política devida a um estrondoso derrame eleitoral. Na nossa AR a Iniciativa Liberal requereu ao governo um esclarecimento das suas considerações sobre esta matéria - a decorrer na devida e diplomática "porta fechada". É evidente o teor da proposta, uma forma moderada e assisada do nosso parlamento sinalizar à sociedade moçambicana, e ao seu Estado, a preocupação pela deriva naquele país. E de também de a fazer ecoar entre os congéneres, capitalizando o estatuto internacional a que acima aludi. Enquanto convoca o próprio governo a actuar, no devido tom recatado adequado à política externa.

Mas o requerimento foi liminarmente recusado pelos dois partidos de poder. O PSD considerou não ser curial que a AR se pronuncie sobre processos eleitorais alhures. Julgo que a incoerência em política é muitas vezes necessária e até sábia. Mas tem limites - recordo que o PSD, decerto que entre outras ocasiões, propôs há poucos anos um voto parlamentar sobre repressão policial e eleições na Venezuela. Friso, não comparo os dois países, noto a incompetente incoerência do PSD. E o PS refutou o pedido argumentando estar o caso eleitoral moçambicano entregue aos tribunais nacionais, elidindo a questão política que aquele país enfrenta.

Sem rebuço, a democraticidade moçambicana não é um processo ascendente. Desde há anos que há uma deriva autoritária. Eximo-me a elencar exemplos, que foram sendo noticiados. A democracia, "sempre corrompivel, sempre perfectível", como disse o liberal (de esquerda) Norberto Bobbio ali descamba em deslize acentuado. Não aponto nenhuma "virtude" nos partidos oposicionistas nem qualquer mácula ôntica ao partido do poder. Apenas noto a antecâmara do descalabro - tal como algumas figuras do próprio poder temem.

E nesse âmbito esteve muito bem a jovem IL ao querer sinalizar à sociedade moçambicana, e ao seu Estado, a nossa preocupação com o destino do entre o Maputo ao Rovuma, numa verdadeira afirmação do "estamos juntos". E demonstraram-se exauridos o PS e o PSD, exaustos na sua filiação a uma "real politik"... irrealista, abdicando de um verdadeiro papel de aliado. E, crede, condenando-nos através dessa aparente real politik a uma crescente irrelevância do Zumbo às águas do Índico. 

A culpa é do Passos

Pedro Correia, 20.07.23

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O autoproclamado «presidente do Sindicato dos Portugueses» estará hoje em palco na bancada do Governo na Assembleia da República. Pronto a repetir a proeza do debate do Estado da Nação de 2022, quando não respondeu a uma só pergunta que lhe fizeram.

Apesar de tudo, revelou mais consideração pelos deputados do que pelos jornalistas. A estes, agora não permite sequer que lhe façam perguntas. Talvez já a pensar na comemoração dos 50 anos do 25 de Abril. Sempre em defesa do sacrossanto "direito à informação".

A culpa, claro, é do Passos.

Parece ter sido esta senhora

Pedro Correia, 06.07.23

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Não foi, mas até parece ter sido esta senhora - Eugénia Cabaço, a inefável chefe de gabinete do Galamba - a redigir o relatório preliminar da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP.

Branqueia a concessão ilegal de uma indemnização de meio milhão de euros a Alexandra Reis autorizada por Pedro Nuno Santos. Esconde a descarada ingerência do poder político na gestão da transportadora aérea. Faz de conta que não aconteceu a "reunião preparatória" da ex-CEO da TAP com deputados socialistas para fixarem o guião das declarações que ela prestaria ao parlamento. Omite as coboiadas no Ministério das Infraestruturas na noite de 26 de Abril. Suprime a polémica intervenção do SIS para recuperar "segredos de Estado" contidos no portátil de um adjunto. Escamoteia a cascata de "inverdades" do ministro ainda em funções. Não faz sequer uma alusão aos 3,2 mil milhões de euros que o Governo injectou na TAP - extorquindo para o efeito cerca de mil euros a cada família portuguesa. 

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Autêntico tira-nódoas. Excelente contributo do PS para o descrédito das instituições e o crescimento exponencial dos populismos.

Se fosse

Pedro Correia, 16.06.23

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Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, foi esta manhã convidada de honra da Assembleia da República, tendo participado na tribuna de São Bento, ao lado de Augusto Santos Silva, na sessão parlamentar, onde discursou e respondeu a questões que lhe foram dirigidas de todas as bancadas.

