Poucas personalidades foram mais contraditórias, no último meio século em Portugal, do que o comandante das operações militares do 25 de Abril de 1974. Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho, hoje falecido, tinha 37 anos nesse dia que derrubou o Estado Novo e viria a pôr fim à guerra que Portugal travava em três frentes africanas.
Com duas comissões cumpridas em Angola e uma terceira na Guiné, Otelo Saraiva de Carvalho não era militar de vocação. Sonhara ser actor e chegou a pisar os palcos em peças amadoras na sua cidade natal, Lourenço Marques, como então se denominava a capital de Moçambique, ainda sob domínio português.
Estes dotes histriónicos acompanharam-no sempre, dando-lhe um carisma que incendiou plateias nos anos de brasa da revolução, culminados na eleição presidencial de 1976, em que foi o segundo candidato mais votado. Com 16,5%, correspondendo a quase 800 mil votos entrados nas urnas, acabou derrotado por Ramalho Eanes. Que também o venceria nas eleições seguintes, em 1980. Neste ano, Otelo só recolheu 1,5% dos boletins. O seu tempo passara. O país que ele ajudara a abrir ao mundo, reconquistando a liberdade, não o acompanhou nas suas teses de «democracia popular» contra a democracia representativa.
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À frente do Copcon, Otelo deu início à «revolução a todo o vapor», para usar um slogan muito popular na época. Enviava militares a apoiar ocupação de casas e terras, em nome do «poder popular». Convenceu-se de que podia ser o «Fidel Castro da Europa», como ele próprio confessou após uma visita a Havana, em que foi recebido com passadeira vermelha pelo ditador cubano.
Outras frases lhe ficaram associadas naquele Verão quente de 1975, em que este país de brandos costumes esteve a um passo da guerra civil. Disse de si próprio que estava pronto a «tomar o cavalo do poder» e quando os confrontos começaram nas ruas – de Rio Maior até ao Alto Minho as forças anticomunistas destruíam sedes dos partidos da esquerda radical – admitiu a hipótese de enviar «contra-revolucionários para o Campo Pequeno».
Quase meio século depois, neste país hoje membro da União Europeia, é difícil imaginar esses tempos para quem não os viveu. Havia um Governo provisório que não governava, uma economia paralisada por greves e «saneamentos de patrões», mandados de captura em branco que conduziam centenas de pessoas ao estabelecimento prisional de Caxias ao abrigo da chamada «legitimidade revolucionária». Portugal era então capa nas grandes revistas internacionais por se ter tornado num «manicómio em autogestão». (...)
A célebre frase de Ortega y Gasset sobre o homem ser produto das circunstâncias aplica-se como uma luva a Saraiva de Carvalho, que durante a ditadura chegou a ser instrutor da Legião Portuguesa e não possuía qualquer formação política. Nos meses que antecederam a preparação do golpe militar, entre Setembro de 1973 e Março de 1974, ele viria a emergir como o líder das operações. Bem-sucedidas, ao ponto de não terem causado derramamento de sangue entre militares das facções em confronto – velhos conhecidos das missões de guerra em Angola, Moçambique e Guiné.
No quartel-general dos revoltosos, instalado na Pontinha, ele teve o momento de glória máxima – que os camaradas de armas sempre lhe reconheceram, atribuindo qualidades de estratego militar ao então major Saraiva de Carvalho. Todo este processo, que pôs fim a uma das mais velhas ditaduras da Europa, vem relatado no seu livro Alvorada em Abril, obra escrita na primeira pessoa e publicada em 1977. Indispensável como testemunho histórico.
Otelo ficou a meio da rota da liberdade. Esteve no 25 de Abril, mas faltou à chamada no 25 de Novembro. Ao contrário de Ramalho Eanes, Vasco Lourenço, Garcia dos Santos, Jaime Neves, Pires Veloso e tantos outros. (...) Vencedor em Abril, figurou entre os vencidos de Novembro. Não deixou, no entanto, de ser um ícone revolucionário. (...)
Saraiva de Carvalho festejou 40 anos, em Agosto de 1976, já com o melhor da sua biografia atrás de si. Nunca foi ministro, nunca foi deputado, nunca se deixou atrair pela «democracia burguesa», como tantas vezes se referia com manifesto desdém. Conquistou a celebridade muito cedo, conheceu o crepúsculo político com idêntica rapidez. E lidou mal com isso.
Foto: Inácio Ludgero / Visão
O pior veio depois, já na década de 80. Figura cimeira da Força de Unidade Popular, que o apoiou com manifesto insucesso na segunda corrida a Belém, acabou por patrocinar as chamadas Forças Populares 25 de Abril, organização terrorista de extrema-esquerda que entre 1983 e 1987 assassinou 17 pessoas – incluindo o director-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo-Branco. Em plena democracia, sem sequer o álibi do combate à ditadura. A alusão ao 25 de Abril, pervertendo esta data, tornava tudo ainda mais inaceitável.
Foi detido, sob a acusação de ser o cérebro da organização, e viria a ser condenado em tribunal. Cumpriu cinco anos de prisão por estes crimes cuja autoria sempre recusou, dizendo-se vítima de uma armadilha forjada pelo braço judicial do PCP. Acabou indultado e amnistiado em 2004, com outros membros daquela organização, culminando um processo que causou enorme celeuma.
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Em Abril de 2011 afirmou em entrevista ao Jornal de Negócios que Portugal precisava novamente de «um homem com a inteligência e a honestidade de Salazar». Nesse mesmo ano, noutra entrevista, confessou: «Se soubesse como o país ficava, não tinha feito a revolução.» Em 2012, noutra das suas bravatas, considerou que estavam a ser «atingidos limites» que poderiam justificar uma intervenção das forças armadas para «derrubar o Governo» de Passos Coelho.
Era assim o cérebro da revolução dos cravos, agora falecido com 85 anos incompletos: herói para uns, vilão para outros. Polémico do princípio ao fim.
Versão abreviada de um texto que ontem publiquei na edição digital do semanário Novo