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Delito de Opinião

Esta mania de mudar para pior

Pedro Correia, 09.08.24

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Mania tão nossa esta, muito nossa, de alterar os nomes às coisas. Como sucedeu com Uma Agulha no Palheiro, de Salinger, entretanto crismada com um título horrível, À Espera no Centeio. E com a já clássica Cabra-Cega de Roger Vailland, que passou a um insípido Jogo Curioso. Ou - pior ainda - com o magnífico O Monte dos Vendavais, de Emily Bronte, transformado, sucessivamente e estupidamente, em O Monte dos Ventos Uivantes, O Morro dos Ventos Uivantes, A Colina dos Vendavais e O Alto dos Vendavais.

Em data recente, A Metamorfose - clássica novela de Kafka, sempre conhecida por este título em português - passou a chamar-se A Transformação. Sintoma da acelerada compressão lexical em curso, que enxota para o lixo tudo quanto ficou para trás. Num tributo à ignorância, num insulto à inteligência.

Um dos mais célebres policiais de Agatha Christie, Ten Little Niggers (depois baptizado And Then There Were None) já mereceu entre nós títulos tão diversos como Convite para a Morte (Livros do Brasil e Círculo de Leitores), As Dez Figuras Negras (ASA) e No Início, eram Dez... (ASA). Neste último caso, espantosamente, a mesma editora imprimiu dois títulos diferentes da mesma obra em poucos anos, sempre com pior opção do que a versão portuguesa inicial, datada de 1948. 

Se fosse hoje, Citizen Kane, de Orson Welles, sairia para o circuito comercial crismado de Cidadão Kane, como reflexo mecânico do dogma da tradução literal: O Mundo a Seus Pés, o excelente nome que recebeu na estreia entre nós, seria banido. E Tudo o Vento Levou - título poético como poucos - passaria a Levad@ pelo Vento, em obediência à estrita versão original (Gone With the Wind) e às novas convenções de género neutro impostas pela correcção política.

Mania de mudar por mudar. E para pior.

Com mil milhões de mil macacos

Pedro Correia, 27.03.24

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Aqui há uns anos já tinha aparecido um sujeito com o meu nome na equipa de futebol do Benfica. Felizmente eclipsou-se sem demora.

Agora dizem-me que um tal Pedro Correia, pastor evangélico, iniciou ontem funções como deputado do Chega por Santarém.

Caramba, só me apetece praguejar como o Capitão Haddock: «Com mil milhões de mil macacos!» Para não dizer coisa pior.

Os nomes de reis e presidentes

Pedro Correia, 17.03.23

  

 

Ao longo de 770 anos da monarquia portuguesa, houve apenas 16 nomes no cargo supremo do Estado – 15 masculinos e um feminino.

Concretamente, sentaram-se no trono seis reis de nome Afonso, outros seis de nome João e cinco reis chamados Pedro. Nomes de monarcas foram também Sancho (dois reis), Dinis (um), Fernando (dois), Duarte (um), Manuel (dois), Henrique (um), Sebastião (um), Filipe (três), José (um), Miguel (um), Luís (um) e Carlos (um). Além de duas rainhas chamadas Maria, que ascenderam ao trono por morte ou abdicação de seus pais, D. José e D. Pedro IV.

A implantação da república, há cem anos, permitiu elevar à chefia do Estado alguns nomes próprios que seriam inimagináveis num monarca. Só a república nos deu TeófilosSidóniosBernardinosÓscaresHiginos e Américos. Só em república alguém chamado Aníbal atingiu o cume da pirâmide do Estado. E o mesmo pode dizer-se de Marcelo, que nunca foi nome de rei.

Mas o nome mais republicano, aparentemente, é António – único com que foram baptizados presidentes dos três ciclos republicanos ao longo deste quase século. Na I República houve António José de Almeida (1919-23), único presidente que completou o seu mandato durante os anos inaugurais do regime. No Estado Novo, pontificou o presidente António Óscar Fragoso Carmona (1926-51), o de mais longo mandato durante a ditadura. E no regime subsequente ao 25 de Abril de 1974 já vamos em três chefes do Estado com esse nome: António Sebastião Ribeiro de Spínola (1974), António dos Santos Ramalho Eanes (1976-86) e Aníbal António Cavaco Silva (2006-2016).

