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Delito de Opinião

Deus feito homem da gruta à cruz

Pedro Correia, 29.03.24

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 O Cristo Amarelo, de Paul Gauguin (1889)

 

«Jesus chorou.»

João, 11-35 (o versículo mais curto da Bíblia)

 

A mensagem arrebatadora do Evangelho - e aquela que resume toda a essência do cristianismo - é a de um Deus que assume a plenitude da condição humana. Com os seus luminosos momentos de alegria, os seus lampejos de júbilo, as suas inevitáveis dores, a sua irrenunciável agonia. Como se a missão do criador ficasse incompleta sem esta experiência radical de abraçar por inteiro o ser débil, indeciso e angustiado que o barro divino moldou.

Até ao fim dos séculos, Jesus será inseparável da circunstância deste percurso terreno em que voluntariamente se irmana ao mais comum dos homens. Nasce pobre, numa gruta. Enaltece os humildes. Elege simples trabalhadores como discípulos. Rejeita sem vacilar o ilusório fulgor dos bens materiais. Perdoa os pecadores: «Eu não vim para condenar o mundo, mas para o salvar.» (João, 12-47). Enfrenta os fariseus com palavras tão actuais na manhã de hoje como há dois mil anos: «Vós, os fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e de maldade.» (Lucas, 11-39). E não hesita em dar a mais humana das interpretações à pétrea Lei de Moisés: «O sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.» (Marcos, 2-27).

Condenado sem apelo nem recurso, renegado pelos seus, vilipendiado pela multidão que aclama Barrabás, confrontado perante a prepotência de Caifás e a cobardia moral de Pilatos, crucificado entre dois salteadores como um delinquente pelo crime de blasfémia. Deus feito homem num mundo de homens que sonham ser deuses.

Pouco antes confessara aos discípulos em Getsemani que sentia «uma tristeza de morte». E ali mesmo implora numa prece que poderia brotar da voz interior de qualquer de nós: «Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice!» (Marcos, 14-36).

Um cálice que, no entanto, beberá até ao fim. Imerso na condição humana da gruta à cruz.

 

Texto reeditado

Páscoa

José Meireles Graça, 09.04.23

Na passada Sexta-feira Santa teve lugar um Benfica-Porto, que a melhor equipa, previsivelmente, venceu.

Miguel Alçada Baptista veio dizer que não achava bem que o jogo tivesse tido lugar naquele dia, por um certo número de razões que enunciou e subscrevo.

Isto originou uma discussão cordata mas não insonsa, com dois campos bem definidos sem que em nenhum se visse a acrimónia e aversão que com facilidade se infiltram nestas conversas, e alguns argumentos bem esgrimidos sem preocupações de exaustividade nem pretensões culturais.

O argumento mais utilizado do lado dos que acharam muito bem que o jogo se realizasse foi o da quantidade: há mais, dizem, amantes de futebol do que católicos, ao menos dos que vão à missa; e como, do lado dos defensores da marcação do jogo para outro dia se invocam razões culturais mais do que religiosas, chamam a atenção para uma implícita superioridade, que não aceitam, de celebrações religiosas sobre efemérides cívicas.

Também lá fui deixar os meus três tostões, nos seguintes termos, e deixo para o fim uma consideração que, revendo os comentários, me ocorre:

Há muitos Portugueses (incluindo grande, senão a maior parte, dos que foram ver o jogo) que acham confusamente que o desrespeito pelas tradições católicas implica degradação de um dos elementos que constitui o nosso cimento de pertença ao mundo não-muçulmano, não-hindu, não-budista, etc., isto é, cristão. E é absolutamente impossível que o catolicismo, que sempre foi a religião dos nossos maiores, não faça parte da nossa identidade de Portugueses, nem que seja pela atávica compreensão de que algo liga o que somos ao que foram os nossos tetravós. Não é preciso ser crente para prestar alguma forma de vassalagem aos que o são, se não for por mais nada ao menos porque é uma tradição que não comprime seriamente nem a liberdade nem direitos de cidadania. Deixei de ser católico aos 13 anos e sou, tecnicamente, um agnóstico. Tenho um imenso respeito em abstracto pelo Povo a que pertenço, que todavia em concreto, através dos gostos, inclinações, convicções políticas e maneiras, detesto. A convicção religiosa, porém, está um tanto acima de outras, por ter a ver com a relação com a maneira de viver a vida e a forma como se encara a morte. Se dependesse de mim, é claro que não haveria jogo nenhum e não me passaria pela cabeça que isso implicasse um descaso dos que, como eu, vivem bem sem fé. E é claro também que este assunto não é redutível a argumentos estritamente lógicos porque ou temos um respeito instintivo pelo apelo que a maioria de nós sente por um conjunto organizado de crenças transcendentais ou não temos. Eu tenho.

