Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

«Se há um judeu atrás da árvore, mata-o»

Pedro Correia, 19.10.23

estatuto_hamas.jpg

 

Dizei aos que não crêem: "Sereis, sem dúvida, derrotados e reunidos no Inferno. O vosso lugar de descanso será o mais terrível".»

Alcorão, 37: 171-173

 

Este 7 de Outubro será sempre conhecido como dia da infâmia em Israel. O dia da incursão de cerca de dois mil terroristas do Hamas em território israelita que provocou 1500 mortos e mais de três mil feridos, além de 300 pessoas de mais de 30 nacionalidades tomadas como "reféns". Ignora-se se ainda estarão vivas.

Ainda nem uma das vítimas tinha sido enterrada, já havia por cá quem relativizasse o massacre, invertendo o ónus da culpa, que terá sido das vítimas. Seguindo a lógica daquele juiz desembargador que absolveu o violador alegando que a jovem violada usava uma saia demasiado curta e, portanto, estava mesmo a pedi-las...

Para tal gente toda a barbárie, singular ou colectiva, assenta neste axioma que desafia a lógica mais elementar. Inocentar os criminosos, culpar as vítimas. Daí, no próprio dia 7, não ter faltado logo quem estabelecesse equivalência moral entre a Alemanha nazi e o Estado judaico. Qual o efeito prático de tudo isto? Branquear a página mais negra da história humana, que se traduziu no assassínio sistemático e meticuloso de seis milhões de pessoas às ordens de um estado totalitário, onde qualquer dissidência equivalia a morte.

 

Não faltou até, nesta linha de raciocínio cada vez mais alucinada, quem metesse Gaza e Auschwitz no mesmo saco. Omitindo, desde logo, toda a cartilha xenófoba e racista do Hamas - declaração de ódio visceral não apenas ao Estado de Israel mas ao conjunto do povo judeu. 

Esta cartilha está disponível na rede, para quem queira ficar elucidado.

Proclama coisas como estas:

«Não há solução para o problema palestino a não ser pela guerra santa. Iniciativas de paz, propostas e conferências internacionais são perda de tempo e uma farsa.»

«Os hipócritas não podem ser superiores aos crentes, e devem morrer em desgraça e aflição.»

«Os sionistas estiveram por detrás da I Guerra Mundial, por meio da qual obtiveram a destruição do Califado Islâmico, tiveram altos ganhos materiais, passaram a controlar numerosos recursos naturais, obtiveram a Declaração Balfour e criaram a Liga das Nações Unidas (assim no original), para poderem governar o mundo por meio dessa Organização. Estiveram, também, por detrás da II Guerra Mundial, através da qual juntaram um tremendo lucro com o comércio de materiais de guerra e abriram caminho para o estabelecimento do seu Estado.»

Destaco sobretudo esta: 

«A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: "Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venham e matem-no!"»

 

Ao menos não enganam ninguém: dizem exactamente o que pensam - se é que podemos chamar pensamento a isto.

Tal como fez Hitler há cem anos, quando publicou esse execrável panfleto antijudaico chamado Mein Kampf. Sabemos muito bem o que aconteceu depois.

Jamais se repetirá. Os judeus não voltarão a deixar que o inimigo os conduza ao matadouro. Tenha esse inimigo o rótulo que tiver, chame-se ele como se chamar.

Nazis, what nazis?

Maria Dulce Fernandes, 22.09.22

22362380_eVgTH.jpeg

E ainda dizem que a história não se repete...

 

"Última hora: o general Otto Von Stülpnagel, comandante da Administração Militar do III Reich na França ocupada, acaba de anunciar referendos em quatro das regiões invadidas.

Objetivo: saber se as populações que não morreram, não fugiram nem estão presas, aí residentes, querem ou não pertencer ao estado ocupante.

Palavras de Stülpnagel:

«Tudo se dará na maior transparência e com todas as garantias. Convidaremos como observadores membros de partidos irmãos, por exemplo o PCUS, com o qual celebrámos um pacto para a paz, há cerca de um ano».

Um comentador nazi independente analisou a proclamação, no seu microblog:

«Esperamos que vença a democracia e que o povo francês queira a partir de agora ser povo alemão, o que fará sem ser coagido e na paz que lhe asseguramos como nação civilizada e progressista».

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0Lk5zY3GwE61BZKf5sxtWuSHUiybvcfbS1J6v8s2zKnMHKiiYHNGu5JuAapnrs2FBl&id=1173083794

Tabaco, Putin e comunonazis

Pedro Correia, 22.06.22

12924749_clkW8.jpeg

Os comunonazis que por estes dias debitam a cartilha em louvor de Putinitler, o carniceiro do Kremlin, recordam-me aqueles médicos e "cientistas" que durante décadas fizeram a apologia das virtudes do tabaco, considerando-o não apenas inócuo como benéfico para a saúde.

Charlatães, cada qual a seu modo: «Chesterfield é o melhor para vocês, Putin é o melhor para vocês.»

Cúmplices morais da morte de milhares de inocentes. Alguns sem o mais leve remorso, ontem como hoje. O que os torna mais repugnantes ainda.

Livros que inspiram viagens (3)

Paulo Sousa, 05.01.20

Na sequência da rubrica anterior sobre livros que inspiram viagens, este poderia ter exactamente o título inverso. O livro que hoje vos falo, para quem o quiser ou conseguir ler até ao fim, desincentiva a viagem. Quem no seu perfeito juízo depois de ler Se isto é um homem de Primo Levi deseja visitar Auschwitz? Eu só li o livro depois da segunda visita.