Curiosamente, sendo António um nome tão português, nunca houve um rei António, legalmente reconhecido como tal, embora D. António, prior do Crato, tenha chegado a ser proclamado monarca em 1580 por sectores do povo, inconformados – ao contrário das supostas elites – com a anexação a Espanha. Já Manuel é um nome comum a reis e presidentes: o primeiro Chefe do Estado em república foi Manuel de Arriaga (1911-15), o último da I República foi Manuel Teixeira Gomes (1923-25). E também tinha esse nome o primeiro líder do regime ditatorial – o marechal Manuel Gomes da Costa (1926).

 
  
 

Nenhum presidente português terá sofrido tanto no exercício do mandato como o almirante João de Canto e Castro. Não só porque ascendeu ao poder quando era ministro da Marinha, na sequência da trágica morte de Sidónio Pais, baleado na estação do Rossio, em Dezembro de 1918, mas também porque era monárquico. E viu-se forçado a reprimir a revolta monárquica de Janeiro de 1919, restabelecendo a legalidade republicana contra as suas convicções mais íntimas. O seu mandato durou dez meses. Morreu 15 anos depois, totalmente retirado da vida política.

No século XIV, Portugal esteve quase a ter uma rainha chamada Beatriz: era a filha única do rei D. Fernando, falecido em 1383. Mas as cortes de Coimbra negaram-lhe essa pretensão, entregando a coroa a uma nova dinastia, protagonizada pelo Mestre de Aviz, D. João I. Outros príncipes reais faleceram antes de chegar a reis: D. Afonso (seria o VI), filho de D. João II, em 1491; D. Teodósio, primogénito de D. João IV, em 1653; D. José (seria o II), filho de D. Maria I, em 1788; e D. Luís Filipe, filho de D. Carlos, em 1908.

Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1915), Bernardino Luís Machado Guimarães (1915-17; 1925-26), Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (1917-18), José Mendes Cabeçadas Júnior (1926), Francisco Higino Craveiro Lopes (1951-58), Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1958-74), Francisco da Costa Gomes (1974-76), Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1986-96) e Jorge Fernando Branco de Sampaio (1996-2006) foram os outros chefes do Estado republicanos, Acrescidos do actual titular, Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, cujo mandato teve início em 2016.

Nenhum Sancho, nenhum Dinis, nenhum Duarte. Nem Henrique, Filipe, Miguel ou Carlos. E sobretudo nem vestígio de Maria: até hoje não houve nenhuma mulher na chefia do Estado republicano.

Neste ponto a monarquia estava mais avançada.

 
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Imagens: D. Afonso Henriques (1); Manuel de Arriaga (2); D. Maria I (3); João Canto e Castro (4)

Os nomes e as coisas

Pedro Correia, 20.01.22

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No debate de segunda-feira na RTP, o moderador tratou quase todos os nove intervenientes pelo nome próprio. Esta recente forma de tratamento, como tantas outras modas, foi importada dos States. Tal como a tendência para dar nomes de pessoas a cães e gatos.

Lá entre a bimbalhada, todos se tratam pelo primeiro nome e até por diminutivos. Incluindo presidentes - daí ter havido o Jimmy (Jaiminho) Carter e o Bill (Gui) Clinton; agora há o Joe (Zé ou Zeca ou Zezé) Biden.

Há-de chegar o tempo em que, pela mesma lógica, o Francisco actual passa a Chico, a Catarina deriva para Cati, o Rui passa a denominar-se Ruca e o António encolhe para Tó. Só Jerónimo continuará a ser Jerónimo, honra lhe seja.

Nos programas televisivos de comentário e debate tornou-se também moda tratarem-se todos por tu, como se tivessem sido colegas da primária ou costumassem jantar juntos. É outra importação "amaricana", neste caso facilitada pelo facto de no idioma dos States o "you" servir para toda a segunda pessoa, do singular e do plural, haja ou não tratamento familiar.