Cabe perguntar donde vem alguma militância na negação do estatuto privilegiado da Igreja, mesmo para lá de alguns aspectos que a Concordata acolhe, e a meu ver tem isso a ver com a obsessão com a igualdade; com a consciência um tanto difusa, do compressor que a Igreja tradicionalmente foi da diferença – qualquer diferença espiritual e qualquer desvio nos costumes; e com o facto de, em numerosos aspectos, as posições oficiais da Igreja colidirem com uma parte das opções da contemporaneidade política, nossa e de outros no Ocidente.

É não compreender que a igualdade absoluta das instituições religiosas (a Constituição, quando a consagra, quer apenas preservar a liberdade de culto) colide com a nossa tradição e nos desarma perante religiões ou seitas que ocuparão os lugares deixados vagos; e que as Igrejas, todas e não apenas a Católica, têm posições sobre questões sociais, com a diferença de em muitas tais posições serem bem mais radicais, militantes e agressivas, além de alienígenas.

Tende portanto juízo. Um jogo de futebol, na ordem imanente das coisas, tem uma importância menor. E continuará a ter, por muitos milhões que julguem que o mundo gira à volta de uma bola ou, pior, em torno dos respectivos umbigos imaginariamente modernos e desempoeirados.

Poema a Cristo crucificado

Pedro Correia, 07.04.23

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Tú me ofreces la vida con tu muerte
y esa vida sin Ti yo no la quiero;
porque lo que yo espero, y desespero,
es otra vida en la que pueda verte.

Tú crees en mí. Yo a Ti, para creerte,
tendría que morirme lo primero;
morir en Ti, porque si en Ti no muero
no podría encontrarme sin perderte.

Que de tanto temer que te he perdido,
al cabo, ya no sé qué estoy temiendo:
porque de Ti y de mí me siento huido.

Mas con tanto dolor, que estoy sintiendo,
por ese amor con el que me has herido,
que vivo en Ti cuando me estoy muriendo.

 

José  Bergamín

 

Quadro: O Cristo de São João da Cruz, de Salvador Dalí (1951)

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 17.04.22

O Dia Mundial da Hemofilia celebra-se a 17 de Abril

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"Esta data é também conhecida como Dia Mundial do Hemofílico.

É desenvolvida desde 1989 pela Federação Mundial da Hemofilia, organização sem fins lucrativos que actua em 113 países e foi fundada por Frank Schnabel em 1963.

Esta escolha para celebrar o Dia Mundial da Hemofilia justifica-se por ser o aniversário de Frank Schnabel. Pretende consciencializar as populações para a hemofilia e outras desordens sanguíneas.

Neste dia é tradição acender vários monumentos do mundo com luzes vermelhas, chamando a atenção para as pessoas com desordens sanguíneas.

A hemofilia é uma anomalia do sangue caracterizada por demora ou falta de coagulação. A menor ferida pode provocar uma grave hemorragia.

É hereditária, transmitida pelas mulheres, e que ataca sobretudo os homens."

A Rainha Vitória de Inglaterra era portadora do gene da hemofilia. Teve sete filhos que casaram com familiares de outras casas reinantes, disseminando o gene pela descendência de praticamente todas as famílias reais da época.

 

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O Calendário Litúrgico determinou que hoje pudéssemos também celebrar a Páscoa, ou Domingo da Ressurreição

Celebramos a Ressurreição de Jesus Cristo ao terceiro dia após ter subido ao Calvário e pelos seus algozes ter sido crucificado, morto e msis tarde sepultado.

"Quando Jesus ressuscitou, na madrugada do primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, de quem havia expulsado sete demónios. Ela foi e contou aos que com ele tinham estado; eles lamentavam e choravam. Quando ouviram que Jesus estava vivo e fora visto por ela, não creram. Depois Jesus apareceu noutra forma a dois deles, estando eles a caminho do campo. Voltaram e relataram isso aos outros; mas também eles não creram. Mais tarde Jesus apareceu aos Onze enquanto eles comiam; censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração, porque não acreditaram nos que o tinham visto depois de ressuscitado.
Marcos 16:9-14

E disse-lhes: "Está escrito que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia, e que em seu nome seria pregado o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois testemunhas destas coisas.
Lucas 24:46-48"

 

Glória a Vós, Senhor

Dai-nos a Paz

 

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Finalmente e a título pessoal, a minha família celebra hoje, 17 de Abril, o aniversário do Renato, um homem excepcional, bom amigo, bom pai e avô, bom sportinguista e que tem a paciência de me aturar as idiossincrasias há quase 45 anos. Celebramos o sexagésimo sétimo aniversário de uma vida boa.

