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Delito de Opinião

Literatura é feminina

Pedro Correia, 30.09.25

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Aos poucos, nesta era que presta culto ao género neutro, espalhou-se a tendência: comecei a ver por quase toda a parte alusões ao Prémio Nobel "de" Literatura. Por óbvia influência brasileira.

Tenham lá paciência: é algo que soa muito mal. Literatura é palavra feminina. Para quê desfigurá-la? 

Não existe Prémio Nobel "de" Química. Nem oiço menções ao Nobel "de" Economia. Ainda menos ao Nobel "de" Paz, o tal que Donald Trump sonha receber naquela delirante competição com o laureado Barack Obama, seu antecessor na Casa Branca. 

Nem escrevemos prêmio, como os brasileiros. Acento agudo, não circunflexo.

Basta de complicar o que é simples, deixemos de alterar o que já foi consagrado. E percamos o péssimo hábito de correr atrás de tudo aquilo que nos pareça a moda mais recente. Nada é tão velho como certas coisas que parecem novas.

Telemóvel Cabral, mando-te ao mercado

Pedro Correia, 27.08.25

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Não sei se com vocês acontece o mesmo: eu já não suporto o "corrector de palavras" do meu telemóvel. Está sempre a emendar o que não devia sofrer emenda alguma.

Escrevo Catar e muda de imediato para "Catarina". Sagan deriva para "Satanás". Macaco dá "marcações". Putativo fica "punitivo". Bruxa passou a "brutal". Bombar tornou-se "Bombarral". 

Mas não pára aqui. Escrevo gorjeio, emenda para "gorjeta". Rejeita bursite, entende ser "burrice". E vulgata, vá-se lá entender porquê, passou a "búlgara". Nem imagino como é que russo virou "ruído".

Estas emendas podem tornar-se embaraçosas se não forem detectadas em tempo útil. Égua virou "Eduarda". Cuisine deu lugar a "coisinha". Fanico passou a "fálico". E orgia transmutou-se em "organização": nada a ver uma coisa com outra.

Cheguei ao ponto de escrever certas palavras a ver no que dava. Merda, saiu-me "mercado" ou "mercadoria". Já impaciente, teclei "cabrão": passou a Cabral.

Há pouco escrevi baratinhas: saiu "barbatanas".

Estou farto desta mercadoria. Considero-me alvo de punitiva censura tecnológica, sempre a Bombarral. Apetece-me apresentar queixa à Provedoria de Justiça e ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ou emigrar para a Catarina. 

«Um toque da toalha do bidé na rata»

Pedro Correia, 13.08.25

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Em tempos questionei-me no DELITO sobre os motivos que terão levado os conspícuos jurados do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores a distinguir por três vezes o romancista Mário Cláudio. Nenhum outro, em mais de quatro décadas, foi tão generosamente contemplado com este galardão. Pormenor relevante: José Saramago recebeu o prémio só uma vez - em 1991, por O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Em nítido contraste com o topo do pódio concedido em 1984, 2014 e 2019 ao autor de Embora Eu Seja Um Velho Errante

Escrevi aqui, há cinco anos: «Quer isto dizer que é ele o romancista mais digno de mérito em Portugal? Duvido muito. Dir-se-á antes que é o típico escritor que escreve para ser premiado - e neste campo tem alcançado assinalável sucesso, como se comprova pelo facto de também haver recebido o Prémio Pessoa, em 2004. Honra doméstica que Saramago - o nosso único Nobel da Literatura e o mais universal dos escritores portugueses desde Fernando Pessoa - nunca mereceu.»

As minhas dúvidas desfizeram-se agora. Ao ler as linhas iniciais do mais recente romance de Mário Cláudio, cujo nome não fixei: «Procedo à lavagem superficial, um toque da toalha do bidé na rata, e nas virilhas, outro nos sovacos, seis jactos de Zara Rose, dois atrás de cada orelha, e um em cada pulso. (...) Vejo-me muitas vezes, pequenita ainda, subindo às escondidas à banqueta de espelhos da coiffueuse dela, e experimentando a cosmética disponível. Baixava as cuecas, punha-me a observar os segredos da minha anatomia, a pombinha cor-de-rosa, e magicava no que lá por dentro se conteria.»

Primor de talento literário, requinte, bom gosto. Literatura Zara Rose, escrita ao impulso de seis jactos. Cheira-me que vem aí novo prémio a caminho. 

