À notícia do incêndio da Notre-Dame acorri à tv, deixando-me diante da (tão desiludida) France2. É uma desgraça, por tantos sentida como que se quase pessoal - "notre-dame" é como se a igreja de todos, verdadeiro nome próprio assim como se a tratássemos por "tu", muito mais do que a catedral de Pedro, a romana, que traduzimos, dando-lhe assim a terceira pessoa. Coisa, ligação, um pouco devida a Victor Hugo mas mais ainda, até porque Hugo é mais falado do que lido, da época ainda recente em que Paris foi centro cultural do mundo, e depois turístico, "uma festa" alguém disse, ou talvez fosse mais um "simpósio" que o autor quisesse subentender, mas pouco importa agora, hoje, esse esmiuçar.
E logo me lembrei do "Paris Já Está a Arder?", o célebre livro tão marcante para a minha geração - e para a anterior. Tendo Hitler mandado arrasar a cidade na retirada de 1944, o generalato alemão, apesar dos constrangimentos que tinha - após o atentado a Hitler, e até talvez mesmo antes, as famílias dos oficiais superiores, eram reféns, e talvez isso tenha explicado o suicídio de Rommell -, recusou-se a cumprir essas ordens. Por isso ficou a cidade salvaguardada, imune aos catastróficos efeitos da II Guerra Mundial, ao invés de tantas outras cidades europeias, hoje pejadas de réplicas de um passado, sem "patine", algumas mesmo verdadeiros fantasmas - lembro sempre o meu espanto, numa era bem pré-internet, de tão menos informação detalhada, quando cheguei a Sofia: não havia nada antigo, um mono de arquitectura estalinista, e na qual os restos da velha e tão importante cidade romana cabiam na esplanada de um café lisboeta.
Venho aqui ecoar essas sensações e noto que Luís Menezes Leitão já explicitou as mesmas memórias. Não serei tão escatológico como ele. A F2, às 9 horas, já fala de reconstrução, mostrando espírito estóico, resistente, exemplo de ânimo. E ali se lembra como a catedral de Reims foi incendiada pelos bombardeamentos da I Guerra Mundial, e depois reconstruída.
Nesta desgraça ficam-me, assim em cima do momento, três pontos: a verdadeira irrelevância da "espuma dos dias", depois de ter cruzado este dia na expectativa da ansiada (pela imprensa francesa e belga) comunicação de Macron, programada para o fim do dia de hoje, prevista para culminar estes meses de verdadeira insurgência dos "coletes amarelos". Que interessará isso, agora? E a consciência, tantas vezes esquecida, do quão perecível é a (grande) obra humana, afinal o tal mero pó que a pó voltará, depois do catastrófico incêndio do Museu Nacional do Rio no ano passado e da demência fundamentalista em Palmira (e do saque do museu de Bagdad, aquando da queda de Hussein, cujas verdadeiros danos desconheço).
E um terceiro dado, pouco simpático para esta noite: todos os dias, há imensos anos, são devastadas áreas muitíssimos mais alargadas de floresta virgem do que a área da Nossa-Senhora de Paris. De modo irrecuperável, pois não passíveis de serem reconstruídas mesmo que sem a tal indizível "patine", como o será a catedral. Uma destruição rotineira e avassaladora que não causa qualquer comoção generalizada. Por mero, e catastrófico, antropocentrismo. Choramos, de modo lancinante até, o perecer da obra humana. E encolhemos os ombros ao devastar da obra natural. Divina, para tantos. Que depois se dizem, sabe-se lá porquê, crentes num desenho e desígnio divino.
Só um paupérrimo antropocentrismo pode justificar estas sensibilidades. Nada religiosas. E, mais do que tudo, verdadeiramente incultas. Por mais lágrimas répteis que finjam verter hoje.