Parabéns 

Igual a todos nós

Pedro Correia, 15.04.22

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Gólgota, de Edvard Munch (1900)

 

É a frase mais dramática de toda a Bíblia. A frase que Cristo profere na cruz, quando todas as forças já lhe falecem no corpo em chaga, e brada aos céus com o último alento que lhe resta:

Eloí, Eloí, Lama sabachtami?

Este episódio da Paixão, que vem mencionado nos Evangelhos de Mateus (27,46) e Marcos (15,34), sempre me impressionou. Porque nos revela, mais que nenhum outro, a face humana de Jesus - as dúvidas, as angústias, a profunda inquietação existencial de um Jesus terreno, despido da sua condição divina, igual a todos nós. Na dor, no sofrimento, no desamparo.

Este brado simboliza o desespero de múltiplas gerações de homens solitários clamando em momentos de aflição por um Pai que permanece teimosamente desconhecido, indiferente ao destino trágico dos seres dotados de consciência que lançou como grãos de areia na imensidão cósmica. É um grito lancinante que ecoa desde os confins dos tempos e se ramifica a todos os espaços onde chega a voz humana:

Meu Deus, Meu Deus, Porque Me abandonaste?

 

Texto reeditado

O meu animal e eu

Cristina Torrão, 03.04.21

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A forsythia, ou forsítia, é um símbolo da Páscoa, na Alemanha. Floresce num amarelo vivo, fazendo lembrar a luz do sol e dando cor a uma época em que a Natureza se encontra ainda em hibernação. É um arbusto abundante, por aqui, pois aguenta frio, neve e gelo, mas também calor e alguma falta de chuva, no Verão.

Temos algumas forsítias no nosso jardim. Esta, ainda pequena, tem um significado especial para nós: as cinzas da nossa cadela Lucy foram espalhadas à sua volta, debaixo das pedrinhas. E agora, com a chegada de mais uma Páscoa confinada, ao deparar com a luminosidade das florinhas, lembrei-me de um texto que escrevi em alemão, sobre a Lucy, cerca de dois meses antes da sua morte. Foi escrito com a intenção de participar num passatempo organizado pelo jornal local de Stade, no Verão de 2019, intitulado Mein Tier und ich (“O meu animal e eu”). Consistia num pequeno texto a ser publicado, assim como a imagem do respectivo animal.

Decidi deitar mãos à obra, pois apanhou-me numa altura difícil, em que prescindíamos voluntariamente de coisas que gostaríamos de fazer, mal sabendo que, num futuro próximo, seríamos obrigados a prescindir de muito mais. Infelizmente, acabei por me distrair com o prazo e não cheguei sequer a enviar o texto.

Fui agora procurá-lo, já nem me lembrava bem do que tinha escrito. E resolvi traduzir para português as palavras gravadas a 11 de Agosto de 2019, quando, apesar das restrições que nos impúnhamos, ainda íamos ao restaurante, visitávamos parentes e amigos e actuávamos com o nosso coro. A Lucy morreria cerca de dois meses mais tarde.

«A nossa Lucy tem 15 anos e 9 meses, está surda e quase cega. Mas isto nem é o pior. O coração dela está muito enfraquecido, o que lhe provoca desmaios. Estes podem acontecer a qualquer momento, também a meio da noite e, por vezes, fazem-na ganir alto, acordando-nos em sobressalto.

A Lucy tem, porém, ainda qualidade de vida. Recuperada dos desmaios, readquire a sua alegria habitual. Come muito bem, não prescinde dos seus pequenos passeios e continua interessada em tudo o que se passa dentro de casa.

O Horst eu estamos muito presos, nem sequer podemos sair nas férias. A Lucy já não aguentaria uma viagem e, deixá-la aos cuidados de alguém, está fora de questão. Ela veio para nossa casa com apenas oito semanas de vida, não conheceu outra família. Além disso, a sua situação exige cuidados especiais. Os comprimidos têm de ser dados a horas certas, os seus desmaios não são fáceis de aguentar e, como toma um diurético, a fim de não acumular líquido nos pulmões, a bexiga funciona com frequência. Tem de se conhecer muito bem o ritmo dela e andar muito atento.

Antigamente, a Lucy era uma cadelinha muito activa e acompanhava-nos nas férias. Conhece meia Europa, viajou muitas vezes de carro entre a Alemanha e Portugal. Mas também nos acompanhou noutros passeios: caminhadas no Parque Nacional do Harz, no vale do Rio Mosela, pelos montes luxemburgueses, além de várias vezes ter andado no ferry-boat do Lago Constança entre a Alemanha, a Suíça e a Áustria.

Agora, que nada disto é possível, não a deixamos sozinha e tentamos tornar-lhe tão agradável quanto possível o tempo que lhe resta. Na sua fragilidade, ela confia totalmente em nós. E uma confiança destas não deve ser nunca traída».

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A Páscoa também é confiança. Na vitória da vida sobre a morte.

