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Delito de Opinião

Angela Lansbury (1925-2022)

João Sousa, 11.10.22

Angela Lansbury as Granny
Angela Landbury em The Company of Wolves

Um colega de escola costumava dizer-me que se alguma vez se cruzasse com Jessica Fletcher, a protagonista de "Crime, Disse Ela", fugiria como do Diabo porque as pessoas tendiam a morrer como moscas à sua volta.

O Sapo faz um resumo da longa carreira de Angela Lansbury, exercício sempre algo ingrato pela necessidade de condensar 80 anos em dois ou três ecrãs de texto (o limite de atenção do internauta-padrão), mas parece-me injusto não haver nem uma menção a um adorável filmezinho de culto de 1984 chamado The Company of Wolves. Na cultura popular, Angela Lansbury será sempre Jessica Fletcher. Eu, quando penso nela, é primeiro como aquela avozinha cheia de superstições licantrópicas.

Vangelis (1943-2022)

João Sousa, 19.05.22

Por vicissitudes várias, há pelo menos uma dúzia de textos que, nos meus anos de blogosfera, já fiz e refiz inúmeras vezes na minha cabeça sem que uma única letra tenha sido (ainda) colocada no papel ou no computador. Um deles seria sobre Vangelis, que morreu na terça-feira. Não foi raro ouvir manifestações de estranheza pela minha admiração por ele. Que não reduzam a sua obra à "banda sonora do Guterres", foi o que sempre respondi aos sarcásticos, ou às bandas-sonoras de Blade Runner e Chariots of Fire, foi o que sempre respondi aos benévolos: a discografia de Vangelis pré-Colombo foi de contínua experimentação onde se ouve o rock progressivo dos Aphrodite's Child, o jazz, a música clássica, o minimalismo, o avant-garde, o pop e até algum rock mais eléctrico.

Jean-Paul Belmondo (1933-2021)

João Sousa, 08.09.21

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Abafada pelo burburinho noticioso, passou-me despercebida a morte, na segunda-feira, de Jean-Paul Belmondo, um ícone cool francês. Foi pugilista amador; quis ser palhaço; viveu com Ursula Andress (que nunca o esqueceu); foi um dos rostos da Nouvelle Vague; representou para vários dos grandes realizadores do cinema europeu; e mostrou-se tão confortável nos palcos de teatro como aos saltos e piruetas num carro.

Viveu uma vida bem vivida.

Sir Sean Connery (1930-2020)

João Sousa, 31.10.20

Não penso ser possível fazer justiça a Sean Connery num par de parágrafos - por isso nem o vou tentar.

Considero a mais eloquente prova do talento de Sean Connery o facto de, apesar de ter sido o primeiro (e para muitos, incluindo este escriba, o melhor) James Bond, ter conseguido que isso fosse apenas uma das alíneas de um invejável currículo. Filmou com grandes realizadores como Sidney Lumet, Brian de Palma, Hitchcock e Spielberg. Representou um personagem de Umberto Eco. Participou em clássicos como Um Crime no Expresso do Oriente; épicos como A Bridge Too Far; bizarrias como Zardoz; pequenas preciosidades como Robin and Marian; falhanços como The Avengers e atrocidades como The League of Extraordinary Gentlemen. No fim disto tudo, recordo muitos grandes filmes, vários maus filmes que ele não conseguiu salvar - mas nenhum que tenha sido mau por causa dele. E possuía a saudável auto-estima para, depois de ter sido este:

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(imagem promocional de Goldfinger)


fazer um filme nestes preparos:

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(Zardoz)

Mafalda e o fim do jornalismo

Pedro Correia, 08.10.20

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O recente desaparecimento de Quino, o criador da inesquecível Mafalda, constitui um marco simbólico da morte do jornalismo. Porque as suas histórias centradas na menina preocupada com os males do mundo se inseriam numa longa linhagem com diversos outros expoentes, tanto por via ascendente (basta lembrar o Charlie Brown, de Charles Schulz) como descendente (Calvin & Hobbes, de Bill Waterson, por exemplo), todas criadas para publicação na imprensa. E a ela unidas por um cordão umbilical.

