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Delito de Opinião

Leituras

Pedro Correia, 13.07.24

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«Paris é um daqueles lugares que nos devolvem o que lhes damos: uma cidade maravilhosa, aberta e generosa para quem triunfa (no amor, no trabalho), mas cruel e humilhante para quem fracassa.»

Juan Gabriel Vásquez, Canções para o Incêndio (2018), p. 91

Ed. Alfaguara, 2023. Tradução de Guilherme Pires

Notre Dame recordada e reconstruída

João Pedro Pimenta, 18.04.24
Esta semana revi um filme de há apenas dois anos sobre um acontecimento ocorrido há cinco: Notre Dame Brûle, no original. Na altura não me lembrei logo que passavam 5 anos do pavoroso incêndio da igreja-mãe dos franceses. O filme assou discretamente nas salas, apesar de ser de um cineasta consagrado, Jean Jacques Anaud, e é pena. Com emoção e adrenalina q.b., mostra todo o processo do incêndio e as dinâmicas dos intervenientes: dos bombeiros para apagar as chamas sem provocar o colapso de todo o edifício, embora não evitando a destruição da flecha central, dos responsáveis de conservação para salvar as relíquias lá guardadas (com algumas cenas burlescas, como a vinda desesperada do curador para apanhar um comboio suburbano para Paris), das autoridades e das decisões difíceis a tomar, dos parisienses e a sua angústia e dos fiéis e a sua fé, reunidos em vigília e orando frente à catedral.
 
Lembro-me de, quando se abriram as portas, a nave central estar coberta de escombros, cinza e água, mas de se ver nitidamente a cruz do altar-mor. Ainda pairou o receio de as estruturas cederem e a fechada colapsar, e, optimisticamente, esperava-se uma reconstrução possível para quase dez anos. Macron prometeu que seriam cinco. Entretanto, o desastre deu origem ao filme descrito supra e até uma série francesa na Netflix.
 
E a verdade é que 5 anos depois as obras estão mesmo a ser concluídas e a abertura da catedral totalmente reconstruída está prevista para 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, com a presença do Papa. Os cinco anos cumpriram-se e até já há nova "flecha" a substituir a erguida por Violet le Duc. Houve projectos de inovações no edificado, alguns de fugir, mas contra as previsões mais pessimistas e as sensações apocalípticas desse 15 de Abril de 2019, Notre Dame de Paris vai recuperar a imagem que tinha antes do incêndio, e espero, o seu coro magnífico e os sons do  Emmanuel (o enorme sino, não o Macron). Até parece milagre.
 
(Notre Dame em obras, Maio de 2022).
Pode ser uma imagem de barco e a Basílica do Sagrado Coração

Esperança entre pedras fumegantes

João Pedro Pimenta, 16.04.19

Vi e ouvi o mais belo coro de que tenho memória na Catedral de Notre Dame, há já demasiados anos. Quando se calou, houve um breve silêncio até alguns visitantes orientais desatarem a aplaudir, perante algum espanto e divertimento dos que assistiam à missa.


Com as imagens do último dia vieram-me outras recordações à memória, como a do Emmanuel, o grande sino  da Catedral, que vejo agora ser da época de Luís XIV, e que apenas levemente tocado já soava respeitosamente alto. Ver a "Igreja mãe de França", que resistiu miraculosamente a guerras mundiais e revoluções, deixa-nos num desespero impotente. Quando é que será novamente possível ouvir o seu coro divino?

 

Mas logo as primeiras imagens do interior de Notre Dame faziam adivinhar que nem tudo está perdido. O fogo não consumiu todo o interior, mas o centro da nave, por baixo do coruchéu que ruiu, está severamente danificado. Salvaram-se algumas das relíquias mais preciosas e até marcantes, como a suposta coroa de espinhos e o manto de S. Luís, mas o destino de boa parte é ainda incerto. Em todo o caso, o altar-mor resistiu. A cruz que o encima, essa, está lá. Como sempre.