O 25 de Abril não se fez para isto

Pedro Correia, 23.07.25

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Vivemos na era das atitudes birrentas e do queixume em sessões contínuas. Também nisto me sinto desactualizado. Há largos anos, era eu rapaz, aprendi: é feio ser queixinhas e uma estupidez fazer birra seja pelo que for. Depois ensinei isso aos mais jovens.

Nestes tempos recentes, a queixinha e a birrinha tornaram-se inseparáveis. Com direito a emblema na lapela, caderneta por pontos, quadro de honra. Falta pouco para justificarem condecoração no 10 de Junho.

Os queixinhas proliferam como cogumelos. Com eles medra o ofendidismo: qualquer coisa belisca, perturba, ofende, angustia, traumatiza. Isto começa a parecer uma sociedade de donzelas vitorianas.

Lamento, mas é bote em que não embarco: abomino gente birrenta e queixinhas, desprezo o ofendidismo militante. E sou frontalmente contra o crescente policiamento do vocabulário na Assembleia da República, que devia ser o palco mais livre da nação. Daí dizer daqui ao presidente do parlamento, José Pedro Aguiar Branco, e aos restantes 229 deputados: frouxo e fanfarrãoseja em que contexto for - são vocábulos normalíssimos no debate político, não merecem censura alguma.

Consideram que dizer coisas como estas ultrapassa o decoro parlamentar e constitui abuso da liberdade de expressão? Caramba, que almas tão delicadas. Parafraseando uma frase batida, o 25 de Abril não se fez para isto. 

Progresso, palavra traída e pervertida

Pedro Correia, 24.09.24

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Execuções na guilhotina em Paris (1794)

O progresso. Se há palavra malbaratada, desvirtuada, pervertida, vilipendiada, é esta: a palavra progresso - sempre pronta a ser usada e abusada por todos os vendedores de ilusões. Alguns dos maiores torcionários de que há memória usaram-na em discursos e até em livros. Em nome do progresso, matou-se e torturou-se. Sob a bandeira do progresso, o homem é constantemente empurrado com excessiva frequência de regresso às cavernas. Invoca-se o progresso como se fosse um dogma, pratica-se o retrocesso como se fosse inevitável.

Nada há de tão perverso na política como esta novilíngua destinada a iludir as mais legítimas aspirações dos povos. Georges Jacques Danton, um dos próceres da Revolução Francesa, chegou a enaltecer a guilhotina como conquista civilizacional e símbolo de um futuro radioso. «O verbo "guilhotinar", notai, não se pode conjugar no passado. Não se diz: "Fui guilhotinado".»

Palavras proferidas na véspera da sua morte, a 5 de Abril de 1794: foi vítima da guilhotina, na sequência de uma conspiração liderada pelo "Arcanjo do Terror", Louis Saint-Just, que costumava proclamar: «Ninguém pode governar inocentemente.» Provavelmente tinha razão: o próprio Saint-Just viria a ser executado a 28 de Julho, aos 26 anos, acusado de ser "inimigo do povo". De nada lhe valera o brilhantismo das suas intervenções enquanto mais jovem deputado eleito para a Convenção Nacional.

Por deliberação da Assembleia Nacional, a decapitação pela guilhotina tornou-se, em 23 de Março de 1792, o único método autorizado de execução da pena capital, aplicável a qualquer cidadão: ninguém gozava de imunidade legal. Há muitas formas de iniciar uma democracia: em França foi assim.

A guilhotina, espantosamente, vigorou durante 185 anos. Até 1977, ao ser executado um tunisino acusado de torturar e matar uma antiga amante. Só quatro anos depois a pena de morte seria suprimida na pátria de Voltaire, Zola e Sartre. Aquele instrumento de suplício chegou quase aos nossos dias.

Iniciada em 1789, a primeira grande revolução moderna não se limitou a tomar a Bastilha e a derrubar o trono: também devorou os seus filhos. Esteve muito longe de ser a última. Porque nenhuma engenharia social inflamada por cartilhas ideológicas é capaz de alterar o cerne da natureza humana.

Sinónimos de dinheiro

Pedro Correia, 05.09.24

Creio que nenhuma outra palavra tem tantos sinónimos na língua portuguesa como dinheiro. Sinónimos cultos, populares, de jargão profissional, de regionalismos ou coloquialismos diversos. 

Deixo o desafio aos leitores. Para que escrevam aqui os primeiros cinco sinónimos que lhes ocorrerem. Pelo mesmo só cinco de cada vez, não para despejarem listas de vinte ou trinta palavras copiadas de dicionários digitais.

