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Delito de Opinião

Portugal, outras paisagens

Ana CB, 14.02.23

 

A geografia de Portugal é tão variada quanto o somos nós, portugueses, e a nossa cultura. Este pequeno rectângulo da Europa, com fronteiras delimitadas pelo mar e pelo seu povoamento, a que se juntam dois punhados de ilhas e ilhéus no Atlântico, tem uma diversidade paisagística tão imensa que surpreende até mesmo quem já lhe conhece mais ou menos bem os “cantos à casa”.

 

Conjunto de antigo e moderno, numerosas praias de macias areias e extensas campinas verdejantes, testemunho de uma história herdada dos seus antepassados fenícios, gregos, romanos e árabes: assim é Portugal, terra acolhedora, perfumada pelas flores.” – e é assim que o jornalista e escritor André Visson (1899-1971) começa o artigo que escreveu em 1954 sobre Portugal, com o título A Garden by the Sea (traduzido como Jardim da Europa à beira-mar plantado n’O Grande Livro das Viagens publicado pelas Seleccções do Reader’s Digest, e sobre o qual já falei no meu post O culpado). Quando Visson escreveu isto Portugal era apenas mais um país minúsculo e pobre num continente que ainda lambia as feridas da mais recente guerra, e este retrato permaneceu inalterado durante décadas. Milhares de rotações terrestres e terabytes de avanços tecnológicos depois, o nosso país passou de ilustre desconhecido a coqueluche do turismo mundial, e basta uma ligação à Internet para perceber que a oferta paisagística de Portugal vai muito além das praias de areias macias e campinas verdejantes. Milhões de fotografias, divulgadas em tudo o que é website ou rede social, testemunham a variedade e riqueza do nosso património geográfico e provam que uma viagem no nosso tão pequeno país é como olhar para dentro de um caleidoscópio – a cada curva do caminho, a paisagem muda, surpreende, e nunca nos aborrece.

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E no entanto, grande parte de toda a publicidade que é feita a Portugal parece focar-se essencialmente nos mesmos lugares, que são replicados fotografia atrás de fotografia com ligeiras variações, mais ou menos Photoshop, mais ou menos saturação de cor, luz matinal ou do entardecer, ângulo mais ou menos aberto… Não discuto aqui o merecimento destas escolhas, e de muitos deles também já falei noutros posts. Mas hoje apetece-me falar de outras paisagens portuguesas, igualmente inspiradoras, igualmente importantes, igualmente dignas de serem vistas mais uma vez, em fotografia e depois ao vivo, e que estão muito menos divulgadas. Cada uma delas tem características próprias, por vezes únicas, e contribui para enriquecer a diversidade deste país a que chamamos nosso. Estas são algumas delas, entre as muitas mais que Portugal oferece a quem faz questão de o conhecer.

 

Barragem de Santa Luzia

 

Escondida entre as serranias ondulantes da serra do Açor, a albufeira da Barragem de Santa Luzia é quase uma miragem: um deslumbrante lençol de água azul-eléctrico que surge de repente quando fazemos uma curva na estrada que vem da Pampilhosa da Serra. O contraste da paisagem cria no cérebro uma sensação de incongruência, parece impossível a coabitação entre a crista quartzítica maciça que se ergue do lado esquerdo, onde o muro de betão da barragem fecha o círculo e trava o passo ao rio Unhais, e o lago tranquilo rodeado de colinas arborizadas, que se transformam em picos acastanhados mais ao longe, com a serra da Estrela a espreitar entre eles, acinzentada pela distância.

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Esta é uma parte do nosso interior beirão que se mantém relativamente tranquila e é pouco explorada turisticamente, ofuscada por outras áreas em volta que são mais publicitadas. Tem no entanto uma oferta hoteleira razoável, sobretudo ao nível do alojamento local, excelentes praias fluviais – uma delas na própria albufeira da barragem, rodeada por uma bonita mata – e, como não podia deixar de ser, uma gastronomia excelente. Foi sobre esta região que escrevi o post Nas curvas da Pampilhosa.

 

 

Buracas do Casmilo

 

Perto da aldeia de Casmilo, no Maciço de Sicó, o Vale das Buracas é um conjunto de formações geológicas resultantes do abatimento da parte central de uma colina, que deixou a descoberto as grutas que existiam no seu interior, escavadas pela água nas zonas calcárias mais porosas durante o período jurássico médio. Apesar de pouco profundas, algumas destas grutas têm uma dimensão considerável e o aspecto de todo o conjunto é magnífico e original, diferente de todas as outras formações geológicas que encontramos no nosso país.

