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Delito de Opinião

Os discípulos de Chamberlain

Pedro Correia, 17.04.24

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Neville Chamberlain cumprimentando Hitler em Munique (1938)

 

É comum ouvir-se por estes dias, a propósito da política de canhoneira aplicada por Vladimir Putin na Ucrânia, um conceito desenterrado dos mais bafientos baús da História.

Que conceito é esse? O de "apaziguamento".

 

Em síntese, os defensores desta tese recomendam a atitude dos três macaquinhos da fábula: há que vendar os olhos, cobrir os ouvidos e emudecer perante sucessivas violações do direito internacional para não indispor os prevaricadores. Se for preciso inverte-se até o ónus da prova, transformando o agressor em agredido e o agredido em agressor. Como o Grande Irmão de Orwell, que instituiu um Ministério da Verdade para melhor disseminar as mentiras enquanto incentivava as massas a urrarem o mais cruel e acéfalo dos paradoxos: «Guerra é paz!»

Não há nada de original nisto. Quando escuto os apóstolos do apaziguamento recordo-me sempre do mais infausto e patético de todos os primeiros-ministros britânicos: Arthur Neville Chamberlain. Céptico perante os aliados, crédulo perante os inimigos. De uma granítica intransigência face às vozes que o alertavam contra os riscos do compromisso a todo o preço, sempre pagos mais tarde a custos elevadíssimos. E de uma benevolência sem limites face à ofensiva totalitária.

De tanto querer a paz, na sua indesmentível boa fé, facilitou o caminho aos promotores da guerra. Da mais sangrenta, devastadora e homicida das guerras.

 

Recordo em particular o acalorado debate na Câmara dos Comuns travado a 25 de Junho de 1937 -- em que, não por coincidência, foi invocado várias vezes o nome de Portugal.

Era a primeira vez que Chamberlain ali discursava sobre política internacional desde que fora empossado como chefe do Governo conservador britânico, no mês anterior. E logo ali ficou bem patente o seu anseio em levar à prática uma política de "apaziguamento" com as feras totalitárias que faziam da guerra civil espanhola terreno experimental para um incêndio muito mais vasto que não tardaria a deflagrar no mundo.

Comentando a aparente resignação de Berlim na sequência do recente afundamento de um navio alemão ao largo da costa espanhola, o antecessor de Churchill não hesitou em elogiar o regime de Hitler por «ter demonstrado um grau de moderação que devemos reconhecer». O massacre de Guernica, cometido pela tenebrosa Legião Condor, ocorrera dois meses antes...

Incapaz de ler os sinais da História, Chamberlain pedia «cabeça fria» no Parlamento britânico e recomendava aos próprios jornalistas que «medissem as palavras» para não ferir as susceptibilidades dos inimigos da democracia. E rematou assim, cego perante as evidências: «Se todos formos prudentes, pacientes e cautelosos seremos capazes de salvar a paz na Europa.»

 

O antigo primeiro-ministro liberal David Lloyd George respondeu-lhe da melhor maneira. Observando sem rodeios que Hitler violara já três acordos internacionais subscritos pelo Estado alemão. Ao inutilizar o Tratado de Versalhes (1919) reintroduzindo o serviço militar obrigatório. Ao rasgar o Pacto de Locarno (1925), invadindo e remilitarizando a Renânia. E ao transformar em letra morta o Acordo de Não-Intervenção na Guerra Civil de Espanha (1936), disponibilizando instrutores, armamento e aviação a Franco.

E Lloyd George retorquiu a Chamberlain: «Precisamos de cabeças frias, sim, mas também de corações fortes.»

Solidários com os que sofrem as agressões, não com aqueles que as praticam. E aprendendo sempre com as lições da História.

Dois acontecimentos editoriais

Pedro Correia, 31.03.22

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São de fresca data, merecem registo e aplauso. Refiro-me a dois verdadeiros acontecimentos no nosso mercado literário.

