Talvez eu seja pós-moderno
Foi assunto há uns dias as declarações do Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, quando alertou para o atentado à dignidade humana que decorreu durante um espectáculo tauromáquico com anões na Benedita.
Pelas suas declarações iniciais parecia estarmos de volta aos tempos dos circos romanos, onde humanos de vários tamanhos, cores da pele e origens, mais ou menos remotas, eram largados na arena para serem agredidos e onde tinham de lutar pela vida. Mas afinal não era nada disso. Os anões não estavam ali para ser toureados, mas sim para tourear e isso constitui uma enorme diferença. Uma diferença maior do que os próprios.
O facto de os anões estarem ali por vontade e risco próprio, no decurso do que será a sua profissão, para a qual treinam e pela qual são remunerados, não tem qualquer importância para o Ministro. Do alto da sua apenas formal pasta da Cultura, ele entende que os anões, coitadinhos, devem ser protegidos. Contratá-los para telefonistas será louvável, até deve haver algum benefício fiscal para o empregador. Se eles se queixarem com alguma maleita maior, arranja-se certamente maneira da Segurança Social lhes atribuir uma tença qualquer. Este segundo cenário é o mais agradável porque será sempre mais um eleitor dependente da guita, neste país que os socialistas querem transformar numa cascata de São João, onde tudo e todos tem um lugar e um movimento escolhido e definido pelo curador da coisa, que é o PS, o master of puppets. Porque isto da guita para eles tem tudo a ver com fantoches.
Mas podemos observar o evento noutras perspectivas. Ora, os anões eram espanhóis e por isso a notícia que motivou as declarações do Ministro podia ter tido outro cabeçalho. “Toureiros espanhóis são aplaudidos na Benedita”. Como a lide espanhola termina com a morte do bicho na arena, o alerta expectável poderia vir da parte do PAN. O que não seria, senhores? Espanhóis a tourear em terras lusas. Se fosse em Barrancos, naquelas terras da raia da nacionalidade, ainda vá, agora na Benedita, junto ao IC2, ao pé do Bigodes e do Coxo, esses altares da bifana tuga, e perto também do local de trabalho de umas moças que vêm cedo de Lisboa e ali ficam sentadas num sofá, isso é que nem pensar! Para os animalistas do PAN a festa só é rija quando o toureiro falece. Nem que seja anão.
Mas se uma parte, ou mesmo todos os anões espanhóis, que entretiveram o público beneditense, pertencessem à mui diversa comunidade LGBTQQICAPF2K+ (um obrigado à nossa colega Maria Dulce Fernandes pela actualização), o título da notícia já poderia ser qualquer coisa como, “Populares aplaudiam enquanto gays/etc..+ eram perseguidos por touros”. Era todo um mundo que se abria.
Perante a mesma realidade e os mesmos animais que estiveram dentro da arena, podemos encontrar inúmeras classificações e padrões para descrever o que ali aconteceu. A imaginação é o limite.
O que sobressai na minha falível análise, é que quem for dono do rótulo dos outros, acaba por ser o dono da sua probidade, ou da falta dela.
Vemos isso também nos relatos e nas imagens da fricção que ocorreu no decurso do evento Pride no Porto. A causa LGBTQQICAPF2K+ é um quintal da esquerda e apesar das infrutíferas tentativas da Iniciativa Liberal em se desligar da dicotomia esquerda-direita, o facto de se afirmar como adversária do socialismo é suficiente para que quem empunhasse a bandeira dos liberais não tenha sido bem recebido. Os donos do quintal é que sabem quem pode ou não exercer o direito de se manifestar a favor da causa, e os donos do quintal entendem que o facto destes sonsos e oportunistas se identificarem com uma visão liberal da economia, inquina a respectiva orientação sexual. Acabam assim por exibir, involuntária mas honestamente, a sua visão do mundo, a hierarquia em que colocam estas duas vertentes das inúmeras que podem definir um individuo.
Da mesma forma que um anão pode ser alguém que, mesmo contra a sua vontade, tem de ser protegido, coitadinho, pode imediatamente passar a ser perseguido se se atrever a picar uma vaca ou se lembrar aos recentes o que é que Marx, Estaline, Zedong, Fidel Castro, Allende, Che Guevara e Cunhal diziam sobre os homossexuais.
Além de tudo isto, também não me agradam os tratamentos diferenciados nem me agradam as quotas. Deve ser tão natural que uma mulher, um gay, um marreco ou um anão, chegue ao topo da responsabilidade à frente de um país, de uma empresa ou de uma qualquer organização, que isso não deveria merecer mais do que a indiferença dos demais. Fazer um grande chinfrim sempre que alguma dessas coisas ocorre é muito moderno, mas os modernos não imaginam como isso é demodé para os pós-modernos.