Endireitar
Hábitos e rotinas adquiridas durante anos não mudam de um dia para o outro, nem numa semana, ou até num mês. Vencer o despertador foi sempre prenúncio de um dia bom e mesmo sem horários para cumprir o despertador biológico relembra todos os dias que está na hora. A partir das cinco da manhã o sono vai dormir e a cama torna-se desconfortável. Sai um café duplo, bem quente e sem açúcar enquanto vejo o céu pelas janelas, com a Estrela da Manhã a saudar a madrugada, uns quantos aviões a fazerem-se à pista e outros mais tarde a subir acima do sol.
Imersa em pensamentos, fico abalada sempre que o telefone interrompe as horas e o silêncio do despontar da alvorada. As primeiras palavras são tranquilizadoras. Depois oiço a voz combalida da Neta, que me pede se pode ficar comigo, que está com um torcicolo que lhe dói misérias e lhe incapacita os movimentos. Quem sabe até terá de ir ao hospital? “Nada disso, Neta. Ficas com os avós, que a avó trata o torcicolo como o Ferrador do Altinho tratou o meu e ficas boa num instante.” O que é o Ferrador do Altinho, Avó? O que é isso de Ferrador?” Antigamente, quando os agricultores abasteciam os comerciantes ou vendiam directamente nos mercados, alguns traziam os seus produtos em carroças puxadas por cavalos. Como sabes, os cavalos para poderem andar sem magoar as patas, têm de fazer uma “paticure” antes de lhes cravarem as ferraduras na parte dura das unhas para protegerem as patas. As pessoas que faziam este trabalho chamavam-se ferradores. Ora o Altinho é um local que fica entre Belém e Alcântara, ali desde o começo da Rua da Junqueira e sensivelmente até à Cordoaria Nacional. Cerca da zona onde agora se acede à passagem superior que nos leva até ao Maat, funcionava a oficina do Ferrador, onde um senhor já velhote ferrava cavalos e nos tratava as mazelas. Naqueles tempos a osteopatia não era considerada de modo algum nem medicina nem alternativa, e a quem a praticava chamava-se lhe “endireita”.”Endireita? Porquê, avó?” Talvez porque as pessoas que lhe pediam ajuda entrassem tortas e saíssem direitas?” Rimos à ideia de uma qualquer magia prodigiosa que pusesse tudo direito. “Mas sabes, Neta, o velhinho largou o cavalo, limpou as mãos a uma toalha e veio ver o meu pescoço. Era um cenário um tanto tétrico, com pouca luz e o senhor meio enfarruscado olhou para mim sorridente e disse-me “dói muito, não é, menina? Olhe, vai comprar Togal, tomar com chá quente, esfregar a zona dorida com álcool quente e folhas de louro e depois envolver num pano de lã quente. Deite-se e descanse.” Segui o ‘tratamento’ à letra, e não é que umas horas depois tinham passado as dores e a imobilidade? “A sério, Avó? “A sério, e se quiseres trato-te do mesmo modo. "Quero sim, que preciso estar bem para ir à escola.”
E foi assim que um “ tratamento” com 50 anos resultou e “endireitou” o pescoço à Neta, assim como por magia. Quem a vê, não diz que tanto ela como a sua mãe passaram uma noite insone, extenuante e completamente ineficaz.