Exemplo supremo de whataboutism - neologismo americano que já vi traduzido em português para entãosismo - foi a lamentável intervenção de José Pacheco Pereira domingo à noite, na CNNP - que ontem mencionei num postal reproduzindo vários trechos do seu fio argumentativo.
Confrontado perante a invasão russa da Ucrânia, Pacheco ilude o essencial da questão: estamos perante a maior agressão à livre autonomia de um Estado soberano por outro na Europa desde a II Guerra Mundial. Ao ponto de em três semanas ter provocado 2,8 milhões de refugiados agora em trânsito no continente, fugindo do seu país fustigado por bombardeamentos letais.
A União Europeia prevê que o número total de desalojados das suas habitações em solo ucraniano ascenda em breve aos sete milhões.
O antigo eurodeputado do PSD, com manifesta relutância em debater o tema, usa um dos seus habituais truques retóricos: introduz outros na discussão, relativizando a invasão russa numa amálgama de agressões registadas noutros momentos, noutros contextos e noutras latitudes.
Foge ao concreto para se abrigar no abstracto.
Sem condenar em termos inequívocos a acção criminosa de Moscovo nem o comportamento do ditador Putin, ocorrido quando a Rússia presidia ao Conselho de Segurança da ONU - o que confere gravidade acrescida à agressão em curso.
De caminho, aproveita para polvilhar esta logorreia com condimentos racialistas, descendo ao patamar de um Mamadou Ba, na enésima variação à «culpa do homem branco», causa de todos os males do mundo. Insinuando que, no essencial, agimos por impulsos racistas.
Eis, literalmente, uma forma de ver o mundo a preto e branco. Ignorando que o caucasiano louro, neste filme de terror, é o déspota do Kremlin - não o judeu Zelenski, Presidente da Ucrânia.
Noutros tempos, Pacheco já foi um pensador estimulante. Agora limita-se a papaguear os últimos chavões em voga da correcção política.
Ao invés, por exemplo, do escritor espanhol Javier Marías, que em recente entrevista ao Corriere della Sera - sem nunca vacilar nas críticas a Moscovo nem usar expressões ambíguas sobre Putin - contesta o «excessivo sentimento de culpa dos ocidentais», bem visível por estes dias.
Em vez de louvar a admirável mobilização europeia em socorro aos ucranianos em fuga, o antigo presidente do grupo parlamentar do PSD vem fustigar a Europa ocidental, de látego em punho. E nem hesita em lançar insinuações torpes, ao dizer que damos-lhes «muita roupa estragada», enquanto ignoramos iemenitas e sudaneses devido à pigmentação da pele. Ignorando que a gigantesca solidariedade europeia com sírios, iraquianos e afegãos em 2015 - levou só a Alemanha a receber mais de um milhão de refugiados, grande parte dos quais já integrados na sociedade.
Outros países, como Portugal, fizeram o que lhes cabia.
Basta recordar a vasta mobilização nacional de 1999 por Timor-Leste que muito contribuiu para o fim da ocupação indonésia e posterior independência do território no Pacífico Sul - enquanto ele, Pacheco, apregoava a realpolitik perante Jacarta.
Tanto quanto sei, os timorenses não se distinguem por ter pele clara nem olhos azuis.
O racialismo brandido por Pacheco não tem o menor cabimento aqui.
Há multidões de louros entre os agressores e os agredidos - o relativismo moral da sua tese entra em colisão frontal com os factos. Enquanto ilude outra evidência: nos movimentos migratórios que sacudiram a Europa desde 2015, nunca a Rússia foi porto de asilo. As populações em fuga - fluxos imensos de Leste para Ocidente - sabem que Putin, responsável pelas carnificinas de Grozni e Alepo - jamais lhes daria abrigo.
Aliás a Rússia é hoje um país de onde se foge, não um país que se procura.
Além disso, convém sublinhar outro facto: existem cerca de 45 mil ucranianos residentes em Portugal, formando a segunda maior comunidade estrangeira entre nós, apenas superada pelos brasileiros. Estão integrados, falam a nossa língua, muitos deles radicaram-se há duas décadas e já têm filhos aqui nascidos.
Alguém se espanta por isto nos mobilizar ainda mais a seu favor?
Outra recomendação de Pacheco: «Temos de moderar pela discussão racional, na comunicação social, muitos aspectos do nosso olhar.»
Curioso: ele pratica agora a tese, sabe-se lá porquê, mas esqueceu-se dela em diversas circunstâncias.
Em 2017, por exemplo, quando advogava com denodo a independência unilateral da Catalunha, entre acusações vibrantes ao Estado espanhol. Pródigo em adjectivos de magna ressonância, como democracia e liberdade, que não aplica na Ucrânia.
Chegou a clamar contra um hipotético cenário de Barcelona «sob ocupação militar» e até já imaginava «presos políticos» na libérrima Espanha que ousou comparar à feroz repressão chinesa em Hong Kong - noutro exemplo do despudorado whataboutism que tanto pratica.
Sem sombra de racionalidade.
«Os catalães mereciam mais dos portugueses» , escrevia ele em 23 de Setembro desse ano.
E os ucranianos, hoje oprimidos pela bota russa, não merecem mais dele?