Em viagem - Parte 1
O pai já não está connosco há 25 anos. Partiu novo, deixando um vazio imenso que coisa alguma conseguiu preencher. Aventureiro carismático e muito castiço, era um gastrónomo de primeira água e apreciava um bom vinho. Adorava música, bons filmes, bons livros, praia, mulheres bonitas, a esposa, os filhos e as netas.
Vivi com ele a primeira grande aventura da minha vida num maravilhoso Setembro de 1970: um Volkswagen Variant com porta-bagagens em cima, uma tia sexagenária, uma miúda de 12 anos, um garoto de 8, a mãe, o bebé com 4 meses e o pai ao volante. As roupas e necessaires iam em cima, em grandes malas e o espaço traseiro do carro tinha sido transformado numa espécie de nurserie do menino: tinha caixas forradas a azul e etiquetadas com as roupas de bebé, as fraldas, os biberons, as papas, um fogão Campingaz e alguns apetrechos de cozinha, e uma alcofa, que porta-bebés ainda era praticamente um produto de ficção científica.
E então fomos estrada fora, depois duma preparação concisa através de mapas e trajectórias alternativas fornecidas pelos experts do ACP, rumo a Solingen, perto de Colónia, na Alemanha, onde morava a Line, a filha mais nova da tia Eugénia.
A primeira paragem foi em Talavera de la Reina, onde pernoitámos num simpático Hostal, gerido por um casal com uma caterva de filhos, todos alegres e salerosos, e onde o meu pai abriu a primeira garrafa da colheita especial ”para levar para a Alemanha”, que guardava zelosamente. Os hospedeiros eram de uma simpatia e amabilidade contagiantes, pondo de imediato ao dispor das senhoras a cozinha e outras facilidades necessárias para tratar das crianças. A ideia que me ficou dos espanhóis é a de pessoas afáveis, alegres e fantásticas, o que me leva a crer que a geração pós-franquista degenerou significativamente.
De Talavera de la Reina partimos para mais uma tirada até Zaragoza e depois até à Costa Brava, com paragem obrigatória em Barcelona - a Costa Brava é linda, grandiosa, magnífica - e atravessámos outra fronteira já na subida para os Pirenéus, para pernoitar em Perpignan, noutra pousada gerida por outro casal espectacular, onde pus pela primeira vez à prova os dotes linguísticos que adquiri num único ano de francês. A verdade é que me safei muito bem e a partir daí tomei-lhe o gosto.
Saídos de Perpignan, seguimos por uma via a que chamavam autoestrada – Uau !!! – e almoçámos num sítio totalmente práfrentex, chamado área de serviço. A caminho de Dijon, onde pernoitámos, pela primeira vez num hotel de luxo, atravessámos a pior tempestade eléctrica que vi na minha vida que culminou com uma chuva torrencial de proporções bíblicas. Foi uma noite aterradora e praticamente insone; nos breves minutos que conciliávamos o sono éramos despertados abruptamente por hordas de hunos gritantes, que nos bombardeavam sem cessar. Em concílio familiar ficou decidido que no dia seguinte era uma directa até Colónia e pronto, mas não sem antes passar no Luxemburgo para deixar uma encomenda que um amigo por lá emigrante nos tinha pedido para levar.
Depois das peripécias do costume, qual bando de ciganos chegámos à grandiosidade do Luxemburgo, que se atravessava nuns meros 20, 30 minutos. O pai estacionou numa bomba de gasolina, para atestar e pedir direcções. O funcionário que o atendeu ere jugoslavo e falava apenas a sua língua e um mau italiano; tanto quanto o pai entendeu, tínhamos de atravessar duas pontes e virar na via sinistra. Transmitidas as indicações ipsis verbis, as palavras caíram que nem raios na população da Variant, que depois de uma noite terrífica, queria tudo, menos ir para a via sinistra. Novo concílio: não se entregava qualquer encomenda e era o toca a sair de imediato daquele funesto país.
E foi assim que, depois de passarmos duas pontes e virarmos à esquerda, nos encontrámos de novo no caminho para Solingen, onde chegámos bem tarde nessa mesma noite, ajudados por um simpático casal de alemães acabadinho de sair dum pub, que teve a enorme pachorra de nos levar a Übenstrasse 14, que não ficava nem mais nem menos senão no ponto oposto daquele da nossa entrada na cidade. É que perdemos quase todas as saídas de autoestrada menos aquela, porque sempre que o navegador - a mãe - dizia que saíamos a seguir, surgia a indicação "Ausfahrt"... e como ninguém queria ir para a Áustria, íamos continuando em frente...
(Post inspirado nos últimos posts de viagens publicados)