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Delito de Opinião

Israel/Palestina? A reler Sacco

jpt, 27.11.23

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Não é postal político, nem quero deixar transparecer qualquer opinião sobre a desgraçada situação em Israel - e já aqui deixei nota sobre o meu estupor diante daquela realidade. Mas a sucessão de notícias levaram-me às estantes, no regresso aos livros do grande Joe Sacco - que também escreveu/desenhou sobre a Bósnia onde trabalhei. Sacco é um autor muito empenhado, defensor da causa palestiniana - o que agradará a uns e desagradará a outros. Pouco (me) importa, os seus livros são preciosos. Sem que com isso me sejam cartilhas.

Comecei pelo "Palestina na Faixa de Gaza" (cá publicado em 2003, com prefácio de Edward Said). Depois passei ao "Palestina, Uma Nação Ocupada" (cá publicado em 2004, com prefácio de Mário Soares). E ainda ando dentro do calhamaço em francês ("Gaza 1956").

E entretanto lembrei-me de incómodo que tenho com o olhar de Joe Sacco. Pois, mesmo muito apreciando-o. Ou melhor, exactamente por muito o apreciar. Pois é esse um dos maiores sinais de apreço, o incómodo recebido na leitura... Há quase uma década deixei um texto, feito numa rápida abordagem, sobre as relações que encontrava entre a obra de Sacco, a recepção (entusiástica) que ele colhe e as práticas actuais da antropologia. Chamei-lhe "Joe Sacco: o engajamento denunciatório". Deixo a ligação para quem tenha paciência...

O apoio homossexual à Palestina

jpt, 04.11.23

 
 
Via Whatsapp um amigo envia-me este curto filme, que decerto por aí anda rodopiando. Não percebo o conteúdo, que sinto grotesco, e pergunto-lhe "O que é isto, pá?!". Diz-me "é uma coisa chamada Fado Bicha a apoiar a Palestina!". E vem implícito o remoque, que também está generalizado, aos homossexuais que se afadigam em declarações públicas deste teor - sabendo-se bem que face ao mundo islâmico, ainda que esse bastante diverso, a liberalidade legislativa e de costumes israelita é um oásis para as sexualidades, hetero e homo (e as outras que agora andam a ser indexadas com afã).
 
Sorrio. Já o disse, aos ademanes em palco sinto-os como grotescos. Sinto-os ainda mais assim - que quereis?, sou um homem nascido nos anos 1960s, justifico-me, glosando o abissal sábio de Coimbra -, do que quando diante daquelas dançarinas dos play-back pimbas nos programas televisivos da tarde, elas bojudas "como deve ser", pulando e gingando, seus refegos, lascas de celulite e proto-varizes ressaltando sob as minissaias. E destes Fado Bicha apenas tomara conhecimento ao sabê-los apoiantes - ou mesmo inspiradores - daquele prostituto brasileiro que invadiu um teatro municipal lisboeta. Apresentando-se apenas em cuecas e com os implantes mamários desnudados, algo que considerava suficiente para ali exigir um emprego - para desvelo de alguma "comunidade artística" -, ainda que, como se soube depois, considere o teatro uma chatice e prefira ir ao futebol com o namorado.
 
Não seja por isso. Esta rapaziada (ou raparigada, como preferirem, que não quero parecer preconceituoso) não inova grande coisa. De facto, sabendo-o ou não, seguem o Papa Foucault, esse "grande educador da classe genderária", o que se desunhou em apoios e viagens solidárias para com o fascismo teocrático de Teerão enquanto gozava a liberdade existencial americana. "They love Teheran but they fuck in Frisco", resumi eu em postal de blog, aludindo literalmente à foucauldiana deriva.
 
Mas o que se pode criticar a esta malta histriónica do "género" (ou lá o que é) é o facto de sempre se calarem com as maldades (e que maldades) "alheias" enquanto sempre anunciam hiperbólicos horrores nas sociedades "ocidentais". "Nós" demónios, os "outros" húmus multiculturais, por assim dizer. É uma pantomina, travestida de pensamento, e por vezes - como neste caso - mesmo por trajes. Um patético "anti-capitalismo", de facto nada mais do que um esparvoado "anti-americanismo". Dará prestígio, entre a "comunidade" que lhes é "público" e entre "instituições" e "câmaras" que contratam e financiam. É uma incongruência, de hipocrisias e dislates feita.
 
Mas tudo isso não impede uma outra faceta. É perfeitamente legítimo - até honroso - que alguém defenda outrem que dele não gosta ou até persegue. Se se reconhece a esse outrem pertinência nas reclamações como evitar expressar solidariedade? Especialmente em momentos dramaticos? "Faz o bem sem olhar a quem"... está escrito num qualquer texto judaico, julgo. Ou seja, é errado criticar os homossexuais por defenderem causas ou posições oriundas de países islâmicos. Pode-se discordar. Mas é perfeitamente legítimo - insisto, até honroso. Mas o que é inadmissível é que tantos desses movimentos, e seus locutores, demonizem as sociedades liberais. Porque essa atitude, verdadeira contradição - que é tão generalizada, tão constante -, não passa de um pobre e ordinário travesti de cidadania.
 
Quanto a estes Fado Bicha que me atiraram ao telefone só tenho uma coisa a dizer, pois sou muito reaccionário. Há algo fundamental, nisso obrigatório, quando se ergue a bandeira de alguém, em especial se a nacional, para se lhe demonstrar apoio. Não se arrasta essa bandeira pelo chão.
 
(Um pequeno detalhe, alguns dirão. Sim, é um pequeno detalhe. Mas bem demonstra a abjecta pantomina que é tanto "disto", quase tudo disto "genderístico".)