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As grutas estão rodeadas de vegetação rasteira e oliveiras, e surgem como manchas cinzentas e negras entre o verde dominante. Na sua maioria são de fácil acesso, bastando subir um pouco pelos carreiros marcados pelos passos de muitos outros visitantes. Nota-se que algumas servirão regularmente de abrigo e local de reunião de grupos, a julgar pelos vestígios que ali são deixados, por vezes algo estranhos.

 

 

Carrascal do Juízo

 

Junto à aldeia do Juízo, num planalto meio desértico (e quase deserto) da Beira Alta, há um bosque de aspecto misterioso que poderia ser palco para o enredo de uma novela gótica. É o Carrascal do Juízo, um bosque de azinheiras onde os troncos das árvores fazem lembrar esqueletos retorcidos e estão cobertos de líquenes tão antigos que já foram objecto de estudo científico. É atravessado pela ribeira do Porquinho, que tanto pode estar quase seca como ser necessário cruzá-la sobre as poldras ali colocadas para facilitar a passagem. Quando saímos do bosque e chegamos ao ponto mais alto das redondezas, os olhos perdem-se nos muitos quilómetros da paisagem serrana que vai de Marialva a Trancoso.

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Sobre a aldeia do Juízo e o projecto de alojamento local que nela se desenvolve podem ler mais pormenores no post Juízo, uma aldeia que tem histórias.

 

 

Estuário do Sado

 

É uma das nossas Reservas Naturais e estende-se por vários quilómetros e municípios, alimentando pessoas e animais desde que há memória. As margens do Sado no seu estuário são essencialmente planícies aluviais, embora também haja algumas zonas dunares e de praia. A riqueza florestal e agrícola do estuário e a sua diversidade faunística fazem dele um local privilegiado tanto para trabalhar como para passear. Há inúmeros e variados pontos de interesse ao longo dos muitos quilómetros que rodeiam a extensão onde o Sado se encontra com o mar. Um dos meus favoritos é a zona de Alcácer do Sal a que chamam Amieira, mais noticiada por ser todos os anos invadida por flamingos em migração para outras paragens, mas que é permanentemente habitada por uma enorme quantidade de aves diferentes, desde cegonhas a garças, pernilongos, alfaiates e outras pernaltas, além das omnipresentes gaivotas, que gostam de perseguir em grande algazarra os tractores que preparam o solo para a semeadura do arroz.

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O meu local mais preferido no estuário do Sado é o cais palafítico da Carrasqueira, uma obra-prima da arquitectura popular com características únicas que o tornam verdadeiramente fora de série. Embora cada vez menos pescadores façam uso dele, tem-se mantido quase inalterado ao longo das décadas e tornou-se parte importante da paisagem cultural desta região, com o seu aspecto colorido, tosco, meio decrépito e absurdamente cheio de poesia.

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Podem conhecer mais um pouco sobre estes (e outros) locais no post 11 lugares a não perder em Portugal continental.

 

 

Estuário do Tejo

 

É uma das zonas húmidas mais importantes da Europa e ramifica-se em esteiros e mouchões de aluvião, sendo as suas margens em grande parte constituídas por campos de vasa e sapais, onde a vegetação é rasteira e predominam as gramíneas e os caniços. A importância do estuário do Tejo deve-se sobretudo ao facto de ser ambiente de permanência regular de inúmeras espécies de aves aquáticas (que chegam a atingir o impressionante número de 120 000 indivíduos), e um dos lugares onde podemos observar mais de perto muitas destas aves é o Parque Linear Ribeirinho do Estuário do Tejo, entre a Póvoa de Santa Iria e Alverca. Há inúmeros patos, as sempre presentes gaivotas, e uma enorme população de guinchos, pilritos, alfaiates e maçaricos-das-rochas, só para citar os que são mais facilmente visíveis. Nas ribeiras que desaguam no Tejo há felosas e galinhas-d’água, e no meio do verde da erva emerge de vez em quando o pescoço branco e comprido de uma garça-boieira, movendo-se com aquele balanço quase hipnótico tão típico delas.

 

Esta zona do estuário é em grande parte ocupada pelo vasto Mouchão da Póvoa, onde apenas vemos desenhadas as silhuetas de algumas árvores, e o Tejo que avistamos parece só um rio estreito e tranquilo, muito diferente das perspectivas mais reconhecíveis que dele temos em vários outros troços do seu percurso.