Durante décadas, os leitores de jornais conviveram com a banda desenhada: não havia jornais de referência sem histórias aos quadradinhos - sérias ou cómicas, com argumentos longos ou curtos, a cores ou a preto e branco. Tal como não havia jornais sem caricaturas, com frequência inseridas em espaços nobres - até nas primeiras páginas. É uma tradição que remonta ao apogeu da imprensa como veículo de informação e conhecimento, na segunda metade do século XIX, e prolongada por todo o século XX.

 

A voragem trituradora da "globalização" foi pondo fim a tudo isto. O argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón (imortalizado com o nome artístico Quino, diminutivo que era aumentativo) não conseguiria hoje encontrar espaço para publicar as suas vinhetas. Muito menos de exportá-las para o mundo inteiro, como sucedeu com a Mafalda.

Basta ver o que acontece cá: a banda desenhada desapareceu dos jornais. As caricaturas que outrora contribuíram para a fama de Rafael Bordalo Pinheiro, Almada Negreiros e Stuart de Carvalhais foram praticamente abolidas da imprensa cordata, reverente e "normalizada", cada vez mais dependente da agenda (e da verba) oficial. Os cartunistas que restam policiam-se a todo o momento, com receio de serem apontados a dedo pelas brigadas da correcção política ou, no limite, conhecerem o dramático destino dos seus colegas do Charlie Hebdo.

 

Numa das suas tiras mais famosas, Quino desenhou a sua personagem favorita encontrando na praia uma menina baixinha e magrinha, de tamanho irrelevante, e perguntou-lhe: «És tão pequenina! Como te chamas?» E ouviu esta resposta: «Liberdade.»

Foi há meio século, mas poderia ter sido hoje. Quino experimentou o peso da ditadura no país natal, como aconteceu com tantos criadores noutras paragens. Hoje há mais democracia no planeta, sem dúvida, mas nada garante que exista mais liberdade. E o problema central é mesmo este.

Poderíamos questionar-nos o que diria a Mafalda de tudo isto. Existirá uma nova Mafalda escondida por aí?

Diana Rigg (1938-2020)

João Sousa, 10.09.20

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Vi-a como Tracy di Vicenzo no injustamente vilipendiado On her Majesty's Secret Service, Edwina Lionheart no divertidamente macabro Theatre of Blood e Rainha numa quase despercebida versão da Branca de Neve. Mas será sempre como a Emma Peel d'Os Vingadores que a recordarei: "a mulher perfeita" (palavras de um vilão que teve a imprudência de a enfrentar e com as quais não posso senão concordar).

Diana Rigg morreu hoje: uma senhora nos palcos, nos grandes e pequenos ecrãs - e na vida.

Ian Holm (1931 - 2020)

João Campos, 19.06.20

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Fotografia de 2005 por Cambridge Jones/Getty Images, retirada da NBC News

 

Ian Holm pode não ter sido um actor associado com frequência ao papel de protagonista (no cinema, pelo menos; sobre a sua longa carreira no teatro não me poderei pronunciar), mas nem por isso deixou de se fazer notar - o carisma de algumas das suas personagens secundárias bastou para as tornar com frequência inesquecíveis.

O desempenho inevitável nos elogios fúnebres de hoje será talvez o seu Bilbo Baggins da adaptação de The Lord of Rings de J.R.R. Tolkien, já no crepúsculo da vida a abdicar relutantemente do Anel que lhe preservara a juventude. Na vasta trilogia de Peter Jackson as cenas de Holm não são longas mas ficam na memória, abrindo e encerrando toda a saga - com o início maravilhoso da sua festa de aniversário e o interlúdio melancólico de Rivendell no primeiro filme, The Fellowship of the Ring, e a sua partida para Valinor no epílogo de The Return of the King. Holm viria a regressar com Jackson à Terra Média na adaptação de The Hobbit, contada em analepse para lhe permitir passar o testemunho a Martin Freeman e fazer a ponte com a história original. Em The Fifth Element, de Luc Besson, interpretou o frenético Padre Vito Cornelius, último elemento de um culto antigo capaz de fazer a ligação com a civilização alienígena dos Mondoshawans e assim salvar o universo (ou, vá lá, permitir que o Korben e a Leeloo de Bruce Willis e da Milla Jovovich salvassem o universo). E no grande Brazil de Terry Gilliam foi  Mr. Kurtzmann, o titubeante chefe de Sam Lowry (Jonathan Pryce), a cargo de uma pequena parte de toda aquela burocracia infernal.