 

O desastre afectou severamente a catedral, mas não a vergou. Parece até ter criado uma certa união e um novo espírito de esperança aos franceses. E Paris já passou por outras provações. Em 1871, depois de um cerco de meses, de ter perdido a guerra com a Prússia, de ver o seu próprio Imperador prisioneiro dos germânicos e da república ser proclamada, a Comuna pôr a cidade do Sena a ferro e fogo, destruindo numerosos edifícios antes de ser violentamente esmagada. A França estava de rastos. Pois em dez anos pagou todas as imensas indemnizações de guerra, reconstruiu os edifícios destruídos (à excepção do Palácio das Tuilleries, do qual ficaram os jardins, por razões políticas) e ainda organizou a exposição Mundial de 1878, como prova da sua vitalidade. Notre Dame de Paris voltará a ser a Igreja Mãe dos franceses.

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas e interiores

Assombro e dor

Pedro Correia, 16.04.19

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A sensação é de enorme consternação, de profunda tristeza. Direi mais: é de luto. Hoje, como centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, sinto-me enlutado. Pela perda irreparável da catedral das catedrais. Notre-Dame, que sobreviveu incólume a incontáveis guerras, escapou à carnificina de dois conflitos mundiais e em 1944 se manteve imune à desvairada ordem de Hitler, que queria ver Paris a arder, acaba de ser praticamente reduzida a escombros. No início da Semana Santa, num dia em que o Presidente francês anunciara um discurso à nação. 

Ver as imagens das chamas a devorarem o edifício medieval, jóia absoluta da arquitectura gótica, marco da espiritualidade universal, símbolo supremo da cultura cristã que é também matriz europeia, dilacera todos quantos algum dia ali haviam entrado - e fomos muitos, pois Notre-Dame recebia cerca de 13 milhões de visitantes por ano, gente de todas as crenças e todas as latitudes.

O mundo em que vivemos é um mundo em contínua perda de referências, que padece de uma confrangedora falta de memória. O pavoroso incêndio que destruiu Notre-Dame acaba de nos cortar mais um emblemático vínculo às gerações precedentes. Tudo se torna cada vez mais precário e descartável. Assente num passado sem vestígios, o futuro já nasce mutilado.

Notre-Dame, cujos alicerces são contemporâneos da fundação de Portugal, demorou quase dois séculos a ser erguida. Para a destruir bastaram duas horas. E nós a assistirmos, num silêncio impotente e magoado, feito de assombro e dor.

Nossa Senhora de Paris

jpt, 15.04.19

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À notícia do incêndio da Notre-Dame acorri à tv, deixando-me diante da (tão desiludida) France2. É uma desgraça, por tantos sentida como que se quase pessoal - "notre-dame" é como se a igreja de todos, verdadeiro nome próprio assim como se a tratássemos por "tu", muito  mais do que a catedral de Pedro, a romana, que traduzimos, dando-lhe assim a terceira pessoa. Coisa, ligação, um pouco devida a Victor Hugo mas mais ainda, até porque Hugo é mais falado do que lido, da época ainda recente em que Paris foi centro cultural do mundo, e depois turístico, "uma festa" alguém disse, ou talvez fosse mais um "simpósio" que o autor quisesse subentender, mas pouco importa agora, hoje, esse esmiuçar.

E logo me lembrei do "Paris Já Está a Arder?", o célebre livro tão marcante para a minha geração - e para a anterior. Tendo Hitler mandado arrasar a cidade na retirada de 1944, o generalato alemão, apesar dos constrangimentos que tinha - após o atentado a Hitler, e até talvez mesmo antes, as famílias dos oficiais superiores, eram reféns, e talvez isso tenha explicado o suicídio de Rommell -, recusou-se a cumprir essas ordens. Por isso ficou a cidade salvaguardada, imune aos catastróficos efeitos da II Guerra Mundial, ao invés de tantas outras cidades europeias, hoje pejadas de réplicas de um passado, sem "patine", algumas mesmo verdadeiros fantasmas - lembro sempre o meu espanto, numa era bem pré-internet, de tão menos informação detalhada, quando cheguei a Sofia: não havia nada antigo, um mono de arquitectura estalinista, e na qual os restos da velha e tão importante cidade romana cabiam na esplanada de um café lisboeta.