Israel e Gaza: Are you out of your fucking mind?

jpt, 04.11.23

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Resha'im Arurim (Maldita gente má) - é uma imprecação celebrizada do folhetim televisivo Shtisel

Não sou muito versado em línguas bárbaras, imunes ou demasiado afastadas do latim - ainda que por vezes com este algo mescladas. E detesto a mania dos estrangeirismos - os anglicismos de agora, os galicismos de antanho -, que sendo uma arrivista estratégia pessoal de "distinção" é também, o que é muito  pior, uma estratégia empresarial de obscurecimento de realidades lesivas dos incautos monoglotas - e que melhor exemplo actual desse aldrabismo do que o uso  bancário do termo "spread"?

Mas ainda assim há momentos em que termos ou expressões idiomáticas se impõem, pelo seu conteúdo ou ênfase tornando-se inultrapassáveis para descreverem alguma realidade insuficientemente descrita pela nossa língua. Por exemplo, alguém poderá compreender a política do primeiro quartel do XXI português sem utilizar o galicismo - de origem norte-americana, ao que consta - "bobo" (bourgeois-bohème)?

Vem-me isto a propósito da situação em Gaza. Não tenho grande apreço pelas teorias conspiratórias - e contra elas sempre me procuro disciplinar. Seja como for, a verdade é que naquele Israel, um nicho com um quarto do tamanho do "pequeno" Portugal, se congregam as atenções de imensa Resha'im Arurim, essa maldita gente má. Residentes, vizinhos. E poderosos "influencers", mais um anglicismo aproveitável. Pois não recuso a hipótese de que o inopinado ataque aos israelitas não teve como única causa o exaspero da teodiceia fascista do Hamas. Deixo aos especialistas - que são muitos - levantar as hipóteses da influência no acontecido daquele mudo conflito (extra-futebolístico) entre Catar e Arábia Saudita. E da coalizão multicultural entre Teerão e as estepes siberianas, estas envoltas num longínquo e atabalhoado guerrear. 

Mas para além de tudo isso - ou melhor dizendo, também por causa de tudo isso -, ao assistir-se a esta "operação militar especial" de Israel na Faixa de Gaza um tipo  só pode perguntar, invectivar, às gentes israelitas "Are you out of your fucking mind?" - pois não há em português expressão com celsitude e ênfase comparáveis.

Israel e Palestina, as causas de um conflito

jpt, 02.11.23

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Já aqui deixei nota que - com a minha vetusta idade, a qual me permite lembrar de Moshe Dayan, Golda Meir e Yasser Arafat -, não tenho qualquer disponibilidade para escutar/ler os doutos que  na imprensa se afadigam a explicar o que se passa lá no longínquo Mediterrâneo.
 
Mas tenho solidariedade e piedade. Solidariedade com as vítimas dos estrategas do fascismo palestino. E, concomitantemente (que bela articulação retórica me sai aqui), com as dos "falcões" israelitas - esses que desta não se safarão durante as próximas décadas. E julgo que após ter exarado esta profunda opinião, arguto diagnóstico da situação, o mundo melhorará.
 
E tenho piedade - cristã, a do cristianismo ateu - por tantos dos meus compatriotas (ou de países aliados) que têm enchido o meu Facebook com as suas aceradas opiniões, quase sempre comprovadas com indiscutíveis fontes bibliográficas ou filmográficas.
 
Entre estes há os mais arqueológicos, que se desdobram na partilha de "mapas étnicos" dos tempos bíblicos - comprovando que os "judeus" já então eram os "donos da terra", assim julgando resolver as coisas de hoje. E há os mais sociológicos, incansáveis na proclamação da justeza das reclamações históricas da também imorredoira "nação palestiniana". Gentes futebolistas, estas minhas ligações-FB, sempre adeptos fervorosos sobre tudo o que mexa, seja qual for o campeonato em causa, fiéis ao mandamento do grande holigão René Descartes, fundador da claque do Paris-St. Germain, e autor do lendário lema "Torço, logo existo!".
 
Entretanto, sobre o continuado confronto entre israelitas e palestinianos, no canal Sic Notícias, no programa Toda a Verdade, está a ser transmitido este esplêndido documento "A Origem de um Conflito". Tem três episódios, são transmitidos a cada domingo (dá para recuar e ir ver). Já passou o segundo. É muito recomendável.
 
Mas será, também, um desperdício de tempo para judeófilos e para palestinianófilos. Para esses recomendo o canal Onze - que está porreiro. Em especial o aprazível programa "Sagrado Balneário", charlas sobre velhas histórias dos jogadores e treinadores de futebol,

«Se há um judeu atrás da árvore, mata-o»

Pedro Correia, 19.10.23

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Dizei aos que não crêem: "Sereis, sem dúvida, derrotados e reunidos no Inferno. O vosso lugar de descanso será o mais terrível".»

Alcorão, 37: 171-173

 

Este 7 de Outubro será sempre conhecido como dia da infâmia em Israel. O dia da incursão de cerca de dois mil terroristas do Hamas em território israelita que provocou 1500 mortos e mais de três mil feridos, além de 300 pessoas de mais de 30 nacionalidades tomadas como "reféns". Ignora-se se ainda estarão vivas.

Ainda nem uma das vítimas tinha sido enterrada, já havia por cá quem relativizasse o massacre, invertendo o ónus da culpa, que terá sido das vítimas. Seguindo a lógica daquele juiz desembargador que absolveu o violador alegando que a jovem violada usava uma saia demasiado curta e, portanto, estava mesmo a pedi-las...

Para tal gente toda a barbárie, singular ou colectiva, assenta neste axioma que desafia a lógica mais elementar. Inocentar os criminosos, culpar as vítimas. Daí, no próprio dia 7, não ter faltado logo quem estabelecesse equivalência moral entre a Alemanha nazi e o Estado judaico. Qual o efeito prático de tudo isto? Branquear a página mais negra da história humana, que se traduziu no assassínio sistemático e meticuloso de seis milhões de pessoas às ordens de um estado totalitário, onde qualquer dissidência equivalia a morte.

 

Não faltou até, nesta linha de raciocínio cada vez mais alucinada, quem metesse Gaza e Auschwitz no mesmo saco. Omitindo, desde logo, toda a cartilha xenófoba e racista do Hamas - declaração de ódio visceral não apenas ao Estado de Israel mas ao conjunto do povo judeu. 

