Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Endireitar

Maria Dulce Fernandes, 24.10.23

20231024_065431.jpg

20231024_073350.jpg

Hábitos e rotinas adquiridas durante anos não mudam de um dia para o outro, nem numa semana, ou até num mês. Vencer o despertador foi sempre prenúncio de um dia bom e mesmo sem horários para cumprir o despertador biológico relembra todos os dias que está na hora. A partir das cinco da manhã o sono vai dormir e a cama torna-se desconfortável. Sai um café duplo, bem quente e sem açúcar enquanto vejo o céu pelas janelas, com a Estrela da Manhã a saudar a madrugada, uns quantos aviões a fazerem-se à pista e outros mais tarde a subir acima do sol.

Imersa em pensamentos, fico abalada sempre que o telefone interrompe as horas e o silêncio do despontar da alvorada. As primeiras palavras são tranquilizadoras. Depois oiço a voz combalida da Neta, que me pede se pode ficar comigo, que está com um torcicolo que lhe dói misérias e lhe incapacita os movimentos. Quem sabe até terá de ir ao hospital? “Nada disso, Neta. Ficas com os avós, que a avó trata o torcicolo como o Ferrador do Altinho tratou o meu e ficas boa num instante.” O que é o Ferrador do Altinho, Avó? O que é isso de Ferrador?” Antigamente, quando os agricultores abasteciam os comerciantes ou vendiam directamente nos mercados, alguns traziam os seus produtos em carroças puxadas por cavalos. Como sabes, os cavalos para poderem andar sem magoar as patas, têm de fazer uma “paticure” antes de lhes cravarem as ferraduras na parte dura das unhas para protegerem as patas. As pessoas que faziam este trabalho chamavam-se ferradores. Ora o Altinho é um local que fica entre Belém e Alcântara, ali desde o começo da Rua da Junqueira e sensivelmente até  à Cordoaria Nacional. Cerca da zona onde agora se acede à passagem superior que nos leva até ao Maat, funcionava a oficina do Ferrador, onde um senhor já velhote ferrava cavalos e nos tratava as mazelas. Naqueles tempos a osteopatia não era considerada de modo algum nem medicina nem alternativa, e a quem a praticava chamava-se lhe “endireita”.”Endireita? Porquê, avó?” Talvez porque as pessoas que lhe pediam ajuda entrassem tortas e saíssem direitas?” Rimos à ideia de uma qualquer magia prodigiosa que pusesse tudo direito. “Mas sabes, Neta, o velhinho largou o cavalo, limpou as mãos a uma toalha e veio ver o meu pescoço. Era um cenário um tanto tétrico, com pouca luz e o senhor meio enfarruscado olhou para mim sorridente e disse-me “dói muito, não é, menina? Olhe, vai comprar Togal, tomar com chá quente, esfregar a zona dorida com álcool quente e folhas de louro e depois envolver num pano de lã quente. Deite-se e descanse.” Segui o ‘tratamento’ à letra, e não é que umas horas depois tinham passado as dores e a imobilidade? “A sério, Avó? “A sério, e se quiseres trato-te do mesmo modo. "Quero sim, que preciso estar bem para ir à escola.”

E foi assim que um “ tratamento” com 50 anos resultou e “endireitou” o pescoço à Neta, assim como por magia. Quem a vê, não diz que tanto ela como a sua mãe passaram uma noite insone, extenuante e completamente ineficaz.