Venho aqui ecoar essas sensações e noto que Luís Menezes Leitão já explicitou as mesmas memórias. Não serei tão escatológico como ele. A F2, às 9 horas, já fala de reconstrução, mostrando espírito estóico, resistente, exemplo de ânimo. E ali se lembra como a catedral de Reims foi incendiada pelos bombardeamentos da I Guerra Mundial, e depois reconstruída.

Nesta desgraça ficam-me, assim em cima do momento, três pontos: a verdadeira irrelevância da "espuma dos dias", depois de ter cruzado este dia na expectativa da ansiada (pela imprensa francesa e belga) comunicação de Macron, programada para o fim do dia de hoje, prevista para culminar estes meses de verdadeira insurgência dos "coletes amarelos". Que interessará isso, agora? E a consciência, tantas vezes esquecida, do quão perecível é a (grande) obra humana, afinal o tal mero pó que a pó voltará, depois do catastrófico incêndio do Museu Nacional do Rio no ano passado e da demência fundamentalista em Palmira (e do saque do museu de Bagdad, aquando da queda de Hussein, cujas verdadeiros danos desconheço).

E um terceiro dado, pouco simpático para esta noite: todos os dias, há imensos anos, são devastadas áreas muitíssimos mais alargadas de floresta virgem do que a área da Nossa-Senhora de Paris. De modo irrecuperável, pois não passíveis de serem reconstruídas mesmo que sem a tal indizível "patine", como o será a catedral. Uma destruição rotineira e avassaladora que não causa qualquer comoção generalizada. Por mero, e catastrófico, antropocentrismo. Choramos, de modo lancinante até, o perecer da obra humana. E encolhemos os ombros ao devastar da obra natural. Divina, para tantos. Que depois se dizem, sabe-se lá porquê, crentes num desenho e desígnio divino.

Só um paupérrimo antropocentrismo pode justificar estas sensibilidades. Nada religiosas. E, mais do que tudo, verdadeiramente incultas. Por mais lágrimas répteis que finjam verter hoje.

Paris já está a arder.

Luís Menezes Leitão, 15.04.19

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A destruição de Notre Dame por um violento incêndio representa o dobre a finados da civilização ocidental. O que nem Hitler conseguiu fazer, é agora conseguido em pleno séc. XXI. Tenha sido isto o resultado de um acto terrorista ou da simples negligência daqueles a quem competia cuidar do monumento, neste momento não interessa. Uma das maiores criações do espírito humano, que inspirou o génio de Victor Hugo, desaparece hoje. É um dia triste para todos aqueles que lutam pela nossa civilização e pela preservação da memória da Europa.

Ler (sobre o massacre em Paris)

Pedro Correia, 16.11.15

Paris sous l' attaque. Do João Pedro Pimenta, n' A Ágora.

La Palice. Do Luís Novaes Tito, n' A Barbearia do Senhor Luís.

La nausée. De António Araújo, no Malomil.

A guerra explicada às criancinhas. De Vítor Cunha, no Blasfémias.

Paris. De Francisco Seixas da Costa, no Duas ou Três Coisas.

Medo. Da Cristina Nobre Soares, no Em Linha Recta.

Surrealismo... De Rita Carreira, n' A Destreza das Dúvidas.

Popper e Cristo em Paris. De Pedro Norton, no Escrever é Triste.

Ser e fazer tudo aquilo que eles detestam. Da Daniela Major, no Aventar.

Carry on. Do Luís M. Jorge, na Vida Breve.

Algo por que lutar - a outra faceta da Humanidade

José António Abreu, 16.11.15

Tu, o guardião das fronteiras

Rui Rocha, 15.11.15

Pensa numa sala de espectáculos. Por exemplo, o Bataclan, em Paris. Pode ser? Agora, imagina que, por absurdo que possa parecer, durante um concerto, o Bataclan é tomado de assalto por terroristas. Estão lá dentro terroristas, três ou quatro, e muitos inocentes. Imagina agora que te cabe a ti tomar uma decisão sobre uma questão fundamental: em nome da segurança dos que estão cá fora, podes mandar fechar as portas e manter uns e outros lá dentro, abandonando-os à sua sorte. Uma decisão terrível, não é? Pois é precisamente essa a decisão que queres que seja tomada quando defendes que se fechem as fronteiras da Europa aos refugiados.