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Fanal

 

O Fanal é um caso à parte na Madeira, uma paisagem distinta de todas as outras que encontramos nesta ilha, sobretudo pelo seu bosque de tis centenários (o til é uma árvore endémica da Madeira e das Canárias), que aqui vivem desde antes dos Descobrimentos. Neste bosque encantado, os troncos rugosos e retorcidos das árvores velhíssimas parecem ir ganhar vida a qualquer momento, e imaginamos com facilidade que de repente vão começar a falar connosco numa voz roufenha e mal-humorada, perguntando-nos porque estamos a incomodá-las no seu sono. Uma pequena lagoa, entre a orla do bosque e uma escarpa, ajuda ao encantamento; e se estiver neblina, como tantas vezes acontece, a impressão de estarmos dentro de um filme é ainda maior. Ou então, e porque estamos a altitudes que rondam os 1100 metros, podemos ter a sorte de chegar a um miradouro e ver abaixo de nós um tapete de nuvens extenso e compacto, e sentimo-nos como que a voar. É um outro mundo.

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Guadiana

 

Apesar de ser o terceiro maior rio que corre em território português e fonte do imenso lago artificial criado pela Barragem de Alqueva, o Guadiana continua a ser um ilustre desconhecido para a maioria dos portugueses. Talvez isso se deva ao facto de a maior parte da sua extensão correr em Espanha, e muito do que sobra ser fronteira entre os dois países, ou talvez porque do lado de Portugal o seu curso se faz maioritariamente em zonas pouco povoadas. O certo é que este rio tem muito menos protagonismo do que vários outros do nosso país, e por isso mesmo ainda há muito por “descobrir” nas suas margens.

 

Pouco depois de passar a ser também nosso, uns quantos quilómetros abaixo da fronteira do Caia, o Guadiana é palco para as ruínas de uma ponte com muita história. A Ponte da Ajuda foi construída no séc. XVI para ligar Elvas à luso-espanhola Olivença, quando a questão da propriedade deste território ainda não suscitava dúvidas. Tinha 385 metros de comprimento, suportados por 19 arcos, e um torreão colocado no centro. Foi destruída e reconstruída várias vezes até 1709, quando o exército castelhano a fez explodir durante a Guerra da Sucessão Espanhola. Está em ruínas desde essa altura, e é bem visível a partir da bem mais recente ponte que faz parte da estrada entre Elvas e Olivença – e que tem uma placa a indicar Espanha na extremidade em que supostamente entramos no país vizinho, mas (compreensivelmente) nenhuma placa a indicar Portugal quando fazemos o trajecto em sentido contrário.

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Lagoa de Paramos

 

A Lagoa de Paramos, também conhecida como Barrinha de Esmoriz, é a maior área lagunar da região norte de Portugal e um local fascinante. Fica muito perto do mar e à sua volta corre um passadiço de madeira com oito quilómetros, um lugar privilegiado para passear ao sol, relaxar e observar aves de várias espécies. Dependendo da altura do ano, além das habituais gaivotas e de patos variados, é possível avistar guinchos, galeirões e galinhas-de-água, pernilongos e pilritos, garças, águias-sapeiras, e também alguns pássaros menos comuns como o bispo-de-coroa-amarela ou o chamariz. Rodeada de dunas e canaviais, em certos troços do passadiço avistamos os aglomerados de casas das povoações vizinhas, mas a maior parte do tempo é passada tendo apenas por companhia a água, a vegetação rasteira e os sons das aves.

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Situada numa região que tem muito para ver, incluí-a num roteiro que já aqui sugeri há algum tempo, e que podem encontrar no post Roteiro de fim-de-semana: entre a natureza e a História.

 

 

Meandros do Zêzere

 

Um dos troços mais admiráveis do rio Zêzere é o que serpenteia entre a aldeia de Dornelas e a barragem do Cabril, conhecido como Meandros do Zêzere. Atravessando esta zona extremamente montanhosa, o rio desbrava o seu caminho moldando-se ao relevo irregular e intenso que domina a paisagem, seguindo com calma, imperturbável, pelas curvas e contracurvas que a serrania o obriga a percorrer. Da N344, a estrada que vai para a Pampilhosa da Serra, há vários locais de onde podemos observar esta maravilha da natureza. Outro dos lugares privilegiados para apreciar os Meandros é a aldeia de Álvaro, estrategicamente situada ao longo de uma crista sobranceira ao rio, precisamente no ponto onde ele forma um cotovelo muito pronunciado. Sobre esta região já falei no post Nos meandros do Zêzere, e continuo a considerá-la como um dos melhores segredos do nosso país.