A lista virá depois. Feita por nós próprios.

Novilíngua

Pedro Correia, 28.06.24

apropriação cultural   elefante na sala   pacto de agressão   grande capital   banho de multidão   tecido produtivo   processo de empobrecimento   instrumentos de dominação  minoria étnica  acto eleitoral  novo ciclo  valores de abril  fadiga fiscal  segundo resgate  tratado orçamental   política de direita   capitalismo selvagem   dívida soberana   lucros colossais   défice democrático  responsabilidade orçamental  assento parlamentar  programa cautelar  direitos reprodutivos  alargamento a leste   estado social   fundos europeus   ganhos de produtividade   crescimento zero   valor acrescentado   factor produtivo   alternativa de esquerda   bloco central   processo decisório   interesses dos trabalhadores   economia paralela   emergência financeira   estado da arte   procedimento concursal   arco da governação   novos desafios   parceiros sociais   direitos adquiridos  terceira via  faixa etária  almofada orçamental  crescimento sustentável  paraíso fiscal  indispensável clarificação  socialismo científico  causas fracturantes  heteropatriarcado tóxico   tarefa hercúlea   fonte próxima   novo paradigma   reforma estrutural   zona de conforto  democracia iliberal   janela de oportunidade   murro na mesa   a todos e a todas

Arranca, arranca, arranca, arranca

Pedro Correia, 28.03.24

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Dois títulos da primeira página do caderno de economia do Expresso, de 15 de Março.

Este jornal ignora verbos comuns como iniciar e começar.

Só sabe "arrancar". Nada mais.

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O mesmo parece acontecer com a SIC, outro órgão do grupo Impresa. Eis duas notícias difundidas neste canal na passada segunda-feira. Os editores parecem desconhecer outros vocábulos: "arrancar" serve para tudo.

Sonharão por lá com amputações, mutilações, decapitações? Ignoro.

Sei, isso sim, que a compressão lexical galopa, cada vez mais veloz.

Ou arranca, para mantermos o registo monovocabular destes conspícuos títulos jornalísticos.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 24.09.23

 

Tudo chega ao fim: o Verão também. Aliás, se virmos bem, em termos mediáticos o Verão já terminou há vários anos. Passou a ser designado como «onda de calor» - designação da moda. Três palavras em vez de uma para significar o mesmo. Complicar tornou-se lema dominante no discurso jornalístico. Nada refrescante, convenhamos.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Arrancar - não sabem dizer outra coisa

Pedro Correia, 15.08.23

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De repente, palavras claras, genuínas e consagradas da nossa bela língua portuguesa parecem ter desaparecido do mapa.

 

Já mencionei noutro lado o ominipresente colocar, que por influência brasileira mandou borda fora o mais simples e directo verbo pôr. Como se estivesse amaldiçoado.

Uma praga também denunciada pelo escritor e linguista Manuel Monteiro no seu livro O Mundo Pelos Olhos da Língua (Objectiva, 2022), aqui recomendado. Em que reproduz várias frases que se tornaram ridículas desde que esta absurda tendência foi sendo imposta:

- «Não colocar os pés, obrigado.»

- «Colocaram as nossas vidas em perigo.»

- «As pessoas que comem peixe grelhado e depois colocam dois litros de azeite.»

- «Secretário-geral da ONU apela a Putin para colocar fim à invasão.»

- «Presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia coloca água na fervura.»

Enfim, um modismo que redundou num monumental disparate. Sucedem-se as frases abstrusas com este verbo em regime de monopólio. Debitadas até por forças políticas que se proclamam antimonopolistas.

 

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Outros verbos que parecem cada vez mais fora de uso são começar ou iniciar. Substituídos ambos pelo feio e ambíguo arrancar. Este, agora, serve para tudo.

Ainda ontem ouvi, num noticiário da SIC: «A equipa minhota somou 1-0 e arrancou o campeonato com três pontos.»

Dois erros nesta frase. O primeiro, a utilização do verbo somar numa vitória futebolística de um-a-zero. O segundo, mais grave: este descabelado abuso do arrancar (que, não esqueçamos, significa puxar, partir, fugir, sair, extrair, colher, extirpar, remover, desenraizar, guilhotinar) como sinónimo exclusivo de começar.

Será atracção pelo erre dobrado? 

Ignoro. Mas não tenho a menor dúvida em concluir que estamos perante mais um disparate generalizado.

Cada ignorante copia o outro - e o resultado é este.

