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Delito de Opinião

Em viagem - Parte 1

Maria Dulce Fernandes, 14.12.19

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O pai já não está connosco há 25 anos. Partiu novo, deixando um vazio imenso que coisa alguma conseguiu preencher. Aventureiro carismático e muito castiço, era um gastrónomo de primeira água e apreciava um bom vinho. Adorava música, bons filmes, bons livros, praia, mulheres bonitas, a esposa, os filhos e as netas.

Vivi com ele a primeira grande aventura da minha vida num maravilhoso Setembro de 1970: um Volkswagen Variant com porta-bagagens em cima, uma tia sexagenária, uma miúda de 12 anos, um garoto de 8, a mãe, o bebé com 4 meses e o pai ao volante. As roupas e necessaires iam em cima, em grandes malas e o espaço traseiro do carro tinha sido transformado numa espécie de nurserie do menino: tinha caixas forradas a azul e etiquetadas com as roupas de bebé, as fraldas, os biberons, as papas, um fogão Campingaz e alguns apetrechos de cozinha, e uma alcofa, que porta-bebés ainda era praticamente um produto de ficção científica.

E então fomos estrada fora, depois duma preparação concisa através de mapas e trajectórias alternativas fornecidas pelos experts do ACP, rumo a Solingen, perto de Colónia, na Alemanha, onde morava a Line, a filha mais nova da tia Eugénia.

A primeira paragem foi em Talavera de la Reina, onde pernoitámos num simpático Hostal, gerido por um casal com uma caterva de filhos, todos alegres e salerosos, e onde o meu pai abriu a primeira garrafa da colheita especial ”para levar para a Alemanha”, que guardava zelosamente. Os hospedeiros eram de uma simpatia e amabilidade contagiantes, pondo de imediato ao dispor das senhoras a cozinha e outras facilidades necessárias para tratar das crianças. A ideia que me ficou dos espanhóis é a de pessoas afáveis, alegres e fantásticas, o que me leva a crer que a geração pós-franquista degenerou significativamente.

De Talavera de la Reina partimos para mais uma tirada até Zaragoza e depois até à Costa Brava, com paragem obrigatória em Barcelona - a Costa Brava é linda, grandiosa, magnífica - e atravessámos outra fronteira já na subida para os Pirenéus, para pernoitar em Perpignan, noutra pousada gerida por outro casal espectacular, onde pus pela primeira vez à prova os dotes linguísticos que adquiri num único ano de francês. A verdade é que me safei muito bem e a partir daí tomei-lhe o gosto.

Saídos de Perpignan, seguimos por uma via a que chamavam autoestrada – Uau !!! – e almoçámos num sítio totalmente práfrentex, chamado área de serviço. A caminho de Dijon, onde pernoitámos, pela primeira vez num hotel de luxo, atravessámos a pior tempestade eléctrica que vi na minha vida que culminou com uma chuva torrencial de proporções bíblicas. Foi uma noite aterradora e praticamente insone; nos breves minutos que conciliávamos o sono éramos despertados abruptamente por hordas de hunos gritantes, que nos bombardeavam sem cessar. Em concílio familiar ficou decidido que no dia seguinte era uma directa até Colónia e pronto, mas não sem antes passar no Luxemburgo para deixar uma encomenda que um amigo por lá emigrante nos tinha pedido para levar.

Depois das peripécias do costume, qual bando de ciganos chegámos à grandiosidade do Luxemburgo, que se atravessava nuns meros 20, 30 minutos. O pai estacionou numa bomba de gasolina, para atestar e pedir direcções. O funcionário que o atendeu ere jugoslavo e falava apenas  a sua língua e um mau italiano; tanto quanto o pai entendeu, tínhamos de atravessar duas pontes e virar na via sinistra. Transmitidas as indicações ipsis verbis, as palavras caíram que nem raios na população da Variant, que depois de uma noite terrífica, queria tudo, menos ir para a via sinistra. Novo concílio: não se entregava qualquer encomenda e era o toca a sair de imediato daquele funesto país.

E foi assim que, depois de passarmos duas pontes e virarmos à esquerda, nos encontrámos de novo no caminho para Solingen, onde chegámos bem tarde nessa mesma noite, ajudados por um simpático casal de alemães acabadinho de sair dum pub, que teve a enorme  pachorra de nos levar a Übenstrasse 14, que não ficava nem mais nem menos senão no ponto oposto daquele da nossa entrada na cidade. É que perdemos quase todas as saídas de autoestrada menos aquela, porque sempre que o navegador - a mãe - dizia que saíamos a seguir, surgia a indicação "Ausfahrt"... e como ninguém queria ir para a Áustria, íamos continuando em frente...