Boa Páscoa!

No fim não existe fim

Pedro Correia, 02.04.21

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Quadro de William Congdon (1912-1998)

 

«Deus é existirmos e isso não ser tudo.»

Fernando Pessoa

 

Jesus teve apóstolos, todos homens. Mas, destes, nem todos o seguiram da mesma forma. Um traiu-o, outro negou-o, um terceiro duvidou que tivesse regressado das trevas da morte. Já as mulheres que sempre acompanharam o nazareno - tornando-se assim também suas discípulas - não vacilaram na fé. Talvez por isso, são elas as primeiras a observar o sepulcro vazio. Os evangelistas dão-lhes nomes: Maria Magdalena - assim chamada por ser de Magdala -, Maria, mãe de Tiago, Joana e Salomé. É Magdalena - e nenhum dos homens - a primeira pessoa a vê-lo ressuscitado. Ao contrário do que viria a fazer Tomé, ela nem por um instante duvida. À semelhança do que sucedera com Marta, ao recebê-lo em Betânia após velar o corpo do falecido irmão Lázaro: «Creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo», relata João. 

Será Maria de Magdala a anunciar a Boa Nova naquela manhã, diferente de qualquer outra. O Mestre - como Magdalena e Marta lhe chamavam - cumprira a promessa feita pouco antes de voluntariamente se submeter às injúrias, às flagelações e à morte a que os poderes terrenos o haveriam de condenar: «Não vos deixarei órfãos.» Abrindo assim uma luz de esperança que não tornaria a apagar-se na história humana.

Nada voltou a ser igual. E disso dá testemunho São Paulo na sua Carta aos Gálatas: «Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo.» (4, 28) Assim se fundava o mais imperecível de todos os direitos: o direito universal à dignidade, baseado na suprema instância moral. Nenhum de nós é órfão.

Tudo começou, de algum modo, naquele túmulo vazio. Como escreveu Robert Lowell, «no fim não existe fim.»

A clareza habitual

Paulo Sousa, 24.03.21

Com a Páscoa à porta, o governo antecipou-se e preparou um conjunto de regras claras para que tudo seja mais fácil de controlar.

 

A circulação entre concelhos continuará interdita. “A Páscoa não é um momento de deslocações e de encontro, mas, pelo contrário, mais um momento de recolhimento”, clarificou António Costa.

- Então é possível ir ao estrangeiro?

- Sim, ao estrangeiro é possível ir! Claro, é a Páscoa!

- Mas como é possível ir ao estrangeiro sem sair do concelho?

- Talvez isso seja só para quem viva nos concelhos junto à fronteira. Pode-se sair, mas só em deslocação ao estrangeiro. Talvez seja isso que o PM queria dizer.

- Mas a fronteira com Espanha estará encerrada até dia 5 de Abril.

- Sim, mas Espanha é a excepção à regra que permite viajar até ao estrangeiro.

- Ah ok! Mas então como é que podemos ir ao estrangeiro se não podemos ir a Espanha?

- Eh pá! A proibição de deslocações para fora do território continental foi levantada, seja por via rodoviária, ferroviária, aérea, fluvial ou marítima.

- Ah, ok! Então se é permitido deslocar-me por via fluvial posso ir até onde?

- A Espanha já sabemos que não é permitido ir.

- E então de avião posso ir ao estrangeiro, desde que não seja a Espanha?

- Claro! Até está bem visto.

- Mas se eu não posso circular entre concelhos como é que posso apanhar um avião?

- Então para ir do Palácio de São Bento até ao aeroporto, é lá preciso por acaso sair do concelho, ou quê? Tu com as tuas perguntas gostas é de complicar, pá!

Catarse

Cristina Torrão, 11.04.20

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Foto Vincenzo Pinto/afp

Esta foi, sem dúvida, a Via Sacra mais triste a que assisti, com a Praça de São Pedro quase vazia, apenas se encontrava lá um pequeno grupo de pessoas, à volta da cruz, que era carregada à vez, como de costume; o papa Francisco assistido por um único sacerdote.

E, no entanto, apesar de toda a angústia e das lágrimas a rebentar, adorei. Foi a Via Sacra mais triste, mas também a mais bonita. Estarmos a passar por este momento tão difícil, de medo e de revolta, ajudou-me a identificar-me melhor com o sofrimento de Cristo. Foi gratificante, uma espécie de catarse.

Nos últimos tempos, nos destaques dos blogues-Sapo, deparo com posts a dizer que não temos direito a estarmos chateados, revoltados, tristes e a termos medo. E eu pergunto-me: mas é preciso escrever coisas dessas? Porque têm tantas pessoas vergonha desses seus sentimentos? Porque pensa tanta gente que é egoísta estar triste e sem ânimo? A nossa vida modificou-se da noite para o dia. Perdemos a nossa liberdade, não podemos visitar pessoas de quem gostamos, vamos fazer compras angustiados, a pensar na melhor maneira de evitarmos contágio, deixámos de ir a restaurantes, a cafés… Não são estas razões suficientes para andarmos tristes e revoltados?