Casca dura e miolo elíptico

Pedro Correia, 08.06.23

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Segundo a Porto Editora, as três palavras mais procuradas na Infopédia durante o mês de Maio foram estas: galamba, idadismo e burgo.

Galamba, para quem não sabe, é «uma variedade de amêndoa algarvia, de casca dura e miolo elíptico alargado de tonalidade clara». Uma das mais conhecidas é a galamba-de-Boliqueime.

Talvez o ainda ministro João Galamba, com a falta de noção que o caracteriza, se sinta lisonjeado com tanta notoriedade. Não podemos negar-lhe o regozijo: é bem merecida.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia

Pedro Correia, 24.03.23

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Escombros de Irpin após ataque russo (2022)

 

George Orwell ensinou-nos o valor das palavras. Perverter o seu significado é, muitas vezes, ceder terreno aos inimigos da liberdade. É fundamental, por isso, estarmos sempre atentos à importância de cada rótulo, de cada etiqueta, de cada frase feita em suposta representação da realidade.

A brutal ditadura de Putin, consciente deste facto, decretou penas de prisão a todos quantos chamassem guerra à guerra. Os russos só podem entoar a eufemística lengalenga putinesca, que chama «operação militar especial» à criminosa invasão do território ucraniano pela maior potência atómica do planeta.

Cada quadrante com os seus eufemismos. Os amigos do Kremlin em Portugal chamam simplesmente «guerra» àquilo - diluindo-se todo o horror concreto dos massacres cometidos pelos russos em Butcha, Borodianka, Irpin, Kramatorsk e Mariúpol num vocábulo abstracto.

Até o jornalismo que persiste em ser rigoroso e sério pode recorrer a expressões equívocas. Acontece quando alude à «Guerra da Ucrânia», como se houvesse simetria exacta entre agressor e agredido.

Mas não há.

O que ali ocorre é a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Iniciada faz hoje 13 meses e ainda sem fim à vista. Saibamos dar-lhe o nome certo. Sem enganos, sem eufemismos, sem ambiguidades.

A palavra pervertida

Pedro Correia, 16.12.22

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O progresso. Se há palavra malbaratada, desvirtuada, pervertida, vilipendiada é a palavra progresso - sempre pronta a ser usada e abusada por todos os vendedores de ilusões. Alguns dos maiores torcionários de que há memória usaram-na em discursos e até em livros. Em nome do progresso, matou-se e torturou-se. Sob a bandeira do progresso, o homem é constantemente empurrado com excessiva frequência de regresso às cavernas. Invoca-se o progresso como se fosse um dogma, pratica-se o retrocesso como se fosse inevitável.

Nada há de tão perverso na política como esta novilíngua destinada a iludir as mais legítimas aspirações dos povos. Danton, um dos próceres da Revolução Francesa, chegou a enaltecer a guilhotina como conquista civilizacional e símbolo de um futuro radioso. «O verbo "guilhotinar", notai, não se pode conjugar no passado. Não se diz: "Fui guilhotinado".»

Palavras proferidas na véspera da sua morte, a 5 de Abril de 1794: foi vítima da guilhotina, na sequência de uma conspiração liderada por Saint-Just, que costumava proclamar: «Ninguém pode governar inocentemente.» Provavelmente tinha razão: o próprio Saint-Just - apelidado de Anjo da Morte - viria a ser executado a 28 de Julho (10 do Thermidor do ano II, segundo o calendário revolucionário), com apenas 26 anos, acusado de "inimigo do povo". Com ele morria Robespierre - outro protagonista dos alvores da Revolução Francesa, outra vítima crepuscular da guilhotina.

De nada valera a Saint-Just o brilhantismo das suas intervenções enquanto mais jovem deputado eleito para a Convenção Nacional, em 1792, com a ardente apologia da revolução permanente. «Àqueles que o povo (não o voto, porque o voto é um acto de Estado, de subserviência) derruba, não devem ser conferidos quaisquer direitos», proclamou, entre apelos à execução sumária de Luís XVI, o monarca deposto três anos antes. Sem imaginar que viria a ser vítima da sua própria oratória, tão implacável, tão intransigente, tão incendiária.

Foi a primeira revolução de grande envergadura a devorar vários dos seus filhos - e esteve muito longe de ser a última. Nenhum discurso inflamado por cartilhas partidárias é capaz de atingir os abismos que moldam e condicionam a natureza humana.

