O Austin 8 é capaz de ter sido o primeiro carro a fazer parte da minha vida. Pelo menos, parece-me ser assim que o localizo nas minhas memórias. Era do meu avô materno e nunca me esqueci da matrícula: TO-11-54.
O meu avô Manuel era médico militar e tinha, por isso, acesso facilitado à gasolina racionada na altura, em resultado da II Guerra Mundial. O carro, de 1948, mandara-o ele vir de Inglaterra, pelo que tinha volante do lado direito, o que não fazia qualquer diferença nessa época. Era azul muito escuro com os guarda-lamas salientes em preto e o couro interior castanho.
O Austin era mais velho do que eu, mas o certo é que pouco precisei de crescer nos meus calções para dar início ao culto que ele merecia: comecei cedo a deixar-me arrebatar por automóveis. A este, familiarmente, costumávamos chamar-lhe "Cartolinhas".
A mala do Eight andava sempre cheia de ferramenta, corda, arame, trapos e tudo o mais que se quisesse. Quando o carro avariava em viagem, o meu avô barafustava com toda a gente e ninguém piava com medo de piorar a situação, mas a verdade é que ele ficava encantado por poder desenrascar o problema — coisa que adorava fazer com má cara, mas no que era quase sempre bem sucedido, para não dizer sempre — e, no fim, com as mãos e o fato sujos, sentia-se feliz por ter dominado a máquina.
Problema maior era quando o carro não pegava a trabalhar em frio. A pesada manivela em ferro tinha de entrar em acção, mas o sacão que dava podia ser perigoso ao ponto de partir um braço ou a mão pela força do motor a rodar.
Na década de 50, depois da morte repentina do avô Manuel e por acordo familiar, o meu pai ficou com o carro, que foi impecavelmente pintado e o motor rectificado. Durante umas semanas, um dístico no óculo traseiro explicava aos condutores que seguissem atrás a razão da marcha mais lenta do que seria de esperar: Em Rodagem.
Lembro-me de andar numa escola pública do Porto e de, em dias de muito mau tempo, o meu pai me levar no carro para as aulas.
Creio que nos despedimos do "Cartolinhas" aí pelo início dos anos 60, levado por um particular que até do volante à direita gostava, vá lá saber-se por que razão. Lá em casa, o lugar do velho british nascido em Birmingham era rapidamente ocupado por um italiano de Turim, que logo substituiu aquele resistente herói sobrevivente da Guerra. Mas o veterano ainda hoje suscita um suspiro.