Esta cartilha está disponível na rede, para quem queira ficar elucidado.

Proclama coisas como estas:

«Não há solução para o problema palestino a não ser pela guerra santa. Iniciativas de paz, propostas e conferências internacionais são perda de tempo e uma farsa.»

«Os hipócritas não podem ser superiores aos crentes, e devem morrer em desgraça e aflição.»

«Os sionistas estiveram por detrás da I Guerra Mundial, por meio da qual obtiveram a destruição do Califado Islâmico, tiveram altos ganhos materiais, passaram a controlar numerosos recursos naturais, obtiveram a Declaração Balfour e criaram a Liga das Nações Unidas (assim no original), para poderem governar o mundo por meio dessa Organização. Estiveram, também, por detrás da II Guerra Mundial, através da qual juntaram um tremendo lucro com o comércio de materiais de guerra e abriram caminho para o estabelecimento do seu Estado.»

Destaco sobretudo esta: 

«A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: "Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venham e matem-no!"»

 

Ao menos não enganam ninguém: dizem exactamente o que pensam - se é que podemos chamar pensamento a isto.

Tal como fez Hitler há cem anos, quando publicou esse execrável panfleto antijudaico chamado Mein Kampf. Sabemos muito bem o que aconteceu depois.

Jamais se repetirá. Os judeus não voltarão a deixar que o inimigo os conduza ao matadouro. Tenha esse inimigo o rótulo que tiver, chame-se ele como se chamar.

Como dizer pogrom em árabe?

João André, 13.10.23

Amanhã passará uma semana desde o maior massacre de judeus desde a II GUerra Mundial. A palavra pogrom, que se desejaria banida depois da criação do Estado de Israel, voultou a ser invocada para fazer referência ao massacre de mais de 1.200 pessoas - note-se, pessoas - por uma organização não apenas terrorista mas, especialmente depois de 7 de Outubro de 2023 (o qual já vi referido como Sábado Negro) - uma organização que pode ser cada vez mais descrita como fascista ou até nazi.

Não há desculpas para o que aconteceu e procurá-las nos últimos anos de política israelita (ou de outros países no Médio Oriente) é menorizar o sofrimento de quem morreu ou foi ferido ou raptado, é familiar destas vítimas ou qualquer outra pessoa com coração que não esteja demasiado dessensibilizada para reconhecer o sofrimento de pessoas que nada fizeram para ser assim atacadas.

Quando olhamos para estes actos é normal para certas pessoas procurar justificações e para outras apontar o dedo simplesmente ao Mal. A realidade é que há sempre explicações, por preversas e repugnantes que sejam, como neste caso, que são vendidas pelos responsáveis como "justificação". Se a política de Israel em relação à Palestina não tem sido justa há já décadas, não há forma de justificar a "retaliação" do Hamas à mesma. Especialmente quando, pelo que vou lendo de comentadores que se debruçam sobre as políticas na região e mais dela sabem que eu, o Hamas pretendia especialmente evitar uma aproximação da Arábia Saudita a Israel.

Há 9 anos escrevi sobre este assunto em dois posts, numa altura em que Israel entrou em Gaza. Na altura considerei que a ameaça do Hamas era menor. Talvez tivesse razão na altura, mas obviamente que o tempo ou me explicou o quanto estava enganado ou mudou a equação. O que não muda são as consequências: após massacre de israelitas que nada mais faziam que viver as suas vidas, o exército israelita (Forças de Defesa de Israel, FDI) vai entrar num território onde a esmagadora maioria das pessoas também apenas pretende o mesmo. Como li hoje num artigo, "o Anjo da Morte lambe os beiços".

Note-se que isto poderá também ser parte do que pretende o Hamas. Se o FDI empurrar os palestinianos para o Egipto, vai possivelmente acabar a colocá-los entre a espada e a parede e a levar à indignação do mundo árabe. Suponho que seja essa a intenção do Hamas, para quem a população palestiniana não mais é que um campo de recrutamento e fonte de mártires da causa. O ódio do Hamas levou ao massacre de israelitas inocentes*. Uma retaliação cega de Israel, especialmente por odem de um fraco e incompetente Netanyahu, poderá fazer o mesmo a palestinianos. O Anjo da Morte, de facto.

Pergunto-me então, se no meio do sangue que já foi derramado e à espera daquele que ainda correrá, se os facínoras do Hamas saberão como dizer pogrom em árabe.

 

* Nota: não aceitarei qualquer comentário que seja ofensivo para com judeus, israelitas em geral ou palestinianos. Posso aceitar pontos de vista distintos em relação ao conflito, mas não sobre a moralidade do massacre. Quem não quiser respeitar este ponto de vista terá o comentário eliminado.

Desconstruir análises

Alexandre Guerra, 07.02.20

Meses depois do conselheiro especial da Casa Branca, Jared Kuschner, ter apresentado ao mundo árabe a componente económica do plano de paz americano para o Médio Oriente, durante um "workshop" em Manama, Bahrein, recentemente foi a vez do Presidente Donald Trump revelar os contornos políticos e mais "quentes" daquilo que ele classifica de "Visão" (Vision for Peace, Prosperity and a Brighter Future) para a resolução do conflito israelo-palestinino. Se na vertente económica já era sabido que se estava perante um potencial investimento de cerca de 50 mil milhões de dólares,  no patamar político, o documento com a "Visão" de Trump apresentado há semanas concretiza muito claramente os intentos de Washington e Telavive para a "sua" solução de "dois Estados.

Não se pretende aqui analisar em detalhe todos os contornos do plano apresentado, mas sim desconstruir as análises erradas que se fizeram na imprensa, porque aquilo que alguns comentadores vêem como (novas) consequências provocadas pelo plano de Trump, são na verdade realidades que existem "de facto" desde a intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000: a questão da descontinuidade territorial; a criação do sistema de "apartheid"; e o isolamento dos territórios palestinianos com os Estados limítrofes. 