Sim, há sempre quem sofra mais. Sim, há sempre quem precise da nossa ajuda. Mas ninguém é de ferro. Todos nós precisamos de recarregar as baterias, não podemos ser fortes, destemidos e estar disponível para os outros o tempo todo.

Aristóteles falava da catarse como uma "purificação" sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática; na psicanálise, ela é usada para designar a libertação de emoção ou sentimento que sofreu repressão. Nós precisamos desses escapes, precisamos de momentos em que admitimos a nós próprios tudo aquilo que não desejamos admitir.

Assistir à Via Sacra de ontem foi uma catarse, a tal purificação, o tal escape, que nos ajuda a fazermos as pazes com o mundo, por mais deprimente que ele se nos apresente.

Boa Páscoa!

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Imagem "Vatican News"

 

No fim não existe fim

Pedro Correia, 21.04.19

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Quadro de William Congdon (1912-1998)

 

«Deus é existirmos e isso não ser tudo.»

Fernando Pessoa

 

Jesus teve apóstolos, todos homens. Mas, destes, nem todos o seguiram da mesma forma. Um traiu-o, outro negou-o, um terceiro duvidou que tivesse regressado das trevas da morte. Já as mulheres que sempre acompanharam o nazareno - tornando-se assim também suas discípulas - não vacilaram na fé. Talvez por isso, são elas as primeiras a observar o sepulcro vazio. Os evangelistas dão-lhes nomes: Maria Magdalena - assim chamada por ser de Magdala -, Maria, mãe de Tiago, Joana e Salomé. É Magdalena - e nenhum dos homens - a primeira pessoa a vê-lo ressuscitado. Ao contrário do que viria a fazer Tomé, ela nem por um instante duvida. À semelhança do que sucedera com Marta, ao recebê-lo em Betânia após velar o corpo do falecido irmão Lázaro: «Creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo», relata João. 

Será Maria de Magdala a anunciar a Boa Nova naquela manhã, diferente de qualquer outra. O Mestre - como Magdalena e Marta lhe chamavam - cumprira a promessa feita pouco antes de voluntariamente se submeter às injúrias, às flagelações e à morte a que os poderes terrenos o haveriam de condenar: «Não vos deixarei órfãos.» Abrindo assim uma luz de esperança que não tornaria a apagar-se na história humana.

Nada voltou a ser igual. E disso dá testemunho São Paulo na sua Carta aos Gálatas: «Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo.» (4, 28) Assim se fundava o mais imperecível de todos os direitos: o direito universal à dignidade, baseado na suprema instância moral. Nenhum de nós é órfão.

Tudo começou, de algum modo, naquele túmulo vazio. Como escreveu Robert Lowell, «no fim não existe fim.»

As mulheres na vida de Jesus

Alexandre Guerra, 20.04.19

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Fra Angelico, "Jesus Aparece a Madalena" (1440-41), Convento de São Marco, Florença

 

As mulheres na vida de Jesus é um dos temas mais interessantes que se encontram nos Evangelhos, mas é também um dos assuntos menos debatidos e analisados à luz daquilo que são os Direitos Humanos, nomeadamente ao nível da igualdade entre géneros. Como ainda esta semana referia o padre e professor universitário Anselmo Borges em entrevista à revista Sábado, Jesus Cristo terá sido o primeiro feminista da História, no entanto, poucas são as vezes em que esse mérito lhe é atribuído. E de facto, à medida que se vai ficando a conhecer melhor alguns dos episódios da vida de Jesus, sobretudo a partir do momento em que inicia o seu ministério e se faz acompanhar dos seus discípulos fiéis, começa-se a vislumbrar a forma disruptiva de como o nazareno quebrou com convenções sociais e práticas instituídas nas sociedades judaica e romana, que à época estendia o seu império até à Judeia e Galileia.

Muito além da sua intervenção política, Jesus foi inovador naquilo que, séculos mais tarde, se iria chamar de Direitos Humanos. A sua mensagem assentava num conceito de igualdade entre povos, entre ricos e pobres, entre enfermos e sãos… entre homens e mulheres. De certa maneira, a Igreja fundada por Pedro vai reflectir grande parte dessa mensagem humanista, com excepção da visão de Jesus sobre o papel da mulher na sociedade. Aqui, a Igreja ao longo dos séculos nunca foi fiel à mensagem do filho de Deus, optando por remeter a mulher para um papel secundário.