O primeiro, lançado ainda em Dezembro, é o monumental volume (809 páginas) dos Diários de Sylvia Plath, incluindo os trechos expurgados pelo marido da malograda escritora, Ted Hughes, e recuperados em 1999, após a morte deste. O público português dispõe enfim desta obra no nosso idioma: são oito diários principais, redigidos entre 1950 e 1959, e quinze fragmentos de cadernos de apontamentos, iniciados em 1951 e prolongados até 1962 - meses antes do suicídio da autora de Ariel. Lançamento com a competência a que a Relógio d'Água já nos habituou. Destaco a excelente tradução de José Miguel Silva e Inês Dias.

O segundo, chegado às livrarias já este mês, é História de um Homem Comum (título original: Coming Up for Air). Único dos seis romances de George Orwell que permanecia inédito em Portugal. Elaborado em 1938, pouco depois da saída do escritor de Espanha, onde combateu nas fileiras republicanas, é uma sátira à sociedade britânica das décadas iniciais do século XX. «Um romance notável, ao mesmo tempo divertido e dolorosamente verosímil», como assinalou à época o jornal australiano The Age. Edição da E-primatur, outra chancela que prima pela qualidade. Com tradução digna de elogio de Jacinta Maria Matos, que também assina a introdução. 

Obras que tenho o maior gosto em saudar aqui. Os editores, Francisco Vale e Hugo Xavier, merecem um cumprimento deste leitor atento e grato.

Congelados pelo medo

Paulo Sousa, 25.02.22

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Com a memória fresca da leitura recente da Homenagem à Catalunha de George Orwell, é claramente um mundo diferente este em que vivemos e aquele que em se formaram as brigadas internacionais para ajudar as forças do governo republicano espanhol no combate contra o fascismo.

É claro que também a mecanização e toda a tecnologia de guerra levou a que a sua progressão se tenha tornado muito mais rápida, e assim se tenha tornado obsoleta a manutenção por meses de posições entrincheiradas conforma relata Orwell nesta obra.

Mas mais do que isso não posso deixar de reparar no voluntarismo assente na força das convicções ideológicas e na generosidade que levaram cerca de 40.000 cidadãos, maioritariamente europeus, a abandonar as suas rotinas e a se voluntariar para combater num país dentro do qual nem conseguiam comunicar. Cerca de 10.000 terão morrido ao longo da guerra, tendo muitos deles perecido também em resultado dos conflitos entre os diferentes partidos que combatiam as tropas de Franco. A busca pela pureza dos ideais colocou os partidários de cada uma das principais facções, fossem anarquistas, socialistas, comunistas, mais ou menos marxistas com critérios de distinção que exigiam um bisturi ideológico, uns contra outros. O escritor pertencia a um deles apenas porque eram os que o tinham recebido à chegada.

No relato sobre o inverno passado nas trincheiras entre Huesca e Saragoça sobressaem essencialmente as descrições sobre o frio, o isolamento e o tédio ali passado. Manter o lume acesso exigia deslocações cada vez maiores, chegando ao ponto em que por cada hora de lume acesso eram necessárias três ou mais em busca de material combustível. Chega a ser mais fácil arranjarem-se voluntários para ir à terra de ninguém para recolher lenha, do que para combater. A falta de higiene, os piolhos e os atrasos na alimentação são também referidos no livro.

 

Em oitenta noites, apenas tirei as minhas roupas três vezes, embora conseguisse de tempos a tempos tirar tirá-las durante o dia. Ainda estava demasiado frio para haver piolhos, mas ratazanas e ratos era coisa que não faltava.

 

Depois de ler esta obra e de recuar no tempo pela mão de Orwell, oiço as notícias e fico a saber que estamos todos agradavelmente surpreendidos pelas unânime reacção dos países-membros da EU e até comovidos pelas palavras proferidas pelos seus responsáveis políticos. Não se pode expulsar a Rússia do sistema de pagamentos Swift porque sem o gás que esta fornece poderíamos passar frio, mesmo num inverno que tem sido ameno.

Confesso-me surpreendido por ainda não ter começado a ver molduras azuis e amarelas para sobrepor nas fotos de perfil das redes sociais, porque essa é a arma favorita dos europeus para combater os tiranos. Os mais afoitos e voluntariosos, e que vivem a menos de mil passos da Rua Visconde de Santarém, esses apostam mais no desenho de cartazes para exibição em frente às câmaras de videovigilância da embaixada da Rússia.