Mas é em Alien de Ridley Scott que, para mim, Ian Holm tem a sua aparição definitiva no grande ecrã ao interpretar Ash, o cientista da tripulação que se transforma num inesperado antagonista. Bilbo Baggins e Vito Cornelius, e até mesmo Mr. Kurtzmann, são em si bastante diferentes, mas existe entre eles um fio condutor na interpretação simpática, apologética e algo desajeitada de Holm. Mas o andróide Ash não podia estar mais longe desse registo: frio, metódico, absolutamente dedicado a cumprir a missão secreta da Nostromo, mesmo sabendo que isso implicará a morte dos seus colegas de tripulação. O seu confronto com a Ellen Ripley de Sigourney Weaver não é muito menos aterrador do que o próprio alienígena.

Haverá vários outros papéis de Ian Holm para descobrir ou re-descobrir (aos anos que ando a ver se revejo a adaptação televisiva de Through the Looking Glass  que apanhei uma vez a passar na RTP2), mas estes, de quatro dos meus filmes preferidos, ficam-me na memória.

Filho de pais escoceses, Ian Holm nasceu a 12 de Setembro de 1931 em Goodmayes, Essex. Faleceu hoje aos 88 anos.

José Cutileiro - In Memoriam

João Pedro Pimenta, 18.05.20
Entre outras qualidades havia duas que apreciava particularmente em José Cutileiro: tinha, tal como eu tenho, um tipo de escrita com frases longas e adjectivadas (embora lamentasse não usar muitas vezes o artigo definido) e escrevia os magníficos obituários do Expresso, o espaço In Memoriam, amiúde de figuras excêntricas de que nunca antes tinha ouvido falar, ou de que não saberia à altura que tinham morrido se não os tivesse lido. O último saiu precisamente ontem, com destaque para Iris Love e Little Richard, o criador da célebre Tutti Frutti.
Cutileiro era formado em antropologia e destacou-se como diplomata (sem ser de carreira), exercendo cargos de relevo na Comissão de Paz para a Jugoslávia, uma missão quase impossível, onde nfelizmente as suas ideias para a Bósnia não vingaram, e como secretário-geral da UEO. Para além dos cargos oficias, mantinha colunas nos jornais e na rádio, como a supracitada ou o Visão Global, da Antena 1, e claro, as da personagem A.B. Kotter (que influenciaria outros cronistas-fantasma no futuro, alguns ainda em actividade), recolhidas na colectânea Bilhetes de Colares.
É muito estranho pensar que nos deixou o autor dessa necrologia de elite, embora já me tivesse ocorrido quem os faria quando ele por sua vez partisse. Esperemos que o espaço não fique em branco para além da próxima semana. E também quem fará o epitáfio jornalístico do próprio Cutileiro. Seja quem for, não será a mesma coisa.
Expresso | José Cutileiro, o embaixador que testemunhou a mudança ...

Rutger Hauer (1944-2019)

João Campos, 24.07.19

I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.

Blade Runner (1982)

Há actores que precisam de uma carreira considerável para serem lembrados. Rutger Hauer precisou apenas de improvisar um monólogo nos minutos finais de Blade Runner para alcançar a imortalidade. 

Luciano Barbosa

João Sousa, 06.05.19

Morreu Luciano Barbosa, vocalista e líder dos Repórter Estrábico.

Muitos, talvez enquanto folheavam o programa da temporada de concertos da Gulbenkian, terão feito um sorriso de escárnio ao ouvir o nome Repórter Estrábico. Mas quase aposto que, se não fossem estes, não teríamos a palavra "Mnemónica" no cancioneiro português, nem uma música "com letra de" Vladimir Nabokov.

