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Delito de Opinião

Regresso à noite

Sérgio de Almeida Correia, 30.05.23

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Enquanto lá fora, no resto do hemisfério norte, se caminha para o solstício de Verão, ficando os dias mais longos e luminosos, hoje começa aqui a noite mais longa. Ninguém sabe quando acabará, nem como. É o regresso à solidão e à escuridão. O importante agora é falar baixinho; sempre que possível manter o silêncio. Viver tranquilo e em plenitude é um risco que ninguém quererá correr para cumprir a lei.

Sombras na noite

Maria Dulce Fernandes, 06.07.22

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Canta o galo no toque do telefone que me desperta de um passeio de charrete conduzida por um cocheiro escuro que resfolgava ruidosamente uma névoa esverdeada e  chicoteava incessantemente uma pileca esquelética, de grandes olhos apavorados, obrigando-a a arrastar penosamente o engatado por uma rua de basaltos irregulares e esburacados em gigantescas poças de água, que reflectiam um luar pálido e frio. Nunca cheguei a saber o destino da viagem. É o mal dos sonhos, serem levianos,  boémios e inconstantes,  tantas as vezes que chegam e partem sem hora nem memória.

O elevador fede a fumo de cigarro. Mais um que acredita na imortalidade e procura introspectivamente respostas reconfortantes, quando tudo o que encontrará é um bofe negro e quase petrificado de apostemas.

Está frio e a luz dos candeeiros projecta sombras ilusórias e assustadoras. Os meus passos ecoam a tropéis de muitos cascos e eu rio, rio para afastar o medo que me invade, medo da noite, medo das sombras... o medo. O medo é poderoso ou paralisa-te ou desvela-te uma força desconhecida e rara que faz de ti um ser superior. Sem tempo para escolhas existenciais, acelerei arvoada para o autocarro parado,  que tinha dentro um punhado  pessoas tristes e frias, embrulhadas, amarfanhadas e sonolentas que, como eu, esperavam poder chegar ao seu destino ao mesmo tempo que o sol.

À noite

Maria Dulce Fernandes, 07.07.19

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Gosto da noite.

O silêncio que traz consigo é um bálsamo para ouvidos transbordantes de barulhos, de vozes, de gritos.
Gosto da noite.
A noite faz-me leve e dissimulada, quase ubíqua, materializando-me aqui e ali como uma assombração por entre perplexas exclamações de susto.
Gosto da noite.
No xadrez da minha guerra, num tabuleiro sem Rei nem Rainha, à noite, eu sou o Bispo, sou o Cavalo, sou a Torre, sou também peão, porque afinal quem não é o peão do destino que traça, escravo do seu livre arbítrio, servo das suas vontades?
Gosto da noite.
Os rumores de arrulho dos pássaros nocturnos, os suaves bater de asas, os sussurros das folhas nos ramos das árvores, brandos, murmurantes, arrepiantes.
Gosto da noite
As cores que a cor da noite confere ao colorido, tão incolor, tão monocromático, tão cheio de promessas de descobertas, de dramas, de paixões.
Gosto da noite
A noite deixa-me ser eu, despida de regras e de juízos, em paz com a eterna luta que travo com o meu intimo na qual nenhum dos contendores sairá vitorioso.
Gosto da noite.
O negrume liberta o meu lado mais escuro e deixa a besta sair, sentir o cheiro do breu, sentir a frescura do chão e realizar que afinal é uma quimera urbana, dócil e gasta pelo tempo que passou.