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Norte da ilha das Flores

 

Entre Santa Cruz das Flores e o Farol de Albarnaz, o ponto mais remoto da ilha, os olhos voltam-se para o mar. Aqui não há cascatas nem lagoas, mas sim miradouros sobre ilhéus rochosos com nomes tão díspares como Garajau, Álvaro Rodrigues, Furado ou Abrões. Ao longe, mais ou menos visível consoante o tempo, o Corvo marca presença, e se o dia estiver desanuviado conseguimos distinguir a olho nu a brancura das casas da Vila do Corvo, brilhando ao sol entre o verde-acinzentado que cobre a ilha. A estrada que nos leva por esta parte da costa das Flores é tudo menos linear e demora algum tempo a percorrê-la, principalmente porque não resistimos à tentação de parar de poucos em poucos quilómetros (podem perceber melhor porquê no post Na ilha das Flores - parte VI), mas tirar uma manhã ou tarde para conhecer esta zona menos divulgada da ilha é tempo bem empregue.

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Quando chegamos à ventosa Ponta do Albarnaz, a sensação é de que estamos no fim do mundo. Não fossem o farol e as vacas que por ali pastam, poderíamos pensar que a vida se tinha extinguido da face da Terra. Mas mesmo não estando no fim do mundo, estamos praticamente no fim de um continente: o ilhéu de Monchique, que é considerado o ponto mais ocidental da Europa, fica a uns meros quatro quilómetros de distância, em linha recta sobre o mar para sudoeste.

 

 

Pateira de Fermentelos

 

Classificada como Zona Húmida de Importância Internacional, fértil em riqueza biológica, e habitat de muitas espécies de aves, anfíbios e peixes, a Pateira de Fermentelos é além do mais um local com uma variedade de ambientes que mudam radicalmente consoante a hora do dia, as alterações climáticas e a perspectiva de onde a observamos. É um dos lugares mais românticos do nosso país, com os seus mirantes de madeira gémeos que evocam outras latitudes e outros tempos, os canaviais que ondulam ao vento, os barcos de fundo chato resguardados entre a vegetação das margens. Podem ler mais pormenores sobre esta belíssima lagoa, que ainda tanta gente desconhece, no post Pateira de Fermentelos, a lagoa tranquila.

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Pôr-do-sol no Alentejo

 

Os melhores pores-do-sol em Portugal são os da planície alentejana. Há neles uma magia especial que transforma o céu na paleta de um pintor, mesmo quando por vezes ele é atravessado por nuvens. A amplitude da paisagem, frequentemente desprovida de grandes árvores, mostra-nos silhuetas negras sobre campos amarelos à nossa volta, enquanto faixas cor-de-rosa e laranja se destacam num fundo azul brilhante por cima de nós. Outras vezes o céu fica vermelho berrante, incendiando a planície, as casas e as estradas, ou adquire a suavidade das cores pastel, como se filtradas por um vidro fosco – mas nunca, nunca se repete.

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Portal do Inferno

 

A estrada M567 percorre de forma irregular, como se estivesse embriagada, uma parte do Maciço da Gralheira, e num dos seus troços segue por uma crista muito estreita entre duas vertentes abruptas: é o Portal do Inferno, um dos miradouros mais fabulosos do nosso país. Estamos mil metros acima do nível do mar e de ambos os lados da estrada, lá muito no fundo, correm ribeiras, cada uma para seu lado (uma delas passa pela aldeia abandonada de Drave). Em volta desdobram-se as serras da Arada, de São Macário e da Freita, e as fundas linhas de água que as cortam verticalmente, vistas daqui, dão-lhes um aspecto característico a que chamam “garra”, por fazer evocar os dedos das patas de uma ave de rapina. É mais uma paisagem única no nosso país.