To light a candle is to cast a shadow (Ursula K. Le Guin, 1929 - 2018)

João Campos, 24.01.18

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 Ursula K. Le Guin em 1985 (fotografia de Brian Drake para o The Times, via Los Angeles Times)

 

In reading a novel, any novel, we have to know perfectly well that the whole thing is nonsense, and then, while reading, believe every word of it. Finally, when we're done with it, we may find - if it's a good novel - that we're a bit different from what we were before we read it, that we have been changed a little, as if by having met a new face, crossed a street we never crossed before. But it's very hard to say just what we learned, how we were changed.

Ursula K. Le Guin, na introdução a The Left Hand of Darkness (1969)

 

Para a ficção científica literária, a morte de Ursula K. Le Guin representa o desaparecimento de toda uma época: Le Guin começou a publicar no início dos anos 60, já nos derradeiros anos da famosa "Golden Age" do género; atravessou a revolução da "New Wave" no final dessa década, e continuou pelas décadas de 70 e 80. Seria talvez a última autora clássica do género: no tributo que lhe presta nas páginas do Los Angeles Times, o escritor John Scalzi descreve Le Guin como "a supporting column of the genre, on equal footing and bearing equal weight to Verne or Wells or Heinlein or Bradbury." Mas talvez seja mais do que isso. Verne, Wells e Heinlein (e Clarke, e Asimov) são clássicos pela fundação e pelo desenvolvimento do género, mas Le Guin não seguiu as pisadas dos homens que a antecederam: a sua obra tornou-se clássica não pela continuidade que deu ao cânone da ficção científica, mas pela rejeição desse cânone, pelo expandir dos horizontes de todo o género, e pela forma exemplar como demonstrou que a Ideia, pedra angular da ficção científica, pode não lhe bastar. 

 

E demonstrou-o pela palavra, em contos e livros excepcionais. Diria ser impossível esquecer The Ones Who Walk Away From Omelas, uma parábola poderosíssima escrita em poucas páginas. Ou a ambiguidade de The Dispossessed, com a sua trama dividida entre a sociedade anarquista de Anarres e a sociedade capitalista de Urras, uma reflexão pertinente num terreno pantanoso onde autores menores se afundariam aos primeiros passos. Ou The Left Hand of Darkness, com a sua desconstrução da identidade de género e o seu estudo meticuloso sobre a importância, e a irrelevância, da diferença. Ou - provavelmente o meu preferido - The Lathe of Heaven, livro-tributo a Philip K. Dick, no qual Le Guin leva até às últimas consequências a ideia de que de boas intenções está o Inferno cheio. Sempre com uma prosa excepcional e uma humanidade ímpar, que contribuíram para a elevação e afirmação de um género literário sempre considerado marginal. Para todos os efeitos, a literatura de ficção científica teve em Le Guin mais do que uma das suas maiores vozes - teve nela também uma das suas mais ferozes defensoras. 

 

Mas não se ficou pela ficção científica: a série Earthsea figura entre a melhor fantasia literária já publicada, espantosa pela sua diversidade natural e pela subtileza das suas influências orientais, que representaram uma lufada de ar fresco para um género à época dominado pela sombra de Tolkien e pelo sem-número de imitadores que se lhe seguiram. A aventura de Ged ao longo da trilogia original, em A Wizard of EarthseaThe Tombs of Atuan, e The Farthest Shore, conta com quase cinqueta anos, e não perdeu nem um pouco da sua força. 

 

Cá em casa, na biblioteca que temos vindo a construir, nenhum autor surge tantas vezes. Se tivesse de nomear o meu livro preferido de ficção científica, provavelmente não escolheria um título de Le Guin; mas se tivesse de escolher um escritor ou escritora preferido, não hesitaria na resposta. Ocorrem-me vários livros que me mudaram de alguma forma, mas apenas Le Guin o conseguiu tornar a fazer a cada novo livro ou conto que li. Ainda tenho alguns por ler, tal como a poesia, os ensaios, as inúmeras crónicas - textos dispersos felizmente compilados e editados em anos recentes. Mais do que nunca, aguardo por essas leituras com muita expectativa.