E porque terá isso acontecido? A resposta não é óbvia e pode conduzir a debates intermináveis, mas não pode deixar de causar estranheza, se tivermos em consideração que houve uma vontade expressa na Bíblia de enfatizar esse factor revolucionário relativo ao papel da mulher na sociedade. Ou seja, em momento algum, os autores da Sagrada Escritura tentaram escamotear essa realidade nem subestimar a importância histórico-religiosa das mulheres que acompanharam Jesus em diferentes momentos da sua vida.

Durante o seu ministério por terras da Galileia e da Judeia, Jesus fez-se acompanhar por mulheres em condições de igualdade com os homens. E isto era uma realidade nunca vista na sociedade judaica. Tal como Pedro, Lázaro ou João, as irmãs Maria e Marta de Betânia, ou Maria Madalena, eram discípulas de Jesus e viam Nele um “mestre”, um “professor”. Jesus depositava nestas mulheres total confiança e, em muitos casos, eram elas que assumiam os encargos financeiros do quotidiano dos homens, evidenciando-se a sua emancipação sem qualquer constrangimento ou preconceito.

Analise-se, por exemplo, um dos acontecimentos mais marcantes da História da Humanidade e que agora se celebra entre os cristãos: a Paixão. No seu esforço sobre-humano e de auto-sacrifício em prol de um bem maior, são sobretudo mulheres que O ajudam na sua caminhada em sofrimento. Maria Madelena é uma delas, mas também Verónica, e as chamadas "mulheres de Jerusalém", que choram pelo filho de Deus e acompanham-No com toda a sua compaixão ao Calvário. Maria, a mãe de Jesus, acolhe-O na Descida da Cruz, num gesto de “piedade”.

Dizem os Evangelhos que foram essas mesmas mulheres, muito provavelmente Maria Madalena, as primeiras a dirigirem-se ao túmulo de Jesus Cristo e a constatarem que estava vazio. Os textos sagrados não são suficientemente claros quanto aos contornos específicos desse momento, se foi apenas uma “Maria” ou mais “Marias”, mas uma coisa é certa: Pedro e João souberam da Ressurreição pela voz de uma dessas mulheres, a quem Jesus, coberto por vestes brancas, lhes terá dito para transmitir tão importante mensagem aos apóstolos. Mensagem, essa, que foi recebida com bastante relutância por parte de Pedro e João, porque não concebiam que um acontecimento desta magnitude lhes fosse transmitido por uma mulher. Rapidamente se dirigem ao túmulo para serem confrontados com uma realidade que não conseguiram compreender.

Mas o que é facto é que as Escrituras nos deixaram esse registo, atribuindo às mulheres em geral, e em particular a Maria Madalena, a responsabilidade do anúncio de uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição. Quando Jesus ressuscitado surge em frente a Maria Madalena, naquele preciso momento, há um reconhecimento implícito de que ela é a discípula que melhor compreendeu a Sua mensagem e o acto que tinha acabado de acontecer, tornando-se assim, de facto, a “primeira apóstola”, uma ideia que, como se sabe, nunca foi aceite pelos cânones tradicionais da Igreja.

Votos de uma Santa Páscoa

jpt, 19.04.19

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Os meus votos de uma Santa Páscoa, para todos os leitores do DO e também para os apenas por aqui passantes. Para todos, em particular para os ateus (como eu) e ainda mais para os anti-cristãos disfarçados de anti-clericais.

A Páscoa é a celebração da esperança na ressurreição (para os crentes metafísicos). E da esperança na segunda hipótese em vida (para os utópicos materialistas, e lá vou eu nisso).

Sabeis o que é a Páscoa? É um tipo na "sexta-feira santa" sair à rua apenas em camisa, e de manga curta, pela primeira vez em oito meses. E quase chorar de comoção por apenas isso. Porque afinal ... há páscoas.

 

Igual a todos nós

Pedro Correia, 30.03.18

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 Gólgota, de Edvard Munch (1900)

 

É a frase mais dramática de toda a Bíblia. A frase que Cristo profere na cruz, quando todas as forças já lhe falecem no corpo em chaga, e brada aos céus com o último alento que lhe resta:

Eloí, Eloí, Lama sabachtami?

Este episódio da Paixão, que vem mencionado nos Evangelhos de Mateus (27,46) e Marcos (15,34), sempre me impressionou. Porque nos revela, mais que nenhum outro, a face humana de Jesus - as dúvidas, as angústias, a profunda inquietação existencial de um Jesus terreno, despido da sua condição divina, igual a todos nós. Na dor, no sofrimento, no desamparo.

Este brado simboliza o desespero de múltiplas gerações de homens solitários clamando em momentos de aflição por um Pai que permanece teimosamente desconhecido, indiferente ao destino trágico dos seres dotados de consciência que lançou como grãos de areia na imensidão cósmica. É um grito lancinante que ecoa desde os confins dos tempos e se ramifica a todos os espaços onde chega a voz humana:

Meu Deus, Meu Deus, Porque Me abandonaste?