Com o ressurgimento da violência israelo-palestiniana, em Setembro de 2000, espoletada pela provocatória visita do então primeiro-minsitro, Ariel Sharon, ao Monte do Templo (para os judeus) ou Haram al-Sharif (para os muçulmanos), o território da Cisjordânia foi sendo asfixiado e fragmentado pela política de colonatos judaicos e de segurança israelita. São várias as localidades e cidades dentro da Cisjordânia que, desde estão, ficaram totalmente controladas pelas IDF, sendo que, em muitos casos, a liberdade de circulação está limitada pelos inúmeros checkpoints levantados pelas IDF. A intensidade desta realidade vai sempre variando e dependendo do grau de violência que se vai vivendo no âmbito do conflito israelo-palestiniano. Por exemplo, durante os anos da intifada de al-Aqsa, os checkpoints entre a capital Ramalhah e a localidade universitária de Bir Zeit, a 20 minutos de carro, eram recorrentes a várias horas do dia. 

E quando há uns analistas que falam num novo “apartheid”, estão a ignorar por completo o que se passa há vinte anos na Cisjordânia, onde existem estradas que ligam directamente Israel aos colonatos, sem que os palestinianos possam utilizá-las, apesar de atravessarem território palestiniano. Estão a ignorar que os checkpoints são impostos discricionariamente de acordo com a vontade das IDF, muitas vezes de uma hora para o outra, impedindo que muitos palestinianos regressem as suas casas ou não possam deslocar-se de um local para outro, obrigando-os a esperar horas e até dias. Estes mesmos analistas, que agora vêem nesta “Visão” a fonte de todos os males, ignoram a realidade de duas décadas, onde milhares de palestinianos ficaram impedidos de atravessar a “fronteira” em Jerusalém para irem trabalhar diariamente em Israel. Ignoram ainda que desde 2000, Israel cortou com a ligação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, provocando, nalguns casos, a separação de famílias. Muito dificilmente um palestiniano da Cisjordânia conseguirá chegar à Faixa de Gaza através de Israel. Quanto muito, terá que sair da Cisjordânia pela Jordânia e entrar em Gaza pelo Egipto.   

Recuperemos então algumas passagens do documento apresentado por Donald Trump. Na sua introdução, é referido que: "Gaza and the West Bank are politically divided." É verdade, mas como foi acima sublinhado, é omitido que também estão fisicamente separados desde o início da intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000, por imposição das IDF. Ainda de acordo com a mesma introdução, lê-se: "Since 1946, there have been close to 700 United Nations General Assembly resolutions and over 100 United Nations Security Council resolutions in connection with this conflict." É obra, mas é revelador da ineficácia completa da comunidade internacional na tentativa de resolução desta questão. E como é que Trump vê estas resoluções da ONU? "This Vision is not a recitation of General Assembly, Security Council and other international resolutions on this topic because such resolutions have not and will not resolve the conflict."

Sendo os “males” potenciais identificados por muitos analistas, na verdade, evidências bem reais há vários anos, não será de estranhar que o plano de paz de Washington seja uma ferramenta diplomática tendenciosa para os interesses de Israel. A determinada altura lê-se: "It must be recognized that the State of Israel has already withdrawn from at least 88% of the territory it captured in 1967." Ora, depende da interpretação que se fizer e do território em causa. É que em 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza, Montes Golã e um enclave ao Líbano e Síria (Shebaa Farms). Entretanto, retirou as IDF de Gaza, mas manteve o controlo fronteiriço; retirou a presença militar dos Golã, mas manteve a soberania e não devolveu à Síria (tal como as Shebaa Farms). Na Cisjordânia, recuou nalgumas zonas, mas isolou outras e fragmentou o território, enchendo-o de colonatos.

Um dos pontos mais importantes deste documento e mais estratégico para a sobrevivência de Israel tem a ver com algo a que não vi qualquer analista fazer referência: “The State of Israel will retain sovereignty over territorial waters, which are vital to Israel’s security and which provides stability to the region.” Ao contrário de outras matérias em disputa, como a questão da capital em Jerusalém (mais simbólica do que estratégica) ou dos colonatos (mais ideológica do que securitária), há dois temas que ameaçam directamente a existência de Israel (não, não é o Hamas nem o Irão): o acesso à água e o factor demográfico. Este tema ficará para um próximo texto.

O (quase) silêncio da Fatah

Alexandre Guerra, 15.05.18

A Grande Marcha de Retorno esbarrou literalmente na vedação que delimita a Faixa de Gaza do território de Israel. Era uma iniciativa que estava condenada desde o início. A ideia de uma caminhada triunfal de milhares de palestinianos até Jerusalém não seria mais do que uma fantasia, uma tentativa de reabilitar as intifadas de anos anteriores, numa espécie de grito de revolta por parte de quase dois milhões de pessoas desesperadas, que há vários anos estão autenticamente presas num território com cerca de 40 quilómetros de cumprimento e 10 de largura, onde as condições de vida se degradaram para níveis miseráveis, reflectindo-se em indicadores sociais muito preocupantes.

 

É importante sublinhar que, hoje em dia, quando se fala na causa palestiniana e num futuro Estado palestiniano, na verdade, o que está em análise são duas realidades distintas. Não quer isto dizer que ambas não possam vir a coexistir sob um único Governo e estrutura política, mas, actualmente, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza são dois mundos substancialmente diferentes. E se isso já era evidente há uns anos ao nível social e religioso, sendo Gaza uma sociedade claramente mais conservadora do que a Cisjordânia, agora, em 2018, as diferenças são consideráveis no campo político-económico, sobretudo, por duas razões.  