Isto serve igualmente para a forma como os partidos comunicam connosco. Numa destas manhãs ouvi na rádio alguém de uma agremiação política intitulada Volt dizer-me: «Vota em nós.» E há por aí propaganda partidária de todo o género que insiste em tratar-me por tu. Como se eu fosse muito lá de casa.

Mas não os conheço de parte alguma.

Holandês, dos Países Baixos

Pedro Correia, 15.06.21

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Agora desatou tudo a escrever e a dizer "Países Baixos" - horrorosa expressão - para designar o que anteriormente se designava por Holanda. Duas palavras, somando 12 letras, em substituição de uma só com sete. 

A coisa foi tão célere que até o alegado "dicionário" Priberam se apressou a alterar a definição: agora Holanda não é nome de país, como sempre supusemos, mas mera "região dos Países Baixos" - além de "tecido fino de linho" e "papel espesso" (!).

Como sempre acontece, logo surgem os mais papistas que o papa: reescrevem a História normalizando pelo padrão actual tudo quanto ficou para trás. Como se lê neste texto da página oficial da UEFA, em que o Checoslováquia-Holanda, jogo de abertura do Europeu de 1976, é agora denominado "Checoslováquia-Países Baixos". Deixaram metade da cosmética retroactiva por fazer: se rebaptizaram a Holanda, deviam ter rebaptizado também a actual República Checa, mesmo quando não se designava assim, para mantar o critério.

Não tardará muito para que livros como A Holanda (1885), de Ramalho Ortigão, ou A Amante Holandesa (2003), de Rentes de Carvalho, sejam rebaptizados também, por imposição da novilíngua.

 

Não sei o que me deixa mais perplexo. Se esta mania tão contemporânea de complicar o que é simples e alterar o que vem de longe, se a repetição mecânica da novidade em piloto automático, com todos a evitarem parecer fora de moda.

Procuro no inefável Priberam se já inventaram gentílico alternativo ao tradicional holandês. Parece que não: nem rasto de "paisesbaixenses", "paisesbaixeses" ou "paisesbaixanos". Conclusão: deixou de dizer-se Holanda, mas continua a haver holandeses - e nada mais que holandeses - nos denominados Países Baixos.

Avisem-me, por favor, quando a coisa mudar de novo.

Não conseguiram melhor que isto?

Pedro Correia, 19.08.20

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Há muito que me espanto com a absoluta falta de talento revelada pelos nossos compatriotas quando decidem atribuir nomes aos estabelecimentos comerciais. É como se a imaginação e o bom gosto entrassem subitamente em greve por tempo ilimitado. 

Eis um exemplo: o que levará alguém a dar um nome destes a um restaurante, situado numa das artérias mais movimentadas do centro de Lagos? Sou incapaz de vos dizer se é ou não poiso recomendável. Pelo mais óbvio dos motivos: passo à distância quando encontro um charco.

De Sidónio a Marcelo

Pedro Correia, 10.03.18

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«Precursor do que não sabemos,

Passado de um futuro a abrir.»

Fernando Pessoa, À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais

 

A monarquia tem uma indiscutível vantagem comparativa sobre a república no imaginário popular. As meninas e os meninos - de todas as idades - ainda hoje sonham com príncipes e princesas. O regime republicano tentou reconverter símbolos monárquicos ao inventar conceitos como "primeira dama" ou "primeiro cavalheiro", com insucesso generalizado. E, já agora, experimentem dizer a alguém de quem gostam muito: "Tu és para mim como a filha do presidente da república." A reacção será gélida ou de escárnio, compreensivelmente.

Esta vantagem existe a outro nível: um rei ou uma rainha são conhecidos, urbi et orbi, só pelo nome próprio. Sem necessidade de apelidos "legitimadores". E, em regra, nome de rei nunca deixa de estar na moda através dos séculos. Basta lembrar os nossos: do Afonso ao Luís, do João ao Duarte, da Maria ao Manuel. Digo-vos eu, que sou Pedro Miguel (ambos nomes de reis).

 

Mais de cem anos de república deram-nos dezanove chefes do Estado. Mas apenas dois conhecidos pelo nome próprio: o primeiro foi Sidónio, que não por acaso Fernando Pessoa crismou de Presidente-Rei, brevíssimo líder tombado às balas de um assassino, decorrerão em Dezembro de 2018 cem anos exactos; o segundo é o actual inquilino do Palácio de Belém.