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Serra de São Macário

 

A altura certa para subir a São Macário é perto da hora do sol-pôr, em dia com poucas ou nenhumas nuvens. Quando as cores quentes do ocaso começam a derramar-se sobre as serranias percebemos porque é que lhes chamam Montanhas Mágicas. Nem a profusão de aerogeradores – esses gigantes esquálidos que desenham no horizonte o contorno das serras – estraga a atmosfera, antes parece chamar (ainda mais) a atenção para as formas caprichosas da paisagem que se avista em redor. Não estranho por isso a lenda do santo que dá o nome à serra, que diz-se terá escolhido este lugar para viver como eremita, penitenciando-se por ter acidentalmente morto o seu pai, pois para viver solitário não podia ter escolhido melhor. A gruta onde supostamente viveu é agora uma capela, mas desconfio que foi a beleza do entorno o verdadeiro motivo por trás da construção de uma outra capela, maior, mesmo no pico da montanha, rodeada de um muro que a protege das ventanias e (mal) acompanhada pelas torres de comunicações ali instaladas. Neste lugar de contemplação, é como se já estivéssemos a meio caminho do céu.

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Árvores queimadas

 

Todos os anos, nas várias viagens de carro que sempre faço em Portugal, deparo-me em algum lugar com uma paisagem de árvores queimadas. Em passeio na desolação de um pinhal ou floresta devastados pelo fogo não se ouve um som – não há pássaros a piar, nem folhas a sussurrarem ao vento, nem rumor de insectos. Apenas há silêncio.

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Os incêndios são um flagelo nacional que nos afecta brutalmente todos os Verões e parece aumentar com o passar dos anos, consumindo recursos e vidas. Os seus efeitos demoram anos a desaparecer da paisagem, e permanecem para sempre no coração e na memória de quem neles perdeu os entes queridos, ou a eles sobreviveu miraculosamente.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Estradas

Ana CB, 31.03.22

 

É unânime que a invenção da roda foi um dos acontecimentos mais importantes para a evolução da humanidade, sobretudo quando mentes brilhantes se lembraram de aplicar o conceito na criação de meios para o transporte de cargas pesadas. Mas pouca importância é dada ao facto de que essa invenção acabou por arrastar com ela uma outra: a da estrada.

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As estradas são um paradoxo: entidades estáticas, a sua função principal (quiçá única) é facilitar a movimentação – das pessoas e das “coisas”. Imóveis, levam-nos a quase todo o lado. Podemos percorrê-las a pé ou numa variedade de meios de transporte diferentes, mas impelem-nos sempre a avançar. Ninguém fica simplesmente parado no meio de uma estrada. Se queremos parar, saímos dela. Podemos ficar na berma, a olhar para quem passa, ou sentar-nos a descansar, ou fazer qualquer outra coisa, mas sempre à margem. Uma estrada pede progressão, não imobilidade.

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A estrada pavimentada mais antiga que sobreviveu parcialmente até aos nossos dias ligava um cais nas margens do Lago Moeris à pedreira de Widan el-Faras, de onde era extraída a pedra basáltica para as câmaras mortuárias das Pirâmides de Gizé. Com cerca de dois metros de largura e composta por lajes de arenito e rocha calcária à mistura com madeira petrificada, calcula-se que date de pelo menos 2500 a.C., mais século menos século. Mas sabe-se, por exemplo, que na Mesopotâmia já se pavimentavam ruas desde 4000 a.C.

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Gizé

 

No entanto, é aos Romanos que o nosso imaginário associa a construção em massa de estradas. A calçada romana tinha quatro estratos diferentes de materiais e era feita para durar e facilitar a expansão do império, reduzindo o tempo de deslocação das colunas militares e melhorando a comunicação entre as grandes cidades que se iam criando por todo o território ocupado. Desde cerca do ano 300 a.C. e até ao declínio do império, dizem os livros que foram construídos por todo o território cerca de 80 mil quilómetros de estradas pavimentadas. Muitas delas foram continuadamente usadas e reestruturadas até aos dias de hoje; de outras, há troços que subsistem na sua forma praticamente original. Indiferentes aos recuos e avanços civilizacionais ao longo dos séculos e aos desfasamentos técnicos entre as várias regiões e culturas do nosso mundo, as estradas persistiram e foram ganhando cada vez mais importância e presença no planeta Terra, e hoje já não saberíamos viver sem elas.

Ponte romana de Vila Formosa (Alentejo)

 

As estradas são como as pessoas (ou não fossem elas uma invenção nossa!). Umas adaptam-se a cada sobressalto no relevo do terreno: curva para a esquerda aqui, cotovelo para a direita ali, contornam milimetricamente precipícios, lançam-se às alturas das montanhas, esgueiram-se por desfiladeiros que mais parecem buracos de agulha. Outras são impetuosas e cortam a direito por onde passam, rasgam túneis, esventram colinas, abatem árvores, compactam dunas. Outras ainda comportam-se com moderação, ora limando uma ruga orográfica, ora fazendo a ponte sobre um vale apertado ou sobre um rio que não convém incomodar.