 

A primeira razão tem a ver com a morte de Yasser Arafat, em 2004, e a consequente perda de influência da Fatah na Faixa de Gaza. Recordo de ter estado em várias casas de famílias palestinianas na Faixa de Gaza e, quase sempre, numa das divisões havia uma fotografia do histórico líder. Isto, numa altura em que a Fatah já tinha pouca influência naquele território, mas onde Arafat continuava a ser o elemento político unificador. Após o seu desaparecimento, o Hamas rapidamente ascendeu ao poder, ao mesmo tempo que reforçava a sua presença na gestão dos serviços públicos e no apoio social. Ora, com a Cisjordânia historicamente dominada pela Fatah e a Faixa de Gaza nas mãos do Hamas, criou-se uma dualidade política que resultou em duas estruturas de poder diferentes e, por vezes, competitivas naquilo que é a luta pela liderança da causa palestiniana.

 

A outra razão está directamente relacionada com o bloqueio imposto por Israel que, basicamente, já vem dos tempos da intifada de al-Aqsa (2000-2005). Por esta altura, estive por duas vezes naquelas paragens e já então os palestinianos da Cisjordânia não podiam ir visitar os seus familiares à Faixa de Gaza e vice-versa. Era assim e assim continuou. E na altura cheguei a perguntar a muitos palestinianos como eram os tempos anteriores à intifada de al-Aqsa e todos me disseram que nem na primeira intifada (a chamada “revolta das pedras” entre 1987 e 1991) Israel tinha imposto tantas restrições de movimentos. Pois bem, os anos passaram e esse estrangulamento foi-se intensificando na Faixa de Gaza, com a agravante dos bombardeamentos israelitas em 2014 sobre aquele enclave, destruindo, ainda mais, muitas das suas infraestruturas públicas e de saneamento. Ao mesmo tempo, sem aeroporto e porto, e com as fronteiras encerradas com Israel (restando apenas a fronteira de Rafah Crossing com o Egipto, mas que muitas vezes está fechada), a débil economia da Faixa de Gaza foi-se degradando, empurrando a população palestiniana para um caos humanitário.

 

Na Cisjordânia, apesar das dificuldades existentes, tudo é diferente. Há uma estrutura de poder minimamente estável, os serviços públicos funcionam, existe uma economia, as universidades fervilham de actividade, os restaurantes e café estão abertos nas várias cidades palestinianas, digamos que há uma certa dinâmica de sociedade. Além disso, a circulação entre a Cisjordânia e Israel, através de vários postos de controlo ao longo da fronteira, é muito mais facilitada.

 

Este enquadramento talvez seja importante para se perceber a passividade com que a Fatah e os palestinianos na Cisjordânia estão a encarar esta sublevação. Na verdade, dos relatos que chegam da Cisjordânia, registam-se apenas alguns confrontos em Hebron e Nablus, mas pouco significativos e nada comparáveis aos protestos de Gaza. Tudo indicia que a Fatah não está interessada em promover uma nova intifada. A única declaração que se encontra é esta, algo inócua, na qual se apela ao mundo muçulmano para proteger Jerusalém. Ainda esta manhã, a BBC News passava imagens em directo da rotunda Al Manara, em Ramallah, onde, normalmente, se concentram manifestações, e o ambiente era estranhamento calmo para aquilo que costuma ser em momentos de contestação e que eu, pessoalmente, lá vivi em diversas ocasiões.

 

A questão é saber se neste momento interessa à Autoridade Palestiniana e à Fatah abraçarem a causa dos seus "irmãos" da Faixa de Gaza, sabendo de antemão que qualquer acto mais agressivo contra Israel terá consequências dramáticas na Cisjordânia, em cidades como Ramalhah, Belém, Hebron ou Nablus. Do que se vai percebendo, a Fatah e o poder instalado em Ramalhah não parecem estar dispostos a sacrificarem a sua condição para dar força a uma terceira intifada. Para já, os palestinianos na Faixa de Faza estão entregues à sua sorte, como aliás, tem acontecido há quase 20 anos.   

Três questões vitais onde Israel nunca cederá

Alexandre Guerra, 06.04.18

O conflito israelo-palestiniano voltou a escalar nos últimos dias. Já morreram 16 pessoas e ficaram feridas quase trezentas. Tem sido assim nas últimas décadas, na verdade, desde a criação do Estado de Israel a 14 de Maio de 1948. Até aqui, nada de novo e muito menos de surpreendente. O que surpreende verdadeiramente é como que, ao fim destes anos todos, políticos e analistas internacionais ainda olham para isto com algum idealismo e não tenham percebido que há três questões vitais sobre as quais Israel nunca cederá, sabendo que no dia em que o fizer, é o dia em que sobrevivência do seu Estado fica em causa. Aqui fica uma explicação muito simplificada:

 

1.A primeira questão prende-se com o acesso à água doce, um recurso escasso naquela região do planeta e que Israel tratou de assegurar. O controlo israelita dos Montes Golã, mais do que a sua importância estratégica enquanto “zona tampão” com a Síria, é vital pelo facto daqueles aquíferos montanhosos alimentarem o Rio Jordão. Toda aquela zona é muito verde e propícia à agricultura. É importante notar que um terço da água consumida em Israel vem dali. Sobre este assunto, muito há para dizer, mas o importante é ter-se a noção de que Israel nunca abdicará de qualquer controlo sobre as fontes de água doce na Cisjordânia, exercendo uma espécie de “hidro-hegemonia”, impedindo que a Autoridade Palestiniana desenvolva infraestruturas de fornecimento de água, criando-se, assim, um regime discriminatório com efeitos perversos.