Já com milhares de ucranianos deslocados em fuga da guerra, com muitos outros a dormir nas estações de metro, fazendo lembrar os tempos do Blitz sobre Londres, sem podermos saber a dimensão das baixas civis, a pergunta que ouvi numa entrevista a um oficial das Forças Armadas reformado foi sobre quais as linhas vermelhas que a Rússia não poderá pisar. O que é que afinal ainda falta acontecer para que os europeus acordem?

Os políticos estão manietados na exacta proporção da incapacidade dos cidadãos que representam, aceitarem riscos. Os déspotas como Putin e Xi Ji Ping sabem bem disso e isso abre-lhes a porta às suas ambições. O próximo episódio ocorrerá em Taiwan e o melhor mesmo é que os mais corajosos comecem já a preparar os cartazes. A embaixada da China em Portugal fica na Rua de São Caetano.

Leituras

Pedro Correia, 15.07.12

 

«A mentira organizada praticada pelos estados totalitários não é, como alguns afirmam por vezes, um expediente temporário da mesma natureza das operações militares de desinformação. Trata-se de uma característica inerente ao totalitarismo, algo que se manteria mesmo que a polícia secreta e os campos de concentração deixassem de ser necessários.»

George Orwell, Livros & Cigarros

Antígona, Lisboa, 2010. Tradução: Paulo Faria.

Leituras

Pedro Correia, 25.06.11

 

«Na Europa Ocidental e na América, largas franjas da intelligentsia literária passaram pelas fileiras do Partido Comunista ou são [1945] fervorosos simpatizantes do comunismo, mas este movimento generalizado em direcção à esquerda produziu um número extraordinariamente reduzido de livros dignos de ser lidos. Também o catolicismo ortodoxo parece ter um efeito deletério sobre certas formas literárias, mormente sobre o romance. Ao longo de um período de trezentos anos, quantos indivíduos foram a um tempo bons romancistas e bons católicos? A verdade é que certos temas não podem ser glorificados pela palavra, e a tirania é um deles. Nunca ninguém escreveu um bom livro a louvar a Inquisição.»

George Orwell, Livros & Cigarros

(Antígona, 2010. Tradução: Paulo Faria)

Pechinchar na Feira

Pedro Correia, 16.05.09

  

 

Faço a segunda incursão do ano à Feira do Livro de Lisboa, que tem registado boa afluência. Este ano ainda mais justificada pela abertura de novos espaços para comer, uma praça de táxis situada mesmo ao lado e pavilhões modernos, muito funcionais. Há também obras em inglês e castelhano: editoras internacionalmente conhecidas, como a britânica Penguin e a espanhola Planeta, marcam lugar na Feira, que é um local de convívio e múltiplos (re)encontros.

E há sobretudo os preços tentadores. Costumo ir lá ‘pechinchar’ – e nunca me arrependo. Nesta segunda incursão trouxe seis livros pela módica quantia de 19 euros. Quatro de ficção: A Truta (Roger Vailland), S (John Updike), Lamentos da Vida (Dorothy Parker) e Ultramarina (Malcolm Lowry). Uma recolha de crónicas e ensaios jornalísticos de Truman Capote, Os Cães Ladram. E A Face Oculta de Kennedy, do jornalista Seymour M. Hersh, galardoado com o Pulitzer. Repito: tudo isto por 19 euros. E ainda há quem diga evitar a Feira por os livros serem “muito caros”…

Além dos já mencionados, trago duas outras obras que adquiri fora do circuito da pechincha. Mas qualquer delas vale mesmo a pena. The First Forty-Nine Stories, recolha do essencial de contos de Ernest Hemingway (da Arrow Books), e Essays, de George Orwell (Penguin). O Hemingway ficou-me por dez euros, os ensaios completos de Orwell custaram-me quinze. São obras essenciais em qualquer biblioteca. E - até por isso - nada caras também.

 
 
ADENDA: Quero lá voltar para comprar os livros do António Manuel Venda e do José Mário Silva, entre outros.