 

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Execução de Saint-Just e Robespierre, em 28 de Julho de 1794 (10 do Thermidor): a Revolução Francesa devorando os seus filhos

Catar, catariano ou catarense

Pedro Correia, 09.12.22

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Parece haver ainda dúvidas sobre a grafia no nosso idioma da palavra Catar, aludindo ao Estado anfitrião do Campeonato do Mundo de Futebol. O melhor é desfazê-las junto de quem sabe. Para o efeito, consultemos o Ciberdúvidas.

Catar - transliteração da fonética árabe - é topónimo já consagrado em dicionários e prontuários. Rejeitando-se a aberrante transliteração inglesa Qatar, «impossível à luz da tradição ortográfica portuguesa», como assinala o José Mário Costa. E muito bem: cada língua com a sua norma.

Convém acrescentar que os respectivos gentílicos podem ser catarianos ou catarenses. Qualquer das fórmulas é aceitável.

Alguns dirão que isto interessa pouco ou nada: o que importa é o desporto. A esses direi que nunca devemos desligar o desporto da cultura. E a quem argumentar que só os direitos humanos são tema relevante, responderei que a valorização da língua portuguesa, património da Humanidade, é igualmente um direito. Para nós, é um dever também.

No reino da redundância

Pedro Correia, 04.12.22

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O excesso de zelo na correcção política, com receio daquilo que as falanges mais extremistas possam verter nas redes insociais, gera situações destas, ao nível da linguagem: após "prisioneiras" (palavra cujo género gramatical é inequívoco) surge hoje a ingente necessidade de acrescentar "do sexo feminino".

Como se o termo anterior permitisse outra opção.

Caímos no reino da redundância. Não porque quem escreve ou quem traduz ou quem edita (neste caso a tradutora e a chancela editorial têm inequívoco mérito), mas porque as patrulhas ideológicas andam cada vez mais vigilantes e não permitem qualquer fuga à norma.

Aliás, não permitem sequer o recurso à norma.

Como este caso, por absurdo, apenas confirma.

Escrever bem (ou mal)

Pedro Correia, 25.08.22

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Gostamos imenso de usar palavras em excesso. Vejo isso todos os dias no DELITO. Muitos comentários, assinados ou não, começam com quatro vocábulos inúteis: «Na minha opinião pessoal.» Inúteis por ser óbvio tratar-se de opinião, emitida por quem a escreve. Ainda nada foi dito e a frase já tropeça com peso a mais.

Uma variante desta, tão inútil como a primeira, abunda também por aí, sobretudo no discurso oral: «Eu acho que.» O pronome pessoal é redundante, mas cada vez mais insistente por influência brasileira, em réplica da sintaxe norte-americana. Apetece-me brincar com isto dizendo que temos muita gente com vocação para detective. É vocabulário revelador da nossa estrutura mental: "achar" como débil sucedâneo de "pensar".

 

Edito textos de outros há quatro décadas. Não apenas por missão jornalística (aos 21 anos já era coordenador de secção num semanário, aos 22 era editor), mas habituei-me a "limar prosa" mesmo fora da esfera profissional, combatendo a tendência tão portuguesa para o culto do pleonasmo. 

Esta tendência mantém-se. No advérbio «mesmo», semeado a torto e a direito nas frases, sem nada acrescentar no significado. Não faltando quem repita «é assim mesmo», uma vez e outra. Pode passar na fala, mas é um calhau na escrita.

Idem, para a profusão de pronomes possessivos, de novo por influência brasileira. Aponto sempre, como exemplo supremo da arte de bem escrever, a magnífica frase inicial de Cem Anos de Solidão: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.»

Nem uma palavra inútil. Apenas um adjectivo. Os nossos cultores de redundâncias logo enfiariam ali um possessivo a martelo: «O [seu] pai.» Tornou-se erro corrente. 

 

O mesmo sucede com a locução «hoje em dia», exemplo muito comum de desperdício vocabular. Está tudo dito no advérbio inicial - o resto só acrescenta ruído. Ou com a partícula enfática «é que», admissível na linguagem oral, sobretudo na forma interrogativa, mas sem préstimo na escrita excepto se reproduzirmos diálogos.

«É que hoje em dia chove mesmo muito pouco.»

Nesta frase agora inventada por mim encontramos três dos erros estilísticos que anotei. Costumo encontrá-los com frequência em prosa de gente que pretende escrever bem. Até em ficcionistas muito em voga, que vão conferindo argumentos de autoridade a quem "acha" que escrever é só alinhar palavras.

Podem "achar". Mas acham mal.