 

2.A segunda questão vital tem a ver com o estatuto de Jerusalém (na verdade, o problema coloca-se com a Cidade Velha de Jerusalém). Por mais pretensões (e razões) que os palestinianos possam ter, Israel nunca permitirá que a Cidade Velha de Jerusalém fique sob domínio palestiniano e se torne a capital do Estado Palestiniano. De pouco servem as pressões internacionais, o facto é que são as Forças de Segurança Israelitas (IDF) que controlam todas as entradas e saídas do lado oriental da cidade, assim como o acesso à Esplanada das Mesquitas dentro dos muros da histórica cidade. No que diz respeito à defesa do seu território e da sua capital, Israel já deu provas de lidar bastante bem com a anátema de ser uma potência ocupante. E apesar de existir uma certa opinião pública israelita que contesta a política de ocupação hebraica, pouca força tem quando se trata de mudar o curso da História

 

3. A terceira questão vital está directamente relacionada com o famoso direito de retorno de todos os palestinianos refugiados. Este estatuto tem origem na primeira guerra de 1948, sendo depois aplicado a todos os palestinianos que foram sendo obrigados a sair das suas casas e terras no seguimento da ocupação israelita dos territórios da Cisjordânia ao longo das décadas. Nas vésperas do 70º aniversário da criação do Estado de Israel, ou da Nakba ("catástrofe"), na perspectiva palestiniana, milhares de pessoas da Faixa de Gaza iniciaram a “Grande Marcha do Retorno”, uma marcha que marchou pouco, porque, para todos os efeitos, está parada em vários pontos da vedação fronteiriça que separa aquele enclave de Israel. Realisticamente falando, trata-se de um acto mais simbólico do que consequente, sendo que as únicas consequências se traduzem em mortos e feridos. Por mais apelos internacionais e campanhas de sensibilização, Israel nunca irá contemplar com aquele movimento e a marcha não sairá dali, nem hoje, nem nunca. Ou pelo menos, enquanto o Estado hebraico existir. Se, por um lado, os palestinianos reclamam por um direito histórico válido, a posição de Israel é compreensível, porque, a julgar pelos dados oficiais da UNRWA, devem haver mais de cinco milhões de refugiados espalhados pela Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jordânia, Líbano, etc. Ora, a partir do momento em que Israel reconhecesse o “direito de retorno”, era o dia em que iniciava uma guerra que nunca iria ganhar: a da demografia.

 

Há uns anos, um ilustre académico palestiniano de Nablus, e que chegou a candidatar-se contra Yasser Arafat nas eleições presidenciais, dizia-me que o grande problema daquele líder histórico foi ter assinado os Acordos de Oslo, porque foram uma armadilha. Explicava-me esse professor e activista que aqueles acordos nunca contemplaram as matérias vitais acima referidas, essenciais para a criação de um verdadeiro Estado palestiniano independente. O problema é que comprometeram a Autoridade Palestiniana num acordo que definia um status quo favorável a Israel.

 

Na altura, achei que poderia seria uma análise algo exagerada, mas hoje não tenho qualquer dúvida de que Israel nunca formalizará um acordo onde tenha que ceder numa destas três questões. Quem acreditar nisso ou apelar a isso não estará seguramente a fazer um favor à paz. Aliás, é de uma ambição desmedida querer alcançar-se paz entre palestinianos e israelitas, quando aquilo que os líderes internacionais deveriam primeiro pensar era na conquista da estabilidade entre dois povos, dois estados, mas isso só se alcança com realismo e algum cinismo, porque, infelizmente, é assim nas relações internacionais e na História das nações.

 

Texto publicado originalmente no Diplomata

O dia em que entrevistei o "Mandela palestiniano"

Alexandre Guerra, 17.04.17

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Ilustração de Marwan Barghouti da autoria de Durar Bacri/Haaretz

 

Marwan Barghouti é, desde há alguns anos, a maior figura palestiniana na liderança da resistência palestiniana. É aquela que mais carisma tem junto da população da Cisjordânia, sobretudo a que está mais identificada com a Fatah. Para muitos, é visto como o sucessor natural de Yasser Arafat, visto que o actual Presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, pelo seu perfil moderado e apagado, nunca despertou grandes paixões numa região que vive diariamente inflamada pelo conflito com Israel. É, por isso, normal que, tanto palestinianos, como líderes mundiais, o vejam como o único homem capaz de conduzir a Palestina à independência. O problema é que Barghouti, que liderou as milícias Tanzim, braço armado da Fatah (uma acusação que ele sempre negou), está encarcerado nas prisões israelitas, sentenciado a passar ali o resto dos seus dias. Tendo sido em tempos secretário-geral da Fatah e alvo de inúmeras tentativas de assassinato por parte dos serviços secretos do Exército de Israel (Shin Bet), Barghouti foi um dos principais líderes da Intifada de al-Aqsa, acabando por ser preso em 2002, em Ramallah, pelas Forças de Segurança Israelitas (IDF). Desde então, a sua popularidade e notoriedade aumentaram exponencialmente, passando a ser uma voz activa atrás das grades e um símbolo da resistência palestiniana, o que lhe valeu a alcunha de "Mandela palestiniano".

 

Este Domingo, voltou a promover uma acção pacífica de contestação, ao dar início a uma greve de fome que envolve 700 reclusos palestinianos ligadas à Fatah, que se estendeu também a mais algumas centenas de prisioneiros da Jihad Islâmica e do Hamas. Esta iniciativa poderá reacender a tensão nas ruas das principais cidades da Cisjordânia e recentrar a problemática israelo-palestiniana no topo da agenda internacional, já que Barghouti tem hoje mais influência política do que tinha há 15 anos. Alguns governantes, como Ehud Barak, e responsáveis militares israelitas, estão conscientes desse facto. Aliás, o próprio Barak, aquando da detenção de Barghouti, ligou para Shaul Mofaz, na altura chefe do Estado-Maior das IDF, e disse-lhe o seguinte: “Have you lost your mind? What’s the story with Barghouti? If it’s part of your struggle against terrorism, it’s meaningless. But if it’s part of a grand plan to make him a future national leader of the Palestinians, then it’s a brilliant scheme, because what’s really missing in his résumé is direct affiliation with terrorism. He will fight for the leadership from inside prison, not having to prove a thing. The myth will grow constantly by itself.”