Resistir ao alarmismo e às conclusões precipitadas (II)

Rui Rocha, 15.11.15

"However, a U.S. intelligence official told CBS News the Syrian passport might be fake. The official said the passport did not contain the correct numbers for a legitimate Syrian passport and the picture did not match the name."

 

Isto é, impõe-se prudência na análise dos factos. Há pelo menos as seguintes possibilidades: a) o terrorista utilizou um passaporte falso para entrar na Grécia; b) o FBI tinha informação prévia sobre a fotografia ou o nome e estes não batem certo com os dados do passaporte; c) o refugiado vendeu o passaporte ou este foi-lhe roubado; d) o passaporte pode ou não pertencer ao terrorista. 

Resistir ao alarmismo e às conclusões precipitadas

Rui Rocha, 14.11.15

O terrorismo alimenta-se do ódio. Uma Europa que acolhe refugiados fura o cerco do ressentimento, dá exemplo de solidariedade. Não há nada mais devastador para o discurso dos sanguinários. Um passaporte de um refugiado sírio no local de um dos ataques nada nos diz sobre a forma como lá chegou. Quem mata inocentes com gélida indiferença, também leva consigo um passaporte forjado, roubado, para instigar no lado dos bons a irracionalidade que lhe convém. E ainda que se comprove que alguém se infiltrou para abusar da boa vontade dos que recebem, continua a ser fundamental não fazer o jogo do terror. Ainda aí é preciso separar o trigo do joio, não tomar a árvore pela floresta. Vencer é, para começar, resistir ao alarmismo e às conclusões precipitadas.

O dia em que os maus nos encerraram a Disneylandia

Rui Rocha, 14.11.15

Um dos aspectos mais perturbadores de alguns testemunhos vistos nas televisões é o da incapacidade que temos para reconhecer a barbárie quando nos cruzamos com ela. Uma das pessoas referia que esperou uns momentos para ver se as balas eram a sério. Outra dizia que lhe parecia estar a assistir a um filme. Esta é simultaneamente a melhor homenagem que podemos fazer àquilo a que chamamos Ocidente e a nota que revela a nossa maior fragilidade. Há, certamente, violência nas nossas sociedades. Mas essa violência é marginal nas nossas vidas. Marginal no sentido que não toma conta do nosso dia-a-dia. Marginal no sentido de que a consideramos inadmissível. Em geral, para nós, "parisienses", a violência é a dos filmes. A dos filmes a que assistimos desde crianças e que os nossos pais, para nos sossegarem, nos diziam que era a fingir. Como eram a fingir os tiros que dávamos uns aos outros nas lutas de índios e cowboys com que entretínhamos as tardes dos Verões em que éramos meninos. Ou as pistolas de fulminantes que tu e eu tivemos ou as Nerfs que demos aos nossos filhos. Temos a felicidade (tivemos?) de viver num tempo e numa época em que a violência é (foi?) de tal forma distante e inofensiva que fizemos dela parte das nossas ficções e brincadeiras.É por isso que estamos tão indefesos quando ela nos rebenta à porta de casa. Não acreditamos, sequer, que seja possível. Viola não só as nossas regras, os nossos códigos, como, sobretudo, a nossa experiência de vida. Não é por acaso que alguns de nós só se apercebem da gravidade real da situação, ou melhor, da grave realidade que ela tem, quando constatamos, chocados, que hoje em Paris, por causa dos maus, nos fecharam a Disneylandia.

Mais inseguros e menos livres

Pedro Correia, 14.11.15

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Este é o maior problema da Europa actual: a liberdade seriamente condicionada pelos seus mais encarniçados inimigos. Paris, outrora Cidade-Luz, é hoje cidade ensanguentada pelo fanatismo mais extremista.

Somos todos, a partir de agora, um pouco menos livres. E trocaremos cada vez mais parcelas de liberdade em troca de segurança. Dilema ilusório. Porque nos alicerces da nossa civilização - que o terrorismo islâmico combate sem tréguas - liberdade e segurança são conceitos indissociáveis. Um não faz sentido sem o outro.

Hoje estamos todos mais inseguros e menos livres. É um dia de júbilo para os cultores da barbárie, que não estão algures em parte incerta.

Estão aqui, no meio de nós.

Texto reeditado