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Para lá da sua utilidade facilitadora de movimentos militares e comerciais, as estradas tornaram-se também um “objecto de culto” para quem viaja em lazer. A literatura está cheia de obras épicas (ou nem tanto!) que contam histórias de viagens sobre rodas em estradas intermináveis e têm tanto de jornada de descoberta exterior como interior. O famosíssimo “Pela Estrada Fora”, de Jack Kerouac, trouxe para a ribalta a não menos famosa (e entretanto parcialmente alterada) Route 66 americana, que tinha sido criada em 1926. Os “Diários de Motocicleta” de Che Guevara descrevem uma viagem de 12 mil quilómetros da Argentina ao Peru. O “Na Patagónia”, independentemente da polémica gerada à volta do facto de Bruce Chatwin ter (segundo parece) inventado algumas das suas personagens, permanece uma belíssima narrativa de aventuras nos confins da geografia sul-americana, desde Rio Negro até Ushuaia. O mais recente “Clanlands”, dos outlanders Sam Heughan e Graham McTavish, passeia-nos pelas Terras Altas escocesas e pela sua cultura, entre histórias e diálogos cheios de humor. E o também relativamente recente “Na Planície das Serpentes”, desse “monstro” da escrita de viagens que se chama Paul Theroux, é um relato sem filtros sobre um México multifacetado, dilacerado entre a realidade dura da violência e a sua fantástica e antiquíssima cultura.

 

As minhas primeiras memórias de viagens são, precisamente, as de viajar de carro com os meus pais e a minha irmã. Naquela altura, mesmo em distâncias que hoje consideramos curtas, viajar em Portugal implicava sempre várias horas para chegar ao destino e uma preparação complicada, que envolvia farnel, almofadas para dormir no banco de trás, e sacos com material para todas as eventualidades – mesmo que fôssemos apenas às Caldas da Rainha para comprar fruta e visitar a família e regressássemos no mesmo dia. Desde então, perdi a conta às viagens que fiz por estrada, e viajar de carro permanece uma das minhas formas favoritas de conhecer mundo.

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Independentemente de nos levarem a lugares mais ou menos desejáveis, há estradas que por si só valem uma deslocação propositada para viver a experiência de as percorrer. Porque têm características únicas, porque são belas, porque nos transmitem uma sensação de encantamento, ou porque estão carregadas de História e de significado. Em Portugal, a mais famosa é certamente a N222, não só pelo seu célebre troço entre Peso da Régua e Pinhão – que lhe valeu o título de “World Best Driving Road” atribuído segundo o estudo de uma famosa empresa de aluguer de carros – mas por unir o país na quase totalidade da sua largura, entre Vila Nova de Gaia e Almendra, e acompanhar o Douro em partes do seu itinerário.

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A N222 em Foz Côa

 

Mas há várias outras estradas que me levam a querer voltar a elas uma e outra vez, e me deixam com saudades assim que as abandono. Na N304, percorrer as curvas e contracurvas do troço entre Mondim de Basto e a Campeã é ver no pára-brisas um filme sobre a grandiosidade do Parque Natural do Alvão. No Maciço da Gralheira, ziguezagueando no gume da montanha pela Estrada do Portal do Inferno, sinto-me uma funambulista em equilíbrio no arame. A M518 dá-me acesso à frescura da Fraga da Pena e depois à Mata da Margaraça, que é “só” uma das matas portuguesas mais antigas e notáveis, onde o ambiente é quase irreal. No Alentejo das estradas sem fim, na N246-1 perto de São Salvador da Aramenha há uma recta de um quilómetro em que freixos com 200 anos formam um túnel que parece dar acesso a uma outra dimensão.

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Portal  do Inferno

 