 

Conheci Barghouti um ano antes, quando ele era secretário-geral da Fatah. Fui entrevistá-lo. No seu escritório em Ramallah, lá estava ele, uma figura de pequena estatura, com ar amistoso e com o seu famoso bigode (hoje anda de barba). Cordial e acessível, embora não exibisse uma simpatia excessiva, o militante da Fatah demonstrou desde logo uma convicção política firme. A entrevista foi partilhada com um jornalista da agência de notícias alemã, e apesar das insistências, Barghouti nunca admitiu que era o líder das milícias Tanzim, responsáveis por vários atentados terroristas contra Israel. Recordo que ele se serpenteava como um verdadeiro político na forma como respondia às perguntas mais sensíveis que lhe eram colocadas, chegando mesmo a dizer que acreditava que a Palestina ia ser independente “dentro de cinco anos” (foi este o título da entrevista depois publicada no jornal Público. No entanto, a História viria demonstrar que Barghouti estava errado). Relembro que dias antes, Barghouti tinha escapado a um atentado selectivo das IDF contra o carro onde viajava. Um ano mais tarde, os soldados israelitas acabariam por deter Barghouti, sendo condenado posteriormente a cinco penas perpétuas. Quando,10 anos depois, foi tornado público um importante acordo de troca de prisioneiros que estava a ser forjado entre o Governo israelita e o Hamas, uma centelha de esperança reacendeu-se para milhares de palestinianos, que viram ali uma oportunidade para fazer regressar a casa o carismático Barghouti. Mas, rapidamente essa esperança se esvaneceu. Sabendo do prestígio e da notoriedade do ex-líder das Tanzim, as autoridades israelitas tiveram o cuidado de deixar bem claro desde o início desse processo de troca de prisioneiros, que Barghouti não estava incluído nas listas dos palestinianos a serem libertados. Mas, a questão é que Ehud Barak foi certeiro quando ligou a Mofaz, porque quanto mais tempo Barghouti estiver preso, mais o seu carisma e a sua capacidade de mobilização popular vão aumentando. É muito provável que, para Israel, Barghouti se torne cada vez mais um problema atrás das grades do que em liberdade. Para já, o "Mandela palestiniano", com apenas 57 anos, vai fazendo a sua resistência pacífica, que lhe poderá vir a ser muito mais eficaz do que os anos de violência que perpetrou na tal luta pela independência que sempre almejou.

Questões morais no conflito israelo-palestiniano

João André, 23.07.14

O meu post abaixo sobre Israel e Palestina provocou alguns ataques à minha posição, como sempre se verifica quando se toca neste assunto. O principal referiu-se a um ponto muito simples (e compreensível): por que razão eu pareço criticar apenas Israel e colocar todas as responsabilidades pela paz nesse lado da barricada? Dado que toquei muito pela rama a questão das culpas, a confusão é normal. Não voltarei agora ao assunto das culpas, tentarei antes explicar um pouco a questão das responsabilidades por uma outra via, a moral.

 

No caso Israel/Palestina temos dois lados. Por um lado há Israel, que é indubitavelmente um Estado poderoso e que administra até certo ponto a vida nos territórios palestinianos. A Faixa de Gaza é nominalmente independente mas está incrustada em Israel e os acessos aos seus portos e espaço aéreo são também controlados por Israel.

 

O que temos é então uma parte que detém poder e, da mesma forma, obrigações. A primeira obrigação, ou melhor, imperativo, é devida aos seus cidadãos, àqueles que escolheram viver sob a protecção do Estado de Israel. Devem ter segurança física mas também económica, religiosa, moral, etc. Ninguém duvida que Israel protege os seus cidadãos e que vai inclusivamente ao ponto de arriscar a condenação internacional. Esta é a principal razão de existência do Estado de Israel e é respeitada à risca.

 

Há no entanto outra obrigação moral: Israel ocupou ou exerce controlo sobre territórios onde habitam pessoas que não são cidadãos israelitas. Tê-lo-á feito para cumprir a sua primeira obrigação (ou imperativo moral), a de defender os seus cidadãos (deixemos de lado por um momento considerações militares ou políticas). Seja como for, ocupou ou controla esses territórios e, assim sendo, acresce também uma obrigação moral sobre as populações dos mesmos.

 

Como se pode ver esta obrigação moral? Certamente que secundária à de protecção dos seus próprios cidadãos. A meu ver, uma obrigação moral deverá ser subordinada a um imperativo. Israel não deve, sob nenhuma forma, deixar de prestar as melhores condições possíveis aos seus cidadãos para poder prestar apoio aos territórios que ocupa. Mas se por um lado não necessita de lhes dar o mesmo nível de protecção, por outro tem a obrigação de não lhes retirar - ou ameaçar - a protecção de que gozam por estarem ocupados.

 

Israel goza, neste jogo de forças, de todo o poder. Se amanhã decidisse destruir todos os territórios palestinianos e executar ou expulsar todos os palestinianos, certamente que o conseguiria. Sendo um estado que respeita o direito moral de outros seres humanos, não o faz. Mas sendo o lado todo-poderoso, é sobre Israel que recai a obrigação de proteger os palestinianos. Não é apenas sobre o Hamas ou sobre a Autoridade Palestiniana, porque estes têm pouco ou nenhum poder, mas antes sobre o lado mais poderoso e que, mesmo passivamente, tem o poder de vida ou de morte sobre os palestinianos.

 

Agora é também claro que Hamas e Autoridade Palestiniana têm responsabilidades morais. Devem poder proteger os seus compatriotas, especialmente porque lhes foi dado o mandato para isso. Têm além disso um imperativo moral ainda maior que o de Israel de não colocar em perigo os palestinianos através das suas acções. Só que estes imperativos e obrigações morais não são mutualmente exclusivos nem são um jogo de soma zero. A falha do Hamas em cumprir o seu imperativo moral não acarreta uma obrigação moral de Israel de exercer mecanismos de compensação nem permite que Israel negligencie a sua obrigação moral de protecção dos palestinianos. Enquanto cumpre o seu imperativo moral, Israel não pode esquecer a sua obrigação. Ou seja, não deve colocar em risco as vidas de quem vive sob a sua protecção para defender aqueles que tem de proteger, a não ser que a primeira impeça a segunda.