Após a intervenção que ali fez, os deputados do Bloco de Esquerda e do PCP recusaram aplaudir a convidada. Se fosse um ditador "socialista", até pediam autógrafo.

A lei da rolha na Casa da Democracia

Pedro Correia, 25.05.23

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Na Assembleia da República, nota-se mais que nunca o rolo compressor da maioria absoluta. Transformando o parlamento numa caixa de ressonância do PS. Só ontem, os socialistas chumbaram seis pedidos de audição apresentados por vários grupos parlamentares na comissão de inquérito à TAP. Com este veto rosa, a mando de António Costa, não irão ali depor o director nacional da PSP, o ministro da Administração Interna, o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, o director do SIS e a secretária-geral do SIRP (Sistema de Informações da República Portuguesa). Além do próprio chefe do Governo, que tinha a prerrogativa de esclarecer por escrito várias questões essenciais como estas, que continuam sem obter resposta:

- Qual foi o membro do Governo que decidiu accionar o SIS (Serviço de Informações de Segurança) para contactar um cidadão, quadro qualificado de um ministério da República Portuguesa, altas horas da noite, fazendo lembrar tempos de má memória?

- Que documentação estratégica relevante para o Estado português havia no computador portátil do ex-adjunto do ministro das Infraestruturas?

- A recuperação de computadores portáteis na via pública insere-se no âmbito das competências legais do SIS?

- É verdade que foi o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, António Mendonça Mendes, a autorizar ou mesmo a incentivar o ainda ministro João Galamba a accionar o SIS para a recuperação do referido computador?

- Por que motivo este secretário de Estado, mencionado expressamente por Galamba, ainda não proferiu qualquer declaração sobre tão relevante tema, como se tivesse feito voto perpétuo de silêncio?

- Terá Galamba mentido também ao mencionar Mendonça Mendes?

 

Estranho conceito de democracia, este do PS. Impõe a lógica aritmética em São Bento com o mesmo despudor que sempre criticou durante a maioria absoluta de Cavaco Silva, nas décadas de 80 e de 90.

Mas os tempos agora são outros, pouco propícios a qualquer tipo de omertà. A eficácia deste rolo compressor vai ser testada nos tempos mais próximos. Entretanto, custa-me ver deputados socialistas que estimo e respeito, como Pedro Delgado Alves, Jorge Seguro Sanches, Alexandra Leitão e Sérgio Sousa Pinto, de algum modo associados à imposição da lei da rolha na Casa da Democracia.

Nave de loucos

Pedro Correia, 19.05.23

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Foto: Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

 

Admitiu não ter lido na íntegra o plano de reestruturação da TAP. Mostrou ignorar o protocolo de segurança no Ministério das Infraestruturas para casos de emergência e não fazer a menor ideia de como se classifica um documento oficial. Apontou, entre os motivos que o levaram a exonerar Frederico Pinheiro por telefone, o facto de este «tirar fotocópias a horas impróprias». Reconheceu que toda a documentação mais relevante - incluindo dez documentos classificados como confidenciais! - estava no computador deste adjunto, que trabalhou desde 2017 em gabinetes de três governos socialistas. Confiava nele ao ponto de o ter reconduzido como elemento de ligação entre o ministério e a administração da TAP e de não contar com mais ninguém, no seu gabinete, que percebesse a fundo deste tema - por sinal o mais importante de quantos tem para gerir. Espantosamente, três semanas depois, ainda não substituiu o adjunto exonerado. 

E que mais? Na noite de 26 de Abril, a sua chefe de gabinete ligou por iniciativa própria aos serviços de informações, accionando a intervenção do SIS - à margem das normas legais - para recuperar um portátil, na via pública, perto da meia-noite. Comunicou aos deputados que naquele serão alucinante falou em poucas horas, sobre o mesmo assunto, com o ministro da Administração Interna, com o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, com a ministra da Justiça e (já de madrugada) com o primeiro-ministro. Mobilizando a PSP e a Polícia Judiciária, além do "James Bond tuga".

Quase meio governo em estado de alerta máximo por causa dum computador portátil. E António Costa apanhado a mentir. Sabe-se agora que o titular das Infraestruturas lhe deu nota sobre a intervenção da "secreta", quando a 1 de Maio o primeiro-ministro havia garantido aos portugueses: «Ninguém no Governo deu ordens ao SIS.»