 

(Post inspirado nos últimos posts de viagens publicados)

Gabriela, eu e ela

Ana Cláudia Vicente, 11.09.12
O remake - que ainda não espreitei, mas soube ter começado ontem - leva-me a crer que talvez devesse ter chamado a este fiapo de memória em segunda mão Eu, a minha Mãe, a Gabriela e a enfermeira-parteira Andreia, declarada admiradora dela. A presente opção, mais módica, venceu - andamos em tempo de poupança. À época da 50ª edição brasileira do romance de Jorge Amado - 1975, ano da chegada do meu irmão mais velho à existência - decidiu a Globo seriar em horário nobre a história de uma certa nordestina chegada ao litoral em mudança. Por cá, dois anos depois, reza a lenda ter sido tanta a cegueira que até o termo das sessões parlamentares regulava pela emissão daquela. Disto não estou segura. Mas sei que se cumprem neste mês trinta cinco anos sobre o dia em que a senhora mãe desta que vos escreve entrou num hospital, já perto da hora de jantar. Após a admissão, em avançado trabalho de me trazer ao convívio da restante humanidade, da parteira de serviço ouviu, incrédula, a pronta intimação:
 - Vá, vamos lá, então! Não podemos demorar! A 'Gabriela' está quase a começar!

 

[Foto: Sónia Sônia Braga, circa 1975, intérprete original das adaptações televisiva (TVGlobo; Durst/Avancini/Blota) e cinematográfica (Bruno Barreto) da Gabriela (1958) de Jorge Amado]

Trânsito e nostalgia

João Carvalho, 12.01.11

Em 1913, a 5.ª Avenida já tinha um trânsito impressionante. O aspecto nostálgico desta Nova Iorque nos primórdios de Novecentos lembra Henry Ford, que revolucionou a indústria e popularizou os preços das máquinas loucas da época com o seu célebre modelo T, o primeiro automóvel produzido em série graças à concepção de uma linha de fabrico e montagem. «O cliente pode ter o carro da cor que quiser, desde que seja preto» — ironizava Ford, com o intuito de controlar o preço do carro reduzindo o supérfluo.

Um miúdo, um cavalo, um cão

Pedro Correia, 31.07.10

 

 

Da minha infância guardo calorosas recordações de uns livrinhos escritos por uma autora com um belo nome que jamais esqueci: Cécile Aubry. Esses livros narravam as aventuras de Poly, um pónei, e do seu dono, um miúdo que teria a minha idade à época. As aventuras de Poly, a par dos álbuns de banda desenhada, ajudaram-me ainda em criança a ler e amar a língua francesa - o que viria a ser reforçado com a adaptação dessas histórias a uma série televisiva que me prendia a atenção dado o meu gosto de sempre por animais. O próprio filho da autora interpretava esta e uma outra série - Belle e Sébastien, em que o pequeno cavalo dava lugar a um grande cão.

Nunca mais ouvi falar em Cécile Aubry. Até esta semana, quando soube da notícia da sua morte. Antes de se dedicar à literatura infantil, como autora de grande sucesso, tinha-se destacado como actriz em filmes como Manon, de Henri-Georges Clouzot, hoje um clássico do cinema francês, e A Rosa Negra, ao lado de Tyrone Power e Orson Welles. O rosto correspondia ao nome: era uma mulher muito atraente - como se comprova pelas capas da Life e da Paris Match aqui reproduzidas - que, no entanto, não se deixou enredar nas malhas do show business.

Escrevo estas linhas e sinto que estou a discorrer sobre tempos pré-históricos: Cécile Aubry é um nome oriundo de um mundo que deixou de ser o nosso. Um mundo muito mais simples, em que uma tarde de Verão podia ser preenchida a ler exemplares da revista Tintim, romances como O Príncipe e o Pobre, de Mark Twain, ou as narrativas desta mulher que abandonou o cinema para encantar a minha geração com histórias de miúdos e dos respectivos animais de companhia.

Histórias de um mundo ainda sem computadores que deixaram um rasto de ternura imune à erosão do tempo e à voracidade de todas as modas.

