Soldado americano utiliza DDT para prevenir malária (Nápoles, Janeiro de 1944)
Vi há dias um interessante debate sobre o rumo e o destino da chamada "comunicação social" num programa televisivo da RTP3, O Último Apaga a Luz, dedicado à análise dos media contemporâneos. Sem clichês, sem chavões, sem o pensamento pronto-a-papaguear que é habitual escutarmos noutros programas. Com Joaquim Vieira, Raquel Varela, Rodrigo Moita de Deus e Virgílio Castelo.
A certa altura a Raquel Varela disse uma frase que não resisti a transcrever aqui: "A comunicação social está permanentemente a mostrar aquilo em que a Humanidade é incapaz e a ocultar aquilo de que a Humanidade é capaz."
Penso com muita frequência nisto: o discurso jornalístico reflecte hoje uma crescente tabloidização da realidade, descrevendo-a como um local infrequentável. O mundo retratado na generalidade dos órgãos de informação contemporâneos está povoado de calamidades e cadáveres, de fobias de todo o género, de anátemas lançados ao modo como vivemos e convivemos.
O sangue vende como nunca, o medo instala-se, o temor de sair à rua devido a um milhão de causas - desde os assaltos nos multibancos aos raios ultra-violetas potenciados pelo "aquecimento global" - induz cada um a entrincheirar-se nas quatro paredes domésticas, trocando o real pelo virtual.
"O inferno são os outros" - nunca a frase de Sartre pareceu tão actual como nos nossos dias.
E no entanto há outro mundo que pulsa e vibra além das manchetes da imprensa. Um mundo que "não sai no jornal", parafraseando o verso de Chico Buarque. Esta semana, ao fundo de uma página interior do El País, na secção de Tecnologia e Ciência, li este título: "Europa livre de malária".
A Organização Mundial de Saúde declarou este continente onde habitamos finalmente imune à doença, que matou 438 mil pessoas em todo o mundo só no ano passado e era endémica no sul da Europa - incluindo Portugal - até à geração dos meus pais. Vinte dois mil soldados norte-americanos adoeceram com malária na Sicília durante a campanha militar para a conquista da ilha, no Verão de 1943. Apenas no pós-guerra os mosquitos portadores da doença começaram a ser combatidos com eficácia, graças à generalização do DDT, o primeiro pesticida moderno.
Uma boa notícia, portanto. E daí ter sido varrida para a parte inferior da hierarquia informativa. Não é má, não transmite receio nem angústia - portanto, não vende. Logo me lembrei, perante este exemplo concreto, de uma reunião de editores no Diário de Notícias. Ousei sugerir que todos os anos - num dia apenas, coincidindo com o aniversário do jornal, a 29 de Dezembro - fizéssemos aquilo que me parecia, e parece ainda, um estimulante exercício intelectual: produzir uma edição em que todos os temas fossem escritos num ângulo positivo. Seguindo o princípio de vermos o copo meio-cheio, não meio-vazio.
Quase todos os meus colegas olharam para mim como se eu estivesse afectado por loucura momentânea. E logo a questão foi arrumada em duas palavras: "Não vende."
A mesma lógica que leva o fim da malária na Europa a merecer apenas uma nota de rodapé: de acordo com este raciocínio dominante, só as más notícias parecem verdadeiramente boas.
Se em vez de mau for péssimo, ainda melhor.
Mas - convicto ainda de ter apresentado uma sugestão que devia ter merecido luz verde nessa reunião de editores, há mais de uma década - interrogo-me: se só a tragédia e a catástrofe "vendem" por que motivo continuam a fechar tantos jornais?