Marcelo, apenas Marcelo. Para sempre Marcelo: assim falarão dele os futuros manuais de História.

Entrou ontem no terceiro ano do seu mandato. Que tem sido um mandato feliz, sempre próximo do comum dos portugueses, que o distinguem com a mais franca e calorosa das homenagens, tratando-o pelo primeiro nome.

Em nada diferente dos nossos reis de melhor memória.

Nomes

Sérgio de Almeida Correia, 07.08.17

Quem nasce não tem qualquer responsabilidade na escolha dos nomes que lhe são atribuídos pelos progenitores e que depois são levados ao registo civil. Tenho visto de tudo para desgosto de muitos, forçados a carregarem pela vida fora as ingratas escolhas. Mas há alguns que pela sua combinação e circunstâncias da vida não podem deixar de nos fazer sorrir. Não deve ser fácil um tipo ser diplomata de carreira e porta-voz de um departamento governamental de Negócios Estrangeiros e ter como nome "Robespierre Bolívar". Imagino as piadas que não devem ter feito com o nome da criatura.   

Nomes para quase todos os gostos

Pedro Correia, 05.10.16

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Ao longo de 770 anos da monarquia portuguesa, houve apenas 16 nomes no cargo supremo do Estado – 15 masculinos e um feminino. Concretamente, sentaram-se no trono seis reis de nome Afonso, outros seis de nome João e cinco reis chamados Pedro. Nomes de monarcas foram também Sancho (dois reis), Dinis (um), Fernando (dois), Duarte (um), Manuel (dois), Henrique (um), Sebastião (um), Filipe (três), José (um), Miguel (um), Luís (um) e Carlos (um). Além de duas rainhas chamadas Maria, que ascenderam ao trono por morte ou abdicação de seus pais, D. José e D. Pedro IV.

A implantação da república, faz hoje 106 anos, permitiu elevar à chefia do Estado alguns nomes próprios que seriam inimagináveis num monarca. Só a república nos deu Teófilos, Sidónios, Bernardinos, Óscares, Higinos e Américos. Só em república alguém chamado Aníbal atingiu o cume da pirâmide do Estado.
Mas o nome mais republicano, aparentemente, é António – único com que foram baptizados presidentes dos três ciclos republicanos ao longo deste século. Na I República houve António José de Almeida (1919-23), único presidente que completou o seu mandato durante os anos inaugurais do regime. No Estado Novo, pontificou o presidente António Óscar Fragoso Carmona (1926-51), o de mais longo mandato republicano. E no regime subsequente ao 25 de Abril de 1974 já vamos em três chefes do Estado com esse nome: António Sebastião Ribeiro de Spínola (1974), António dos Santos Ramalho Eanes (1976-86) e Aníbal António Cavaco Silva (2006-16).
Curiosamente, sendo António um nome tão português, nunca houve um rei António, legalmente reconhecido como tal, embora D. António, prior do Crato, tenha chegado a ser proclamado monarca em 1580 por sectores do povo, inconformados – ao contrário das supostas elites – com a anexação a Espanha. Já Manuel é um nome comum a reis e presidentes: o primeiro Chefe do Estado republicano foi Manuel de Arriaga (1911-15), o último da I República foi Manuel Teixeira Gomes (1923-25). E também tinha esse nome o primeiro líder do regime ditatorial – o marechal Manuel Gomes da Costa (1926).
 