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Mata da Margaraça

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Além-fronteiras, entre uma longa lista de estradas que ainda sonho percorrer, há algumas que guardo na memória em lugar especial. Na Costa Rica, um autocarro levou-me (durante quase duas horas para cobrir apenas 90 km) de La Pita a Libéria, sobre um pequeno fragmento desse colosso de muitos milhares de quilómetros que é a Estrada Pan-Americana. Na Roménia, naquele que foi provavelmente o dia de condução mais cansativo de toda a minha vida até agora, desafiei-me a percorrer a icónica Transfăgărășan, cujo ponto mais alto fica acima dos dois mil metros: 151 km através das montanhas, dos quais 90 são de curvas e contracurvas constantes. Um desafio, sim, mas também uma satisfação, porque esta é realmente uma das estradas mais espectaculares do mundo, a todos os níveis. Mais perto, em terras dos nossos vizinhos, a parte cantábrica da N-621 inclui o desfiladeiro de La Hermida, 21 km acompanhando o rio Deva entre paredes de rocha que parecem tocar o céu, e mais para sul cruza a imensidão azul da barragem de Riaño. Na Camarga francesa, entre Aigues-Mortes e Le-Grau-du-Roi a estrada é apenas uma fita de asfalto, completamente recta e plana, rodeada de pântanos e salinas a perder de vista. Quando estive na Croácia, aconselharam-me a esquecer a auto-estrada no trajecto de Split para Dubrovnik e optar pela número 8, que segue o recorte da costa adriática e é de uma beleza fora de série – e eu segui o conselho. Ao lado, no Montenegro, não me arrependi de ignorar o ferry e continuar pela estrada que contorna a Baía de Kotor: o que se perde em tempo, ganha-se em paisagem que enche a alma. E em Itália, a SR2 entre Torrenieri e Bagno Vignoni, na região do Val d'Orcia, superou em muito tudo o que já tinha visto das paisagens toscanas em fotografia ou filme.

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A Pan-Americana na Costa Rica

A Transfăgărășan na Roménia

 

A N-621 na Cantábria

 

Camarga, sul de França

 

A Baía de Kotor, no Montenegro

 

Val d'Orcia, na Toscana

 

Para quem gosta de viajar, as estradas são dádivas dos deuses. Mais do que uma viagem de comboio ou de barco, e certamente muito mais do que uma viagem de avião, viajar por estrada dá-nos toda uma outra liberdade de movimentos e de tempo, e um contacto muito mais próximo com os lugares por onde passamos, com os seus pormenores, as suas características particulares e as suas pessoas. Permitem-nos o acesso a um mundo feito de tantas gentes e culturas diferentes, tantas obras de arte naturais ou construídas, e tantas idiossincrasias, que vai muito para lá do que julgamos ser possível existir – este mundo cheio de maravilhas, e também de desgraças, que é o nosso.

 

O sol da meia-noite

Ana CB, 18.02.22

 

Saímos do aeroporto para uma via rápida, asfalto cinza antracite delimitado por barreiras metálicas e o habitual tracejado branco entre faixas. Tínhamos pela frente quase 40 quilómetros de estrada praticamente recta e deserta, o brilho de uns faróis traseiros algumas centenas de metros à nossa frente, e o dos faróis dianteiros de um ou outro carro que se cruzava connosco muito de vez em quando. De ambos os lados da estrada, terra plana e nua, e ao fundo, longe como uma miragem, a fiada de luzes que indiciava os arredores da cidade grande, o nosso destino.

 

Por cima de nós, muito baixas, nuvens cinzentas em rebanhos ou emprateleiradas, diáfanas umas, outras mais escuras, com formas achatadas, estranhas, nitidamente estrangeiras. Acima dos estratocúmulos, o céu desdobrava-se em gradientes de azul até ao rosa-quase-branco, um brilho a prometer raios de sol aberto para breve – assim as nuvens o deixassem. O carro ia comendo quilómetros, o motor a ronronar suavemente, e eu estava como que hipnotizada por aquele céu surreal. Eram duas horas da manhã, íamos a caminho de Reiquiavique e eu via, pela primeira vez na minha vida, o sol da meia-noite.

6 Diário Islândia - estrada para Reiquiavique

Num Verão da minha infância, os meus pais ausentaram-se durante algum tempo para irem num cruzeiro à Escandinávia. Regressaram satisfeitos, cheios de histórias com palavras novas e conceitos estranhos, como “fiorde”, “tivoli”, ou “sol da meia-noite”. Para uma criança de poucos anos, associar sol e noite é uma ideia inconcebível, e devo ter feito o que fazia com tudo aquilo que ultrapassava a minha compreensão: registei e arrumei na memória, sem pensar mais no assunto. Depois cresci, nas aulas de Geografia aprendi que o eixo da Terra é inclinado e que é essa a razão da existência das estações do ano, e o que são equinócios e solstícios, meridianos e círculos polares. Percebi finalmente o que é que significava, na teoria, “sol da meia-noite”. A hora de Verão, que só apareceu para mim quando já era adolescente, mostrou-me o que era ter claridade no céu até quase à hora de ir dormir; e numa viagem de comboio entre São Petersburgo e Moscovo assisti, às quatro da manhã, a um fascinante nascer-do-sol filtrado pela neblina que se desprendia de uma floresta interminável. Mas nada nem ninguém me preparou para a tremenda emoção causada pela beleza daquele meu primeiro verdadeiro sol da meia-noite.