 

E é aqui que podemos deixar temporariamente a dimensão moral e entrar na dimensão política. Necessita Israel de colocar em risco as vidas palestinianas para proteger as israelitas? Haverá naturalmente quem o defenda, mas eu entendo que não. Israel tem sistemas de defesa que protegem bastante bem as vidas israelitas. A ameaça do Hamas é relativamente menor, embora seja óbvio que qualquer vida perdida é uma tragédia. Na contabilidade, no entanto, e apenas olhando para os custos da ofensiva, mais israelitas terão perdido a vida em Gaza indirectamente devido às acções de Israel do que em Israel devido às acções directas do Hamas.

 

É fácil argumentar que todas as vidas têm o mesmo valor e isso é indubitavelmente verdade para mim. Para o Estado de Israel ou para os Palestinianos, isso não é assim. O imperativo moral israelita é para com os seus cidadãos. A vida de outros terá de ser secundária. Ainda assim, e seguindo a minha lógica argumentativa acima, Israel não pode ignorar completamente as vidas palestinianas para defender as israelitas. Um mal - os ataques indiscriminados do Hamas - não pode justificar outro - os ataques indiscriminados de Israel - especialmente quando um dos lados detém quase todo o poder no balanço de forças.

 

PS - Peço desculpa a quaisquer filósofos que leiam a minha desastrada tentativa de abordar este assunto. Não terei conseguido transmitir o meu ponto de vista de forma correcta, mas peço indulgência para a forma. Tenham um pouco de paciência ao ler.

Ciclos de vinganças

João André, 21.07.14

Entretanto, em Israel, um exército lá vai avançando à bruta sobre um dos territórios mais densamente povoados do mundo em busca de inimigos que se escondem no meio da sua própria população. Fora o serviço social que presta à própria população, não tenho qualquer simpatia pelo Hamas, como não tenho simpatia por gente que ataca civis, independentemente das suas justificações.

 

Da mesma forma também não tenho simpatia por um Estado que abusa do seu poder desproporcionadamente superior para entrar pelos territórios palestinianos adentro sabendo que irá matar muita gente de forma indiscriminada. Quaisquer comentários que acusem o Hamas de ser o responsável por essas mortes dizem mais de quem os escreve/diz do que qualquer coisa em si mesmos.

 

Já muitas vezes o defendi. A única solução para a espiral de violência em Israel e na Palestina é que um dos lados decida, por uma vez, não retaliar. Que aceite que, por má que seja a solução, algumas mortes hoje pouparão muito mais vidas no futuro. Sendo o lado mais poderoso e o único que pode proteger passivamente a sua população (o sistema "Cúpula de Ferro" tem conseguido manter a zero as vítimas dos rockets artesanais do Hamas), Israel seria a solução lógica para tomar esse passo, não retaliando e, idealmente, começando a considerar libertar (ou pelo menos negociar) com Marwan Barghouti.

 

Israelitas e palestinianos parecem os membros de duas famílias sicilianas num filme estereotipado sobre a Mafia. Ninguém sabe por que razão se começaram a matar, mas cada morte acarreta nova obrigação de vendetta. A solução para o problema, semelhante à de cima ou outra qualquer, passará provavelmente por uma má paz, mas esta será sempre preferível à melhor das guerras.

Um conflito sem fim

Laura Ramos, 06.09.11

Andamos tão ocupados com as últimas da  Primavera árabe e as tristes figuras de Kadhaffi  e Bashar Assad, que quase nos esquecemos das tensões noutros lugares massacrados e, aliás, bem próximos.

 

Um sofrimento já gasto, de tão falado?

 

Nem de propósito, este documentário regista os acontecimentos do dia 1 de Setembro passado, no Royal Albert Hall, em Londres. por altura da primeira actuação da  'Orquestra Filarmónica de Israel'.

Cá fora, numa manifestação pacífica, bandeiras e cartazes empunhados por manifestantes de ambos os lados: Fim à ocupação de Israel. Palestina livre.  Israel: estamos convosco. Filarmónica de Israel: o tapa-vergonhas?

Mas lá dentro, prepara-se o happening.

No final da primeira actuação da orquestra convidada, o grupo coral  Beethovians for boycotting Israel atravessou-se, da plateia, cantando em simultâneo a "Ode à Alegria", com letra adaptada às palavras de ordem palestinianas.

 

É a confusão total pelo meio da assistência, dividida entre os dois pólos da contenda (diz o vídeo, claro, dedicado aos músicos palestinianos).

 

 

Triste Palestina.

Triste e condenada Israel.

Os fins não justificam os meios

Pedro Correia, 02.06.10

 

"Lamento as mortes, mas..." Bem gostaria eu de ver banidas estas adversativas do debate político, seja a propósito de que tema for. Acaba de acontecer como tentativa de atenuar as circunstâncias do desproporcionado ataque israelita a uma embarcação sob bandeira turca ao largo de Gaza que provocou dez mortos. Ainda há pouco assistimos à mesma proliferação de mas a propósito da violência urbana em Atenas que causou três vítimas mortais. Como se o combate à pobreza ou à exclusão desse uma espécie de caução ao homicídio, ainde que involuntário.

A morte de um único ser humano em caso algum pode constituir um pormenor de somenos, inteiramente descartável à medida de conveniências ideológicas ou considerações de facto. “Neste momento, lançam-se bombas sobre os eléctricos em Argel. A minha mãe poderá ir num desses eléctricos. Se isso é a justiça, prefiro a minha mãe.” Palavras de Albert Camus, proferidas em 1957, quando as bombas da Frente de Libertação Nacional, que se opunha ao domínio colonial francês, semeavam o terror na Argélia. A luta anticolonial era justa? Só até ao ponto em que não fazia derramar o sangue de inocentes.

As palavras de Camus valeram-lhe inúmeras críticas. Mas o autor d' A Peste tinha razão: os fins não justificam os meios, a violência não é revolucionária, o assassínio é intolerável seja sob que pretexto for e revista as formas que revestir, a "sociedade nova" com que muitos sonham não pode ser erguida sob um amontoado de cadáveres. Para ser ainda mais directo: nenhum desígnio político justifica a perda de uma vida humana. Na Grécia ou em Gaza.