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Nenhum presidente português terá sofrido tanto no exercício do mandato como o almirante João de Canto e Castro. Não só porque ascendeu ao poder quando era ministro da Marinha, na sequência da trágica morte de Sidónio Pais, baleado na estação do Rossio, em Lisboa, a 14 de Dezembro de 1918, mas também porque era monárquico. E viu-se forçado a reprimir a revolta monárquica de Janeiro de 1919, restabelecendo a legalidade republicana contra as suas convicções mais íntimas. O seu mandato durou dez meses. Morreu 15 anos depois, totalmente retirado da vida política.
No século XIV, Portugal esteve quase a ter uma rainha chamada Beatriz: era a filha única do rei D. Fernando, falecido em 1383. Mas as cortes de Coimbra negaram-lhe essa pretensão, entregando a coroa a uma nova dinastia, protagonizada pelo Mestre de Aviz, D. João I. Outros príncipes reais faleceram antes de chegar a reis: D. Afonso (seria o VI), filho de D. João II, em 1491; D. Teodósio, primogénito de D. João IV, em 1653; D. José (seria o II), filho de D. Maria I, em 1788; e D. Luís Filipe, filho de D. Carlos, em 1908.
Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1915), Bernardino Luís Machado Guimarães (1915-17; 1925-26), Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (1917-18), José Mendes Cabeçadas Júnior (1926), Francisco Higino Craveiro Lopes (1951-58), Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1958-74), Francisco da Costa Gomes (1974-76), Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1986-96) e Jorge Fernando Branco de Sampaio (1996-2006) foram os outros chefes do Estado republicanos. Há sete meses chegou ao Palácio de Belém Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa.
Nenhum Sancho, nenhum Dinis. Nem Henrique, Filipe, Miguel ou Carlos. E sobretudo nem vestígio de Maria: até hoje não houve nenhuma mulher na chefia do Estado republicano.
Neste ponto a monarquia estava mais avançada.
 
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Imagens: D. Afonso Henriques (1); Manuel de Arriaga (2); D. Maria I (3); João Canto e Castro (4)

Um presidente chamado Jimmy

Pedro Correia, 27.10.12

 

Estas coisas andam sempre ligadas. Talvez o início do fim do prestígio norte-americano no planeta tenha uma data exacta: 20 de Janeiro de 1977. Precisamente o dia em que tomou posse Jimmy Carter como 39º inquilino da Casa Branca (ou 38º, na versão do presidente Harry Truman, que nunca entendeu por que motivo um dos seus antecessores, Glover Cleveland, foi contabilizado a dobrar, por dois mandatos diferentes).

Jimmy quê? – perguntou muita gente, sem perceber muito bem como um antigo cultivador de amendoins da Geórgia chegava ao mais poderoso cargo político do globo terrestre. O problema era precisamente esse: ninguém podia levar a sério um presidente chamado Jimmy. Nada a ver com os aristocráticos nomes de baptismo de anteriores titulares da Casa Branca, como William McKinley, Woodrow Wilson, Warren Harding, Herbert Hoover. Nada a ver com o prestigiado Franklin Delano Roosevelt, cujo nome era todo um programa: sugeria um rasto de nobreza e autoridade natural, muito adequado à solenidade do cargo (impossível alguém chamar-lhe Frank).

 

Eram os tempos do disco sound e das calças à boca de sino: foi aí que os Estados Unidos começaram a vulgarizar-se irremediavelmente. Nunca mais foram respeitados como outrora tinha acontecido. Alguém como o ex-presidente Dwight David Eisenhower, o general que chegou à presidência depois de derrotar os nazis na Europa, haveria certamente de encarar com maus olhos este plebeísmo onomástico no nº 1600 da Avenida Pensilvânia, em Washington. Richard Nixon, que foi seu vice-presidente antes de concorrer ele próprio à presidência, era tratado na intimidade por Dick ('Tricky Dick', na carinhosa terminologia dos adversários). Mas ninguém sonharia nesses respeitáveis anos com um Dick Nixon na Casa Branca. 

Com Jimmy, tudo mudou. Depois dele ainda veio Ronald Reagan, um nome de presidente clássico, mas já o vice-presidente de George Bush (pai) era alguém simplesmente chamado Dan Quayle. E seguiu-se a presidência de Bill Clinton, que tinha como braço direito Al Gore. Nomes tão vulgares como o João dos Anzóis. E quase tudo em diminutivo de então para cá: o vice-presidente de George Bush (filho) era Dick Cheney – chegava enfim um Dick à administração americana. E o vice-presidente actual é Joe Biden. Alguém com um nome equivalente ao nosso Zé.