Conversas em família (7)

Maria Dulce Fernandes, 05.11.20

eua.jpeg

 

Avó, vamos brincar? Avó?! Presente! Estava a ver as notícias. Notícias de quê? Das eleições nos Estado Unidos. O que é eleições? E agora como é que se descalça esta bota? Chama-se eleição quando, neste caso por exemplo, as pessoas escolhem um chefe para mandar no país. Tu foste com os teus pais votar nas eleições do Presidente da República, lembras-te? Acho que não, Avó. Mas sabes quem é o Presidente da República? Sei. É um homem que tira selfies. Também, mas é assim a modos que quem manda no País. E tu estás a ver se um homem que tira selfies ganha nos Estados Unidos? O de lá não tira selfies, manda Tweets. E isso é o quê? Pois… olha, é uma maneira de se estar entretido com o telemóvel. Assim como os jogos ? Mais ou menos. É outro tipo de jogos, que nem por isso são importantes ou até interessantes. Jogos lúdicos, Avó? Eh lá, sorri, para ela, seguramente para ele são, neta. Avó, tu és quase presidenta! Estás sempre a tirar retratos e distraída a escrever no telefone e no tablet!

Conversas em família (5)

Maria Dulce Fernandes, 02.09.20

21894221_j0ZM5.jpeg

 

Estou, mãe? Diz. A tua neta quer falar contigo. Tem uma aventura para te contar. Ah sim? Deve ser uma grande aventura, pois se saiu daqui faz pouco tempo, mas que venha de lá a aventura. Estou, avó? Então neta, conta lá as tuas façanhas. Não é azenhas, avó, é mesmo uma peripécia. Não consigo deixar de sorrir quando ela joga estes ases vocabulares. Estou à espera, podes começar. Então… conheces aquele parque ao pé da minha casa, aquele que tem muitos espaços com água? Conheço. Então,  hoje fomos até lá para distrair o mano e sentámo-nos na beira da água. A água estava morninha e eu disse à minha mãe que me apetecia mesmo dar um mergulho. Então comecei a borrifar o meu pai e cheguei mais para dentro para alcançar mais água. Silêncio. E então? Então, não sei como, splash! Caí dentro de água! Com a minha roupa e os meus sapatos e tudo. Não acredito! É verdade, avó. Tive que voltar para casa embrulhada naquele cobertor branco com um ursinho que costuma estar por baixo, no carro do mano. Que maluquice, neta! Isso é que foi uma aventura, mas só prova que foste pouco cuidadosa e que tens que ter mais atenção durante as brincadeiras. Estás enganada, avó. Prova é que os nossos desejos se podem realizar!
Pois é… será que ver o copo meio vazio é sinal de maturidade ou apenas pessimismo?

 

Foto de Paulo Oliveira retirada do Google

Conversas em família (4)

Maria Dulce Fernandes, 22.08.20

20200822_114145.jpg

 

Altura estava excelente. A praia, o sol, o bulício qb de veraneantes, os restaurantes a meia haste pela falta da clientela que não pode ou não quer arriscar as ameaças da pandemia…

Foram duas semanas de grande diversão, mas o regresso era inevitável e na viagem de volta a casa, as saudades em suspenso ressurgiram e juntamente com elas a perspectiva da diversão continuada dos últimos dias.

Estávamos todos ansiosos e sequiosos dos abraços e dos carinhos que não têm virus que os refreie.

E lá foram eles atrás dos gatos esquivos e medrosos, mais dados a mariquices de velhos do que a afagos de crianças. A Sally, talvez para mostrar o novo look pós tosquia de Verão, foi-se chegando e dignou-se ronronar e permitir umas festinhas, o que deixou a neta feliz e encorajada para a brincadeira. Foi uma tarde divertida aquela.

Avó, achas que posse levar a Sally emprestada, só por uns dias, comigo para a minha casa? Não acho boa ideia, neta, os gatos são muito territoriais e estes não estão habituados a outras casas. Não  iriam sentir-se felizes na tua casa. Iriam sentir a falta dos seus espaços, percebes? Não. Lá na minha casa também tem espaços. É verdade que tem, mas o Dean e a Sally, como muitos outros gatos, cresceram num espaço específico, que é esta casa e que eles consideram ser o seu território, ou seja o seu lugar pessoal. Sabes o que é o olfacto? É o cheiro? Isso. Os animais reconhecem-se pelo cheiro. É por isso que eles andam sempre a cheirar os rabos, avó? ( sorriso maroto) É sim. E também reconhecem pelo cheiro os seus lugares favoritos, camas, casa de banho, bebedouro, comedouro… As cadeiras, as costas dos sofá, as pernas do avô ( sorriso rasgado). Isso mesmo. Ora tu não tens nada disto lá em casa, por isso eles iriam sentir-se meio perdidos, tristes e com medo, percebes? Como tu, nos primeiros dias de férias quando à noite as sombras, diferentes das do teu quarto, te pareciam vampiros atrás da porta. Ah, mas isso foi no ano passado quando eu era pequenina. Pois sim (sorri) mas sabes que podes vir para cá sempre que quiseres e a gataria estará por aí para ires brincando com eles, não sabes? Sei. Sabes avó, acho que eu também sou capaz de conhecer o teu cheiro! Isso é porque tu és uma gatinha tola.