 

Ursula Kroeber Le Guin faleceu anteontem na sua casa de Portland, nos Estados Unidos. Tinha 88 anos, e escreveu livros extraordinários. 

António de Macedo (1931 - 2017)

João Campos, 05.10.17

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É muito provável que o cinema português não o saiba, já que o votou ao esquecimento prematuro, mas com a morte de António de Macedo perdeu um dos seus mais talentosos, mais ousados, e mais originais cineastas. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente antes de descobrir a sua obra - era presença assídua no Fórum Fantástico, tanto como convidado como na qualidade de espectador, e ouvi-lo era sempre um privilégio pela lucidez, pelo humor, pelas histórias mirabolantes que contava. Só mais tarde encontrei a literatura fantástica que escreveu e os filmes que realizou enquanto lhe foi possível. Há cerca de um mês vi na Cinemateca a sua primeira longa-metragem, Domingo à Tarde (1965), adaptada do romance de Fernando Namora; mas guardo especial memória de descobrir o assombroso O Princípio da Sabedoria (1975) há poucos anos, numa sessão memorável.

 

No ano passado, o DocLisboa encerrou com Nos Interstícios da Realidade, ou o Cinema de António de Macedo, um documentário realizado por João Monteiro, do Motelx, sobre o papel fundador de António de Macedo no "Cinema Novo" e sobre a forma como foi sendo afastado e esquecido. Deverá ser exibido dentro de pouco tempo em salas de cinema de todo o país, após a ante-estreia de ontem na Cinemateca, e não o poderia recomendar mais. Entre o documentário e as homenagens dos últimos anos, é possível que a obra de António de Macedo seja resgatada ao esquecimento e que ocupe o seu lugar merecido na história do cinema português. Já era tempo.

 

António de Macedo faleceu hoje, aos 86 anos.  

John Hurt (1940 - 2017)

João Campos, 28.01.17

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Conta a lenda de que a célebre chestburster scene foi filmada sem que o elenco soubesse de que a criatura alienígena iria explodir em sangue e entranhas do peito de John Hurt - ideia de Ridley Scott para obter do elenco de Alien uma reacção mais genuína. O resultado foi uma das mais icónicas cenas do cinema tanto de horror como de ficção científica - e uma que o próprio John Hurt parodiaria oito anos depois no Spaceballs do lendário Mel Brooks. Hurt foi o oprimido Winston em 1984, o revolucionário Gilliam em Snowpiercer e o tirano Sutler em V for Vendetta; foi o Elephant Man de David Lynch e o Professor Broom dos dois Hellboy de Guillermo Del Toro (duas adaptações de banda desenhada tristemente subvalorizadas e esquecidas). Entrou, entre muitos outros filmes e inúmeras séries televisivas, em Only Lovers Left AliveTinker Taylor Soldier SpyMelancholiaJackie (a estrear em breve), Dr. Who, Merlin e The Storyteller. Emprestou também a sua voz inconfundível à animação - foi, por exemplo, o Aragorn da adaptação animada de The Lord of the Rings realizada por Ralph Bakshi em 1978. Não havia - não há - muitos actores com o seu carisma. John Hurt morreu hoje, aos 77 anos. 

Alberto Vaz da Silva (1936-2015)

Patrícia Reis, 08.07.15

"O seu conhecimento enciclopédico permitia-lhe fazer compreender tudo para além do imediato e do simples. A poesia, a literatura, as artes, o diálogo das culturas e das civilizações.
 

O Alberto deixou-nos. Era uma personalidade fascinante. Uma conversa com ele era um motivo de luminosidade e de sabedoria. Conheci-o desde sempre, primeiro como jovem advogado brilhante que colaborou com o meu avô, mas depois, e com uma intensidade crescente, como um cultor da melhor amizade, como da melhor literatura e da melhor arte.