Já não estranhei, por isso, que nos obituários do irmão mais novo do presidente John Fitzgerald Kennedy, em Agosto de 2009, toda a gente chamasse Ted ao senador do Massachusetts que fora apresentado ao mundo, décadas antes, como Edward Kennedy. John, que ocupou a Casa Branca entre Janeiro de 1961 e Novembro de 1963, se vivesse hoje seria conhecido por Jack. Tu-cá tu-lá, sem qualquer espécie de apreço pelo nome de baptismo.

Ao menos Obama parece estar livre desta praga contemporânea de tratar os mais altos titulares de cargos públicos nos EUA por ridículos petits noms familiares, como se fossem colegiais. Mas só devido à singularidade do seu nome africano. Alguém imagina qual será o diminutivo de Barack?

 

O Reino Unido, como aliado preferencial de Washington, aderiu nos anos 90 à moda dos políticos com diminutivo nos nomes próprios. Aconteceu com Tony Blair, que assim dava a impressão de ser um indivíduo como qualquer outro nesses tempos em que a correcção política atingia o auge - algo que escandalizaria os vetustos primeiros-ministros britânicos Stanley Baldwin, Winston Churchilll, Clement Attlee, Harold MacMillan e James Callaghan. Entre nós, governava então António Guterres. Que, apesar de ser muito amigo de Blair, nunca fez questão de ser tratado por Toni. E muito bem.

A Portugal, felizmente, ainda não chegou a moda de tratar os políticos pelo diminutivo. Caso contrário teríamos por exemplo um ministro conhecido por Vitinho Gaspar, o líder parlamentar do PCP só responderia quando lhe chamassem Dino Soares e o titular do Palácio de Belém promulgaria diplomas com o nome nada austero de Ani Cavaco Silva. De momento, esta praga parece longe dos nossos hábitos. Mas não nos iludamos: também há-de cá chegar, como todas as outras modas que têm sido importadas dos States. Já começo até a ouvir com alguma insistência alusões a um tal de Tó Zé, secretário-geral do Partido Socialista...

O som dos nomes antes de os saber escrever

Rui Rocha, 30.12.11

Não sei se também vos aconteceu... No meu caso, antes de aprender a ler, os nomes de algumas pessoas soavam de maneira bem diferente daquela que vim a descobrir ser a forma correcta de os escrever. Por exemplo, para mim, Zeca Afonso era Zé Cafonso. Lembro-me também do Omar Xerife (na minha imaginação de menino, naturalmente, um herói do velho oeste) ou do Igreja Isqueiro (Igrejas Caeiro). A maior desilusão foi todavia o Sam Peque em Paz. O nome real de Sam Peckinpah não lhe servia nem para moço de recados.

Chamar os monstros pelos nomes verdadeiros

Rui Rocha, 28.07.11

O nome é um bem intrínseco de todos os seres humanos. Constitui um suporte de identidade social e subjectiva, um instrumento de afirmação de individualidade e um referencial  do amor próprio de cada um. Mas, deve ser também um elemento central da responsabilização pelos actos que merecem censura. Isto é, todos temos direito a ter um nome. E à protecção jurídica do bom nome. Mas, importa ainda que se concretize um direito (ou um dever, se quisermos) do e ao mau nome. Uma das características das personalidades transtornadas é o comportamento fantasioso. E, muitas vezes, a fantasia organiza-se a partir do nome. Um borra-botas tresloucado chamado Francisco Leitão não passa disso mesmo. O mesmo borra-botas sob o nome de fantasia de Rei Ghob tem o potencial de destruição de um monstro. Por isso, parece-me completamente deslocado que, no tratamento mediático dos crimes imputados a Francisco Leitão, se faça invariavelmente referência ao nome de fantasia - Rei Ghob - e não ao nome verdadeiro. Não me parece que os meios de comunicação devam fazer eco da fantasia destruidora congeminda pelo monstro, até para não estimular a vertigem da desgraça de outros que andam por aí prontos para cerregar no gatilho. Se, como tudo indica, Francisco Leitão cometeu os crimes de que é acusado, é simultaneamente um dever e um direito imputar a culpa que lhe couber ao seu (mau) nome verdadeiro. E se, por acaso, for inocente, é ainda ao seu (bom) nome verdadeiro, e só a esse, que é devida protecção.