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Delito de Opinião

O Museu da Inocência

Paulo Sousa, 05.01.24

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A partir de uma recomendação ouvida num podcast e no seguimento de alguma curiosidade anterior sobre o Nobel turco Orhan Pamuk, dei por mim com o “Museu da Inocência” nas mãos.

Confesso que logo após o arranque do livro me questionei se a história não se estaria a tornar demasiado obsessiva, melancólica e irremediável. No entanto o ritmo da narrativa e as descrições da classe rica, e menos rica, de Istambul dos anos 70, e também alguma curiosidade de como é que aquilo poderia terminar, levou a que insistisse na leitura.

Não quero estragar a boa surpresa de quem não conhece a obra e por isso serei económico nos detalhes, mas, como ocorre apenas depois da leitura de alguns livros, não pude deixar de ficar impressionado com o super-poder que alguns romancistas têm ao conseguirem criar um universo denso, cheio de detalhes tão credíveis que nos levam a acreditar que tudo aquilo poderia ser real. As particularidades que aproximam a história à realidade resultam da forma como o romancista transporta a sua vivência para dentro da sua obra, o que nesta caso acaba por acontecer de uma forma literal. Como quem faz um cozinhado, o autor mistura aquilo que já viu, viveu e sentiu, com ingredientes criados pela sua imaginação. É como se quem escreve fosse um alambique que destila a sua realidade, sendo que quem se dispõe a contar uma história o faz de uma forma única e irrepetível, moldando o produto final com se de uma impressão digital se tratasse.

Como já senti noutras vezes, terminei o livro com vontade de realizar uma viagem, desta vez a Istambul de onde tenho boas recordações, mas que numa próxima oportunidade me obrigará a circular pelo tradicional bairro de Çukurcuma e a visitar o chão pisado pela bela Füsum e pelo seu obsessivo amante Kemal Bey.

Recomendo a leitura.

Cobardia física e miopia moral

Pedro Correia, 07.10.23

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Salman Rushdie fotografado por Murdo Macleod

 

Como era óbvio, mais um ano transcorrido, Salman Rushdie não foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura. Nem o será. O Comité Nobel está infectado há muito tempo pelos vírus da cobardia física e da miopia moral. Se dois tradutores foram assassinados por terem ousado verter os Versículos Satânicos para outros idiomas, mais ameaçados ficariam os membros do aludido comité se prestassem justiça a um escritor que já merece o galardão desde 1981, quando publicou esse extraordinário romance que é Os Filhos da Meia-Noite

Como premiar um autor que caminha há décadas sob o fio da navalha, condenado à morte pelos inquisidores islâmicos e alvo de um miserável atentado em Agosto de 2022 que o deixou cego de um olho? Ninguém se atreverá a tanto. Sem desconsiderar Jon Fosse, o norueguês distinguido este ano, a sua reiterada omissão da lista de galardoados acaba por enobrecer o romancista britânico nascido em Bombaim -- «o sobrevivente», como acertadamente lhe chamou a revista Le Point.

Está muito bem acompanhado nesta vergonhosa omissão, integrando um longo cortejo dos melhores do século XX, de Joyce a Borges, de Ibsen a Kafka, de Tolstoi a Orwell, de Malraux a Virginia Woolf. Todos superaram o maior dos desafios: o decurso do tempo. «Se conseguir passar no teste de mais uma ou duas gerações, poderá perdurar», escreveu Rushdie, precisamente n'Os Filhos da Meia-Noite, a propósito de outro assunto. Os prémios passam, os júris eclipsam-se, a obra fica.

Os cobardes

Pedro Correia, 14.09.23

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Notável peça jornalística da revista Le Point desta semana: entrevista exclusiva com Salman Rushdie. O grande escritor está de volta após ter sido quase assassinado a 22 de Agosto de 2022, em Nova Iorque, por um extremista islâmico armado com um cutelo. Em 27 segundos levou 15 naifadas, sobreviveu quase por milagre. Mas não saiu ileso: ficou cego do olho direito, como a fotografia de capa documenta.

Felizmente Rushdie é daqueles que não desistem. Aos 76 anos, tem outro livro já ao encontro dos seus numerosos leitores: A Cidade da Vitória, romance histórico, ambientado na Índia do século XIV, mas obviamente com a intenção de retratar os dias de hoje. «Este mundo imaginário fala do nosso mundo real, o que sempre acontece com os romances, a pretexto da ficção», assinala na entrevista.

Testemunho desassombrado: nem seria de esperar outra coisa dele. Arrasa os dogmas da correcção política, critica sem rodeios a esquerda e a direita que ameaçam a liberdade de expressão com o mesmo ímpeto censório, afirma a necessidade de militarmos em defesa dos direitos fundamentais pois nenhum está garantido a título perpétuo - muito longe disso. «Quando se trata da democracia, não estamos num salão de chá, temos de nos bater por ela.»

Perseguido, injuriado, ameaçado, alvo de tentativas de homicídio pelo criminoso regime de Teerão desde a publicação dos Versículos Satânicos, em 1988, ele não se verga. Evidenciando coragem física e moral. Em contraste absoluto com os cobardes membros do júri do Prémio Nobel da Literatura - que ano após ano o ignoram. Quando bastaria esse fabuloso romance intitulado Os Filhos da Meia-Noite, de 1981, para lhe valer este galardão que já distinguiu tanto autor medíocre.

«De que necessita realmente um ser humano quando vem ao mundo? De ser alimentado, de estar em segurança, de ser amado se tiver possibilidade disso. Mas que pede ele aos pais quando já comeu e se sente aconchegado na cama? "Conta-me uma história..." Esta necessidade de histórias acompanha-nos desde a origem.» Sabe do que fala, este escritor que tanto admiro. Tem fibra de resistente. É um exemplo para todos nós.