Conversas em família (2)

Maria Dulce Fernandes, 05.08.20

FB_IMG_1596577899380.jpg

 

Depois de alguma leitura e muitas séries de TV, o sentimento de inutilidade instalou-se-me pesadamente no espírito e no corpo . Quanto menos fazia, menos me apetecia fazer. Comer , surfar o sofá e ver a família no tablet… farniente começava a não fazer qualquer sentido.

A casa de brincar da neta deu o mote e a partir daí demos largas à imaginação; fizemos 50 postais, uns a raiar o kitsh, outros mais compostos, qualquer coisa de BD, caricatura Burtoniana, loucura canastrona, sei lá , quase um por dia, exceptuando aos fins de semana.

Foi muito engraçado. Muita gente riu e chorou a rir. Amigos, amigos de amigos, conhecidos e estranhos enviavam mensagens com sugestões no género de “ discos pedidos", muitos quadros eram exequíveis e realizados, outros nem por isso, mas a sua louca idealização foi motivo de muitas gargalhadas.

Eis-nos então chegados ao vigésimo sexto dia do mês de Maio de 2020, 71° dia de confinamento. Pela primeira vez desde que foi declarado o estado de calamidade iríamos ter a neta , a fã número um das nossas produções, a passar o fim de semana connosco e a ter uma participação especial- a actriz convidada - nos projectos.

Chegou. Estava excitadíssima e apesar de confidenciar que gostava mais de papeis femininos, acedeu a representar o meu guerreiro gaulês favorito.

Sabes avó, tenho receio de não fazer bem esse personagem. Eu nem sei quem é o Asterix! Anda lá então aprender um bocadinho, que um bom actor tem que conhecer bem quem vai representar.

Sentámo-nos com o último livro no colo. Então… o Asterix é um valente guerreiro de uma aldeia situada numa terra chamada Gália ( que agora se chama França, já ouviste falar de França. Já!). Ele e os outros habitantes protegem a aldeia e não deixam que os palermas malvados dos romanos os conquistem. O Asterix é um homem pequenino… Um homem pequenino? Sim, mais pequeno do que a maioria dos homens. Assim como o Mateus? Maior do que Mateus. O teu colega Mateus é um menino. Percebi-lhe alguma confusão. Por muito pequeno que um homem possa ser, é sempre enorme na perspetiva de uma criança de cinco anos. Então… o Asterix é um baixinho muito valente e forte e tem um grande amigo , que é o Obelix, o gordo comilão . Como o mano? Mais ou menos, ele é comilão, mas este é grande , forte e barrigudo. Consegue comer um javali inteiro com duas dentadas. Riu com gosto enquanto folheava o livro e fazia perguntas sobre os personagens conforme iam aparecendo. E depois há o Panoramix, o druida, que é uma espécie de mágico e que faz caldeirões com poção mágica para dar força aos aldeões e os tornar invencíveis. Quando souberes ler, havemos de ler todas as aventuras de Asterix, queres? Está bem! Resumindo , o Asterix é o gaulês mais importante de todos e és tu quem vai representá-lo. Achas que consegues? Acho! Então vamos lá.