 

É essencialmente pela visão que me apercebo do mundo. Nenhum estímulo é para mim tão forte como o visual. Os sons, cheiros e sabores complementam o que vejo, e o toque é o motor de certas reacções físicas – mas o deslumbramento, a fascinação, esses chegam-me pelo nervo óptico. E esta viagem que fiz na Islândia foi um festim para os meus olhos. Nuvens criativas, com formas bizarras, em colunas, em camadas, umas quase transparentes, outras de um cinzento carregado, às vezes tão baixas que parecia que bastava esticar o braço para lhes tocar, envolvendo os picos das montanhas como chantilly num bolo, ou confundindo-se com a água do oceano. Mar chão a fingir-se de espelho, reflectindo casas e barcos de cores berrantes, tornadas baças pela neblina parada. Ou em serpentinas brilhantes ondulando sobre a areia da praia na maré baixa. Cascatas magníficas de águas revoltas, despenhando-se em quantidades inimagináveis, espumando de ferocidade, mesmerizantes. Gelo de um azul inacreditável, ou muito branco mas raiado de negro, como se alguém tivesse deixado escorrer tinta-da-china, ou transparente como cristal. Montanhas nuas, pintalgadas de cores tão inesperadas que mais parecem uma tela saída das mãos de Cézanne, ocres e laranjas misturados com branco, cinzento-azulado ou antracite, verde-musgo, amarelo-desbotado e negro-lava. Nuvens de vapor a brotarem da terra fervente com aspecto de paisagem marciana. Se há lugares onde a expressão “excesso de beleza” é bem aplicada, a Islândia é um deles.

233 Diário Islândia - Hverir

271 Diário Islândia - Godafoss

Viajar pela “terra de fogo e gelo” foi um carrocel – de trilhos e de emoções. Na maior parte do tempo éramos só nós, a estrada e a paisagem, ora contornando fiordes compridos, entrando pela terra adentro como garras de um qualquer dragão imaginário (ou não, quem sabe… no país das sagas, tudo é possível), ora subindo e descendo entre montanhas, percorrendo desfiladeiros que nos levavam, em menos de um ai, do verde dos pastos ao branco da neve, da atmosfera límpida à neblina fantasmagórica, do asfalto em espaço aberto ao caminho de cabras trepidante à beira de uma ravina. De vez em quando lá surgia um carro, uma caravana, um ciclista solitário, um trio de ovelhas, uma quinta rodeada de fardos de feno embrulhados em plástico verde-menta ou rosa-bombom. Depois chegávamos a uma cidade com ar de aldeia, casas baixas forradas a chapa perfilada, mais raramente de madeira, dispostas a espaços ao longo de ruas desenhadas a régua e esquadro, um pequeno supermercado, uma bomba de gasolina, uma igreja minimalista, uma quase ausência de pessoas. Nada que nos fizesse apetecer parar, por isso seguíamos rapidamente de volta à magnífica solidão das paisagens sem vivalma. Ou então encontrávamos uma localidade daquelas saídas directamente de um cartão-postal: à beira de um fiorde, com casinhas coloridas, um jardim, uma igreja original, arte urbana a animar as ruas – aqueles sítios onde apetece ficar.

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Houve um sem-fim de momentos inesquecíveis nesta viagem. Houve dias luminosos, em que o sol nos aqueceu o suficiente para ignorarmos os casacos durante algum tempo. Houve dias gélidos, em que o frio ou o vento nos impeliam a voltar para o abrigo morno do carro, apesar de nos apetecer ficar mais uns minutos (ou horas!) a passear. Houve um final de dia de viagem dentro de uma piscina de água quente, com vistas para o mar e para a ilha de Drangey. Houve dias em que o sol nunca se mostrou, e menos ainda nas supostas horas nocturnas: o céu mantinha-se cinzento, só percebíamos que estava na hora de recolher apenas pela ligeira diminuição da luminosidade e pelos números digitais no relógio do carro.

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E houve outros sóis da meia-noite, com o céu pintado de rosa e roxo, ou tingido com cores de fogo sobre o branco-fosco do glaciar Vatnajökull. Mas nenhum deles foi para mim tão emocionante como aquele meu primeiro sol da meia-noite.