 

 

Coca-Cola e Nostalgia

João Carvalho, 23.03.10

Mais uma excelente foto de Chicago dos finais do século XIX (circa 1895/1900). No quarteirão em frente, destacam-se dois prédios: o Great Nothern Hotel, a fazer a esquina virada para a objectiva, e um edifício de escritórios, ainda mais alto. A volumetria variada dos quarteirões compensa os edifícios mais elevados, equilibrando o conjunto.

No ambiente nostálgico da imagem, uma particularidade curiosa é que, numa das lojas comerciais que estão nessa mesma esquina (a que está sem toldo, virada para a rua principal, por baixo do nome do  hotel), há um letreiro que se considera ser o primeiro anúncio da Coca-Cola em espaço público.

Luxo e nostalgia

João Carvalho, 02.03.10

Esta foto, que ronda o ano de 1926, foi tirada em Washington, D.C. (where else?) e tem todos os ingredientes de luxo da época. O lugar não parece sugestivo, mas é o lugar do estabelecimento do concessionário da marca do carro. O resto está à vista: o Cadillac de 1926, o rico proprietário do Cadillac em pose de rico-proprietário-do-Cadillac e o motorista "de cor" ao volante com o "lulu" da patroa ao colo. A patroa? Ora, é a mulher do capitalista e foi só ali à loja de alta costura em frente comprar um chapéu de plumas.

Pode não ser uma bela paisagem urbana, mas – não sei se concordam – tem o seu quê de nostálgico.

Crime e nostalgia

João Carvalho, 18.02.10

I — Chicago e o gangster

Esta excelente fotografia data de 1 de Setembro de 1900. É uma Chicago com o seu quê de nostálgico (junto ao cruzamento da Avenida Wabash com a Rua Adams, para quem conhece).

Nessa altura, Alphonse Gabriel Capone – Al Capone – ainda andava ao colo: não tinha completado dois anos e morava com os pais na sua Brooklyn natal.

Mais tarde, já em Chicago, Al Capone viria a estabelecer o seu 'quartel-general' no Lexington Hotel (aqui fotografado no início dos anos 90), então mais conhecido como o "castelo de Capone". Infelizmente, o edifício foi demolido em 1995.

Al Capone foi alvo de diversos gangs rivais, um dos quais 'limpou' a sua tropa de guarda-costas e não acabou com ele por pouco, em 1926. Reforçada a sua segurança pessoal, Al decidiu ter um carro blindado e com vidros e pneus à prova de bala. A escolha recaiu num Cadillac 341A Town Sedan, de 1928, o qual seria penhorado pela Fazenda Pública quando ele foi preso por fuga aos impostos e diversas irregularidades, três ou quatro anos mais tarde.

Esse automóvel ia entrar para a História dos EUA.

 

II — Roosevelt e o Cadillac

Tinham passado cerca de dez anos e Al Capone acabava de ser transferido para Alcatraz.

No dia 7 de Dezembro de 1941, poucas horas depois do ataque a Pearl Harbor, os serviços secretos norte-americanos sentiam-se impotentes perante o sarilho em que acabavam de ser metidos: no dia seguinte, Franklin D. Roosevelt ia fazer ao Congresso o discurso de indignação perante a traiçoeira e mortal investida japonesa («a date which will live in infamy») e, embora o percurso entre a Casa Branca e o Capitólio fosse curto, os agentes não sabiam como transportar o presidente com a segurança máxima que era requerida.

A Casa Branca tinha uma limousine especialmente construída para o presidente, regularmente utilizada, mas não era à prova de bala e estava fora de alcance arranjar um carro blindado de um dia para o outro, menos ainda ao custo contido que o governo impusera para a compra das viaturas oficiais. O discurso estava marcado para o meio-dia e não restavam muitas horas. Foi quando um dos agentes teve a ideia: havia um Cadillac apreendido há uns anos que era blindado e à prova de bala, guardado num parque do Tesouro Nacional.

Pintado de verde e preto para se parecer com os carros da Polícia de Chicago à época, com uma sirene especial e luzes intermitentes escondidas no interior da grelha, levou um rádio-comunicador das forças policiais, foi todo limpo e passou a noite em testes para assegurar que tudo correria bem.

Correu tudo bem. Quando um repórter disse depois ao presidente de onde tinha saído o carro, Roosevelt comentou: «I hope Mr. Capone won’t mind.»

O histórico Cadillac de 1928 do famoso gangster continua de boa saúde e recomenda-se: foi vendido em leilão para integrar uma nova colecção ainda há menos de quatro anos.