Depois de um almoço ligeiro, começamos a preparar o set e a caracterização, alinhavou-se o guião, Acção! Depois fomos editar a foto com a bonecada que se impunha, enquanto a curiosidade esvoaçava à solta como um pé de vento doido e as perguntas choviam loucas como um aguaceiro tropical. Avó, fico tão estranha com o bigode e a peruca!

Olhava sorridente para a foto. Se calhar devia ter tomada poção mágica , avó. Estás óptima, neta! Olha, ajuda o avô a tirar a barba! Avô, quase que pareces o Pai Natal, mas sem presentes! Gostaste, neta? Gostei! Mas, sabes, avó, estou aqui a pensar que era muito engraçado fazermos o Per Pan e eu ser a Sininho. Também acho ; fazemos da próxima vez, está bem? A próxima vez pode ser amanhã? Amanhã? Mas a avó não preparou esse filme neta, nem sei se temos adereços. Vá lá, eu ajudo, vai ser tão divertido!

Como dizer que não?

Conversas em família (1)

Maria Dulce Fernandes, 01.08.20

21871871_1bRDS.jpeg

 

Primeiro veio a desilusão. A ideia acalentada da piscina na cozinha não era de todo exequível e fora substituída por dois borrifadores meios de água. Acatou e adaptou-se, com aquele dom tão cândido que os pequenos possuem, para lidar com as questões existenciais. Borrifo, portanto existo, é quase tão bom como chapinho, portanto existo, e ainda posso dar uma abada na avó.


E foi assim que começaram as hostilidades ao som do jingle do Intermarché. Entre risos, borrifos e escorregadelas passámos vinte minutos deliciosos e acabámos que nem uns pintos, cansadas mas satisfeitas. Roupa enxuta, waffles com agave e uma caneca de leite, bem enroscada e com um sorriso de orelha a orelha, pediu-me para ir buscar a lata velha e lhe contar as histórias dos retratos, principalmente aqueles em que eu estou em bebé ou criança novinha. Calculo-lhe o espanto e a confusão e sorrio, tentando explicar cada foto o mais descomplicado possível, de modo que lhe seja possível entender a evolução que resultou na pessoa  que ela conhece desde sempre, mas não se produziu do éter na forma em que hoje se apresenta. A avó, como todas as pessoas que conheces, já foi bebé. Mais pequenas do que o mano? Muitas delas sim! Ri-se divertida à ideia de eu, o avô, a mãe e o pai termos usado fraldas. Antigamente eram de pano. De pano!? Sim, fechavam-se à altura da barriga com alfinetes de ama e usavam-se com uma cuequinha de plástico por cima para conter os molhados. E depois, jogavam-se fora, os panos? Não! Sabes o que quer dizer descartável? É que se pode deitar fora? É isso mesmo. Mas antigamente não havia descartáveis. As garrafas devolviam-se, as latas lavavam-se e davam-se ao funileiro. Não havia sacos de plástico, por exemplo, a avó velhinha ia às compras com uma alcofa. De bebé? Não neta, de palha. Era a alcofa de ir à praça.


Tínhamos frigorífico, fogão, esquentador, televisão, telefone e aquecedores a gás. E mais nada.
Nada de máquinas de lavar, secar, microondas, computadores, tablets, telefones… sei lá.


Olha as fraldas, por exemplo, eram lavadas num tanque com sabão azul e branco ou sabão Clarim, que é meio amarelado. O que é um tanque? É para peixes? Também há tanques para peixes, mas estes eram tanques da roupa. Todas as casas tinham um tanque de cimento para lavar à mão, isto muito antes das máquinas de lavar. Enchia-se com água, punha-se lá a roupa, ensaboava-se e esfregava-se na “tábua" que neste caso era de pedra. E porque é que nas casas já não há tanques? Porque deixaram de ser funcionais e eram muito grandes e pesados.


Sabes, avó, tenho pena que já não tenhas um tanque em casa. Punha-se na cozinha, enchia-se com água e fazíamos uma mini-piscina. Havia de ser muito giro, havia.

 

Imagem do Google