Hoje a minha mãe faz 80 anos e eu estou tão contente que resolvi ir repescar um texto que escrevi sobre ela há uma data de anos, que permanece perfeitamente actual. Diz assim:
A minha mãe é uma pessoa fora de qualquer padrão, que combina em si vários ingredientes contraditórios. Tem uma pitada de loucura conjugada com uma enorme dose de bom senso. Dá conselhos sábios mas é incapaz de lidar com dois comandos ao mesmo tempo. Nunca tirou a carta de condução porque é muito distraída e sabia de antemão que não era boa ideia sentar-se ao volante de um carro. Mas sempre soube instintivamente ajudar a conduzir a vida de cada um dos filhos.
Uma vez disse-me, em tom de brincadeira, que tinha a certeza de que sofria de uma qualquer síndrome que ainda não tinha sido descoberta pela ciência. Não era Alzheimer, não era Parkinson, seria uma qualquer combinação das duas, com alguns acrescentos, a que a medicina ainda iria um dia dar um nome.
Quando dá uma opinião socorre-se generosamente de gestos grandiosos e expressivos para sublinhar os pontos mais importantes, o que implica uma varridela, com impressionante efeito dominó, de todas as molduras em cima de qualquer aparador.
E, ao contar uma história, perde-se de forma exasperante por todas as intersecções do caminho, o que requer muitos parêntesis curvos, rectos e duplo rectos, até que se consiga dar de novo com a ponta da meada. Esturram-se assim invariavelmente todos os tachos que estão ao lume mas a família fica semi informada acerca de vários assuntos completamente díspares.
Para delícia dos netos, é capaz de muito facilmente simular um desmaio no chão da sala sem que parta nenhum osso. E é dona de um saco mágico ao qual chama “material didático” de onde saem objectos inesperadas que servem de mote para começar a contar uma história.
A minha mãe é ímpar porque, ao contrário da maior parte das pessoas que conheço, construiu a sua vida sem expectativas o que quer dizer que nunca sofreu nenhuma grande decepção. Vive gozando com tranquilidade o que vida lhe vai oferecendo e, numa atitude prática invejável, resigna-se facilmente face a qualquer contrariedade.
Nunca se achou bonita e nunca teve qualquer ímpeto de vaidade. Mas arranja-se sempre que a ocasião o exige para não nos deixar ficar mal.
A minha mãe está sempre cansada porque está sempre a acudir a pessoas e a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Para sobreviver, passa as tardes de sábado deitada. Mas isso não a impede de tratar do que quer que seja. São históricos os momentos em que, entre as pregas do lençol, deu explicações de francês a filhos e netos, coseu botões de camisas, fez inúmeros trabalhos de faculdade, cortou unhas, contou histórias e, se necessário fosse, descascaria uma saca de batatas.
Quando ainda trabalhava, adormecia frequentemente nos comboios da linha de Cascais. Às vezes tinha sorte e era acordada pelo revisor, outras vezes seguia recambiada para Lisboa sem dar por nada.
Não sei ao certo qual é a síndrome rara de que padece a minha mãe, mas era bom que fosse contagiosa, ou pelo menos hereditária, porque o mundo seria muito melhor e bastante mais divertido com uma data de pessoas como ela.