Uma semana (pouco) santa

Alexandre Guerra, 26.03.18

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Uma pintura de Giovanni Cariani (1490-1547) que retrata Verónica a ir de encontro a Jesus Cristo, quando este percorria a Via Dolorosa em direcção ao Calvário, para, com o seu véu, lhe limpar o sangue e suor do rosto, que ficou estampado no tecido. E assim terá ficado eternamente, tendo o "Véu de Verónica" tornado-se numa das mais famosas "relíquias" do Cristianismo.

 

Além do seu significado religioso, a Semana Santa representa um dos acontecimentos políticos e sociais mais importantes da Humanidade: a chegada em glória de Jesus Cristo, o "rei" dos judeus revoltosos contra o domínio de Roma, a Jerusalém. O motivo era a celebração da Páscoa judaica, mas os dias que se seguiram foram conturbados, de autênticas manobras políticas, conspirações e traições. No fim, a condenação e crucificação de Jesus Cristo, não sem antes sofrer na caminhada pela Via Dolorosa com a cruz às costas, perante uma sociedade instrumentalizada e instigada. O percurso final de Jesus Cristo para o Calvário, na altura situado numa colina fora da cidade velha de Jerusalém, começa no local onde Pilatos terá "lavado as mãos", desresponsabilizando-se do destino do "rei" dos judeus. A partir daí, a Via Dolorosa vai atravessando parte da cidade velha de Jerusalém, uma experiência única e de um interesse admirável. Percorri-a algumas vezes, primeiro no Verão de 2001 e depois em 2002, anos marcados pela violência da intifada de al Aqsa (de Setembro de 2000 a 2005), que afastaram por completo os turistas da Cidade Santa. Se é verdade que esse facto provocou um enorme rombo no comércio local, por outro lado, proporcionou uma experiência rara, ao permitir a um estrangeiro andar pelas muralhas da cidade de Jerusalém apenas em convívio exclusivo com os (poucos) locais. É muito emocionante percorrer as várias estações que compõem a Via Dolorosa e que assinalam diferentes momentos bíblicos dessa caminhada de Jesus Cristo, realizada nesta altura do ano há cerca de 2000 anos. É um exercício interior e introspectivo, que nos confronta com o mal e sofrimento humano, mas também com a solidariedade e o amor do próximo. Para lá de qualquer leitura religiosa, pensando um pouco naqueles acontecimentos e na sociedade da altura, percebemos que são poucas as pessoas que vão em auxílio de Jesus Cristo. São sobretudo mulheres que O ajudam na sua caminhada em sofrimento. Maria, Verónica e depois as "mulheres de Jerusalém" choram pelo filho de Deus e acompanham-No com toda a sua compaixão ao Calvário. 

 

Dizem os Evangelhos que foram essas mesmas mulheres, as primeiras a dirigirem-se ao túmulo de Jesus Cristo e a constatarem que estava vazio. Os textos sagrados não são suficientemente claros quanto aos contornos específicos desse momento, se foi apenas uma “Maria”, provavelmente Maria Madalena, ou se outras “Marias”, mas uma coisa é certa: Pedro e João souberam da Ressurreição pela voz de uma dessas mulheres, a quem Jesus, coberto por vestes brancas, lhes terá dito para transmitir tão importante mensagem aos apóstolos. Mensagem essa que foi recebida com bastante relutância por parte de Pedro e João, porque não concebiam que um acontecimento desta magnitude lhes fosse transmitido por mulheres. Rapidamente se dirigem ao túmulo para serem confrontados com uma realidade que não conseguiram compreender.

 

No entanto, ao nível do poder político, parece ter havido uma compreensão imediata do potencial problema que representava o misterioso desaparecimento do corpo de Jesus Cristo. As autoridades judaicas quando souberam do fenómeno, através dos guardas do túmulo, mantiveram segredo em relação à versão original que lhes contaram e não perderam tempo a forjar uma teoria da conspiração para justificar o acontecimento, fazendo passar a mensagem de que os discípulos de Cristo tinham roubado o seu corpo durante a noite, no que poderia ser interpretado com um acto de fanatismo. Ironicamente, para os historiadores, esta posição da parte dos anciãos judeus, acabaria por ser a assunção de que o túmulo estava, efectivamente, vazio, dando força a uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição. 

Deus feito homem da gruta à cruz

Pedro Correia, 14.04.17

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 O Cristo Amarelo, de Paul Gauguin (1889)

 

«Jesus chorou.»