Ao lado de João Bénard da Costa, de Pedro Tamen, de Nuno Bragança e de António Alçada Baptista foi um dos grandes protagonistas de «O Tempo e o Modo». Como foi, mais tarde, de «Raiz e Utopia». Na crítica literária tornou-se uma referência de critério e de qualidade. Não é possível compreender a importância de Agustina Bessa Luís ou de Sophia de Mello Breyner sem ler o que Alberto escreveu. E, para tanto, teve de romper com conformismos, dos vários lados do espetro político.

Ao lado de Helena Vaz da Silva, foi uma peça-chave nos diversos projetos em que esteve envolvida. Admirava profundamente a inteligência de sua mulher, sabendo na antecâmara articular a imaginação e a racionalidade, a audácia e o senso comum.

Um dia disse que usava as palavras que estavam na sua alma. E José Tolentino Mendonça, há pouco, no Expresso comparou-o com Cristina Campo, a propósito de «Os Imperdoáveis». «Isto é, aqueles que possuem e definem um estilo, os habituados por uma força profunda, por um caráter próprio, por uma sabedoria irremovível, aqueles que desenham com as suas vidas um mapa de tal modo original que se torna necessário à viagem dos outros». E assim citava a frase de Saint-Martin: «Houve certos seres através dos quais Deus nos amou».

Era assim a sua fé, feita de afeto e espontaneidade. O seu conhecimento enciclopédico permitia-lhe fazer compreender tudo para além do imediato e do simples. A poesia, a literatura, as artes, o diálogo das culturas e das civilizações – tudo se somava à paixão pela astronomia e à experiência da grafologia. Psicólogo experimentado, conseguia na decifração da escrita entender a complexidade das personalidades humanas. E assim cultivou a psicologia das profundidades. Roseline Crepy abriu-lhe os horizontes.

A sua generosidade permitiu-lhe, entretanto, dedicar-se àquilo que lhe dava verdadeiro prazer: a descoberta da diversidade e a procura da luz. Oiçamo-lo sempre: «É com sorridente beatitude e uma ponta de inveja que hoje lemos os livros de viagens que foram moda no final do século passado. Já no século XVIII fazia parte da educação de qualquer jovem bem nascido correr mundo, isto é, percorrer longamente a Itália num Grand Tour que, depois de completado, lhe permitiria estabelecer-se com segurança no lugar que a Providência lhe designara».

Ah! O Alberto continua a despertar o gosto pela vida!

 

Texto de Guilherme de Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura, publicado no  jornal O Observador

Até sempre, Eduardo

Ana Vidal, 02.03.13

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acabo de ser apanhada de surpresa pela notícia da morte do pintor Eduardo Nery, estou chocada e triste. Era um amigo. Ainda na passada semana passei uma tarde com ele no seu atelier de Campo de Ourique, e estava tão entusiasmado a preparar a exposição da sua maravilhosa colecção de arte africana que nem parecia estar doente. Mostrou-me os belíssimos protótipos de um novo serviço que desenhou para a Vista Alegre, já em fase de ajustamentos finais. Conversámos sobre um prefácio que ele ia fazer para um livro meu sobre Magritte, um pintor que ambos admirávamos. Não haverá prefácio, não haverá mais conversas sobre arte, viagens estéticas, poesia. Felizmente que ainda viu oficialmente reconhecida a sua vasta obra com uma medalha presidencial. Até sempre, Eduardo.

Ray Bradbury (1920 - 2012)

João Campos, 06.06.12

(22.08.2012 - 06.06.2012)

 

Everyone must leave something behind when he dies, my grandfather said. A child or a book or a painting or a house or a wall built or a pair of shoes made. Or a garden planted. Something your hand touched some way so your soul has somewhere to go when you die, and when people look at that tree or that flower you planted, you're there.

 

It doesn't matter what you do, he said, so long as you change something from the way it was before you touched it into something that's like you after you take your hands away. The difference between the man who just cuts lawns and a real gardener is in the touching, he said. The lawn-cutter might just as well not have been there at all; the gardener will be there a lifetime.

 

Ray Bradbury, Fahrenheit 451 (1953)