Eis o resumo do longo depoimento - mais de sete horas - de João Galamba, iniciado às 18 horas de ontem, na comissão parlamentar de inquérito à TAP, e terminado já nesta madrugada. Penosa sessão, que torna ainda mais deplorável a presença no Governo deste ministro a quem o Presidente da República já tirou o tapete mas que António Costa tem insistido em segurar, num incompreensível assomo de insanidade política.

Porque a impreparação, a imaturidade e a irresponsabilidade do ainda ministro transformaram este governo numa nave de loucos.

"Opera buffa"

Pedro Correia, 18.05.23

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Como jornalista, acompanhei centenas de sessões parlamentares. Nunca vi nada como aquilo que aconteceu ontem.

Um ex-adjunto do Governo, que durante quatro anos desempenhou funções de inegável responsabilidade no Ministério das Infraestruturas, descreveu várias cenas ali ocorridas no dia 26 de Abril. Todas dignas de um filme de série B. Foi exonerado por chamada telefónica pelo ministro, que berrou com ele e o insultou em termos grosseiros («Demito-te para não te dar dois murros», terá dito), viu-se sequestrado pela chefe de gabinete e três assessoras, trancaram-no na garagem onde tinha a bicicleta, teve de ser ele próprio a chamar a PSP para conseguir sair do edíficio.

Mais: quase à meia-noite, um suposto agente do SIS contactou-o para ele devolver o computador portátil de serviço que levara do gabinete para dele extrair ficheiros pessoais. O tal sujeito ameaçou-o dizendo que ele próprio (007 Tuga) estaria a ser «muito pressionado» para reaver tão precioso objecto. E - conforme ficou lavrado em acta na comissão parlamentar de inquérito à TAP - terá dito, ao jeito de intimidação pidesca de outros tempos: «É melhor resolvermos isto a bem, senão pode complicar-se...»

Perto da meia-noite, à porta da residência do visado.

 

Nada tão grave, em toda esta série de rocambolescos episódios que têm como protagonista o inimitável João Galamba, como confirmar que os serviços de informações da República Portuguesa agem como guarda pretoriana do Governo.

Podia ser apenas uma questão de abuso do poder socialista, mas é mais do que isso: tornou-se uma questão de regime. De irregular funcionamento das instituições.

Isto já não é um governo: é uma opera buffa. Com final anunciado.

 

SUGESTÕES DE LEITURA:

Galamba não deu dois socos em Frederico, mas esmurra Costa até ao KO. Da Ana Sá Lopes, no Público.

João "dois socos" Galamba e um gabinete em roda livre. Do João Miguel Tavares, no Público.

As atitudes do Presidente do Parlamento.

Luís Menezes Leitão, 28.04.23

Protestos de deputados houve muitos na história do nosso Parlamento, como se lembra muito bem neste excelente artigo. O PCP já se levantou e saiu da sala quando Ronald Reagan entrou na Assembleia, o que o levou a comentar que as cadeiras do lado esquerdo não deveriam ser muito confortáveis. E o Bloco de Esquerda já se apresentou no Parlamento com t-shirts com a bandeira da II República espanhola, quando o Rei Filipe VI discursava, recusando-se depois a participar na sessão de cumprimentos. Por isso os cartazes do Chega e a redução da Iniciativa Liberal a um deputado podem ser atitudes desrepeitosas e mesmo ridículas, mas não correspondem a nada que não se tenha já visto em São Bento.

A novidade foi a reacção do Presidente do Parlamento, que não me lembro de alguma vez ter ocorrido em situações anteriores. Mas o mais grave foi a patética conversa do Presidente do Parlamento, gravada em vídeo, que demonstrou o carácter artificial da sua reacção. Na verdade, olhando para a cena, o mesmo parecia um actor a perguntar aos outros actores da cerimónia a forma como avaliavam a sua prestação. No fundo tudo isto pareceu uma encenação para efeitos da campanha presidencial de Santos Silva.

O Presidente do Parlamento é a segunda figura do Estado. Não pode comportar-se como se fosse um actor político em campanha. Isto só contribui para aumentar o desprestígio do Parlamento, colocando em causa a autoridade do seu Presidente.