João, 11-35 (o versículo mais curto da Bíblia)

 

A mensagem arrebatadora do Evangelho - e aquela que resume toda a essência do cristianismo - é a de um Deus que assume a plenitude da condição humana. Com os seus luminosos momentos de alegria, os seus lampejos de júbilo, as suas inevitáveis dores, a sua irrenunciável agonia. Como se a missão do criador ficasse incompleta sem esta experiência radical de abraçar por inteiro o ser débil, indeciso e angustiado que o barro divino moldou.

Até ao fim dos séculos, Jesus será inseparável da circunstância deste percurso terreno em que voluntariamente se irmana ao mais comum dos homens. Nasce pobre, numa gruta. Enaltece os humildes. Elege simples trabalhadores como discípulos. Rejeita sem vacilar o ilusório fulgor dos bens materiais. Perdoa os pecadores: «Eu não vim para condenar o mundo, mas para o salvar.» (João, 12-47). Enfrenta os fariseus com palavras tão actuais na manhã de hoje como há dois mil anos: «Vós, os fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e de maldade.» (Lucas, 11-39). E não hesita em dar a mais humana das interpretações à pétrea Lei de Moisés: «O sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.» (Marcos, 2-27).

Condenado sem apelo nem recurso, renegado pelos seus, vilipendiado pela multidão que aclama Barrabás, confrontado perante a prepotência de Caifás e a cobardia moral de Pilatos, crucificado entre dois salteadores como um delinquente pelo crime de blasfémia. Deus feito homem num mundo de homens que sonham ser deuses.

Pouco antes confessara aos discípulos em Getsemani que sentia «uma tristeza de morte». E ali mesmo implora numa prece que poderia brotar da voz interior de qualquer de nós: «Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice!» (Marcos, 14-36).

Um cálice que, no entanto, beberá até ao fim. Imerso na condição humana da gruta à cruz.

 

Texto reeditado

 

À Humanidade

Bandeira, 26.03.16

Porque John Donne está a morrer, ele escreve algumas Lamentações; nelas se queixa inclusive de que as dores o impedem de gozar na sua plenitude a experiência da morte. Escreve que "nenhum homem é uma ilha" e outras coisas lindas, quase sempre porém melancólicas e tristes.
Séculos depois, Hemingway usa em prefácio um trecho da 17a Lamentação, algo como: "Não perguntes por quem dobram os sinos; eles dobram por ti". Com isto queria Donne dizer que partilhava da Humanidade, e que morrendo um qualquer homem morria Donne um pouco também (já Terêncio, por outras palavras, sugerira algo assim).
Em Hollywood fez-se um filme e o trecho prosaico da Lamentação de Donne ficou na memória que hoje sói chamar-se colectiva, muitas vezes tomado por verso, porque Donne era, antes de prosador morrendo, um poeta; e os poetas, não sendo ilhas, serão talvez penínsulas.
À Humanidade, uma Páscoa feliz.

Deus feito homem da gruta à cruz

Pedro Correia, 25.03.16

Gauguin_Il_Cristo_giallo[1].jpg

 O Cristo Amarelo, de Paul Gauguin (1889)

 

«Jesus chorou.»

João, 11-35 (o versículo mais curto da Bíblia)

 

A mensagem arrebatadora do Evangelho - e aquela que resume toda a essência do cristianismo - é a de um Deus que assume a plenitude da condição humana. Com os seus luminosos momentos de alegria, os seus lampejos de júbilo, as suas inevitáveis dores, a sua irrenunciável agonia. Como se a missão do criador ficasse incompleta sem esta experiência radical de abraçar por inteiro o ser débil, indeciso e angustiado que o barro divino moldou.

Até ao fim dos séculos, Jesus será inseparável da circunstância deste percurso terreno em que voluntariamente se irmana ao mais comum dos homens. Nasce pobre, numa gruta. Enaltece os humildes. Elege simples trabalhadores como discípulos. Rejeita sem vacilar o ilusório fulgor dos bens materiais. Perdoa os pecadores: «Eu não vim para condenar o mundo, mas para o salvar.» (João, 12-47). Enfrenta os fariseus com palavras tão actuais na manhã de hoje como há dois mil anos: «Vós, os fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e de maldade.» (Lucas, 11-39). E não hesita em dar a mais humana das interpretações à pétrea Lei de Moisés: «O sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.» (Marcos, 2-27).

Condenado sem apelo nem recurso, renegado pelos seus, vilipendiado pela multidão que aclama Barrabás, confrontado perante a prepotência de Caifás e a cobardia moral de Pilatos, crucificado entre dois salteadores como um delinquente pelo crime de blasfémia. Deus feito homem num mundo de homens que sonham ser deuses.

Pouco antes confessara aos discípulos em Getsemani que sentia «uma tristeza de morte». E ali mesmo implora numa prece que poderia brotar da voz interior de qualquer de nós: «Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice!» (Marcos, 14-36).

Um cálice que, no entanto, beberá até ao fim. Imerso na condição humana da gruta à cruz.

 

Texto reeditado