Dois deputados que deixaram saudades

Pedro Correia, 26.04.23

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O 25 de Abril fez-se para fundar uma democracia representativa em Portugal, sufragada pelo voto universal e livre dos cidadãos. Mas raras vezes, ano após ano, vejo homenagear esse órgão concreto da democracia - com o qual tantos sonharam durante gerações - que é a Assembleia da República, símbolo supremo do nosso regime constitucional.

Espero que este lapso seja corrigido e que em 25 de Abril de 2024, quando a Revolução dos Cravos comemorar meio século, possam ser homenageados 50 deputados, de diferentes partidos. Deputados que nunca foram ministros nem secretários de Estado nem presidentes de câmara nem presidentes de governos regionais: apenas deputados. Seria uma excelente forma de assinalar a instituição máxima da democracia portuguesa.

 

Fui repórter parlamentar do Diário de Notícias durante cinco anos e, nessa qualidade, tive o privilégio de conhecer competentíssimos deputados em todas as bancadas. A pretexto do 25 de Abril, quero distinguir dois desses parlamentares que conheci pessoalmente: Maria José Nogueira Pinto e João Amaral. Ela claramente de direita, ele inequivocamente de esquerda.

Em legislaturas marcadas por fortes combates políticos, nenhum dos dois alguma vez cessou de tomar partido, envolvendo-se convictamente no confronto de ideias que é função cimeira do órgão parlamentar: sabia-se ao que vinham, por que vinham, que causas subscreviam e que bandeiras ideológicas sustentavam. Mas também sempre vi neles capacidade para analisar os argumentos contrários, com elegância e lealdade institucional, sem nunca deixarem as clivagens partidárias contaminarem as saudáveis relações de amizade que souberam travar com adversários políticos.

Porque a democracia também é isto: saber escutar os outros, saber conviver com quem não pensa como nós.

 

Lembro-me deles com frequência. Como me lembro das sábias palavras que Giorgio Napolitano proferiu em 2013, ao tomar posse no segundo mandato como Presidente italiano. «O facto de se estar a difundir uma espécie de horror a todas as hipóteses de compromisso, aliança, mediações e convergência de forças políticas é um sinal de regressão», declarou neste notável discurso Napolitano, que aos 97 anos ainda é um dos políticos mais respeitados da turbulenta e caótica Itália.

Palavras que deviam suscitar meditação entre nós. Palavras que a conservadora Maria José Nogueira Pinto e o comunista João Amaral decerto entenderiam - desde logo porque sempre souberam pôr os interesses do País acima de tacticismos políticos.

Quis o destino, tantas vezes cruel, que já não se encontrem fisicamente entre nós. Mas o exemplo de ambos perdura, como símbolo de convicções fortes que - precisamente por isso - são capazes de servir de cimento para edificar pontes. E talvez nunca tenhamos precisado tanto dessas pontes como agora.

Contra Putin, em defesa da Ucrânia

Pedro Correia, 25.02.23

Este foi um dos melhores discursos que tenho ouvido em muitos anos na Assembleia da República. Proferido ontem pelo deputado socialista Sérgio Sousa Pinto. Criticando, com uma sagaz lição de História, a inaceitável invasão da Ucrânia há um ano pela tropa armada do ditador russo. 

«Aprendemos e temos o dever de não esquecer: uma potência revisionista, confiante na sua força, não pode ser apaziguada. Só pode ser dissuadida pela força e, se necessário, enfrentada pelas armas.»

«As pombas da paz, que um ano volvido sobre a invasão da Ucrânia gemem pelo compromisso a todo o custo, escolheram ignorar a História. Fazem-no por ingenuidade, ódio persistente ao Ocidente ou revanchismo contra as democracias liberais, os regimes que saíram triunfantes da desordem do século XX.»

«Se a coragem e o sacrifício do povo ucraniano bem como o apoio do Ocidente fraquejarem, e a actual situação no terreno congelar de facto ainda que não de direito, a Ucrânia como nação livre perecerá como a Checoslováquia pereceu [em 1938]. Uma Rússia que se estenda das portas de Odessa aos confins do Donbass guardará as chaves de uma Ucrânia indefesa e praticamente inviável. Uma paz cujos termos sejam ditados pela Rússia de Putin será sempre uma paz provisória, uma paz que não valerá o papel em que for assinada, uma paz que apenas adiará o fatal desaparecimento da Ucrânia como Estado soberano.»