Visitei este campo de extermínio a primeira vez em 1993 durante um InterRail. Dessa vez e ao contrário do que aconteceu há poucos meses atrás, não me precavi com uma carapaça de insensibilidade necessária para sair de lá a conseguir planear o dia seguinte. Não que o Holocausto nazi fosse em abstrato novidade para mim, mas em concreto pisar o mesmo chão do que os mais de um milhão de vitimas do ódio nazi acertou-me em cheio. Fiquei arrasado.

Não vale a pena repetir a ladainha habitual do maior crime contra a humanidade, ou do horror perante o que o homem é capaz de fazer ao homem ou ainda da privação absoluta da dignidade do ser humano. O que mais impressiona é o rigor e precisão com que tudo foi planeado, organizado, anotado e fotografado.

Registo de memória a imensidão de uma sala com o chão coberto com armações de óculos retirados aos prisioneiros, outra com fardos empilhados até ao tecto de cabelo que era vendido ao quilo para a industria têxtil ou ainda as várias centenas de metros de inúmeros corredores forrados com fotografias, tiradas em três ângulos, no registo meticuloso de cada vitima. Nesta segunda vez reparei nas fotos de duas gémeas, numeradas em sequência, que segundo o registo foram assassinadas com um mês e meio de diferença.

Primo Levi descreve-nos como com o frio, a fome e os espancamentos arbitrários lhe foi retirada a capacidade de se sentir um ser humano.

 

É homem quem mata, é homem quem faz ou sofre injustiças; não é homem quem, perdida qualquer vergonha, divide a cama com um cadáver. Quem esperou que o seu vizinho acabasse de morrer para lhe tirar um quarto de pão está, embora sem qualquer culpa própria, mais afastado do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais selvagem ou o sádico mais atroz.”

 

Apesar de todo o terror que encerra, Auschwitz deve ser visitado. Infelizmente não foi o último campo de extermínio da história, mas quantos mais de nós o visitarmos, mais distante estará o dia em que algo idêntico possa voltar a acontecer. E esse é o apelo de Primo Levi:

 

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos

(…)

Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos

Um salto para a escuridão

Pedro Correia, 28.11.19

5469442_yoMZI[1].jpg

 

No dia 31 de Janeiro de 1933, um jornal católico alemão resumiu tudo numa só frase: «Um salto para a escuridão.»

Com este título – que o futuro demonstraria ser correctíssimo, em sentido real e metafórico – classificava a chegada ao poder, na véspera, de Adolf Hitler.

A frase infelizmente profética é recordada na monumental biografia de Hitler redigida pelo historiador britânico Ian Kershaw, existente em português numa versão condensada de 849 páginas. A versão original está distribuída em dois volumes – Hitler, 1889-1936: Hubris e Hitler, 1936-1945: Nemesis, inicialmente publicados em 1998 e 2000, com um total de mais de 1450 páginas, acrescidas de outras 450 só com notas e bibliografia.

É «a biografia definitiva de Hitler», como assinalou o Los Angeles Times. Com razão.

 

500x500[4].jpg

O que mais impressiona, neste exame minucioso da tomada do poder por Hitler numa das nações culturalmente mais ricas da Europa, é o facto de ela ter ocorrido por vias estritamente legais, cumprindo as regras constitucionais estabelecidas na República de Weimar, implantada em 1919, logo após a Alemanha ter sido derrotada na I Guerra Mundial.

No final da década de 20, Berlim transformara-se numa das cidades mais dinâmicas e cosmopolitas do Velho Continente, albergando uma multidão de intelectuais e artistas que serviam de exemplo ao restante mundo civilizado. Mas tinha também uma das mais ineptas castas de dirigentes políticos de que há memória. As pequenas ambições, os ódios disseminados, as intensas rivalidades pessoais e a falta de sentido de Estado cruzaram-se, à esquerda e à direita, para abrir caminho à tropa de choque nazi que se propunha regenerar a Alemanha das humilhações impostas pelos vencedores da guerra na conferência de paz de Versalhes.

 

Neste quadro, que favorecia a tolerância perante todos os extremismos, Hitler singrou com o seu bando de arruaceiros até o poder lhe ser oferecido de bandeja a 30 de Janeiro de 1933, quando o idoso presidente Hindenburg lhe formalizou o convite para formar governo.

O Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães era então a força política mais representada num Parlamento profundamente dividido: obtivera 33,1% nas eleições de Novembro, quando os sociais-democratas conseguiram cerca de 20% e o Partido Comunista conquistou 16,9%. Os restantes votos foram partilhados por forças políticas do centro e da direita moderada, que viviam em permanente clima de contenda civil.

«Foi a cegueira da direita conservadora (...) que entregou o poder de uma nação soberana, que albergava toda a agressão reprimida de um gigante ferido, nas mãos do perigoso líder de um bando de arruaceiros políticos», assinala Kershaw.

 

5469452_OdFea[1].jpg

O primeiro Governo de Hitler era de coligação. Os nazis só tinham duas pastas ministeriais: a do Interior, confiada a Wilhelm Frick, e a da Prússia, a Hermann Göring – ambas decisivas por tutelarem as forças policiais. Mas nos Negócios Estrangeiros ficou Konstantin von Neurath, que transitara do Executivo anterior, e todas as pastas na área económica foram confiadas a políticos da direita conservadora tradicional, que tinha o seu líder, Von Papen, como vice-chanceler.

Estavam convencidos de que conseguiriam “moderar” Hitler. Foi uma perigosa ilusão.

Pouco depois do meio-dia de 30 de Janeiro, Hitler e o seu gabinete da "direita nacionalista" eram recebidos por Hindenburg, que lhes deu posse, limitando-se a proferir uma frase: «E agora, cavalheiros, em frente com Deus.»

A Alemanha mergulhava num longo pesadelo. Só despertou em 1945, transformada num mar de cinzas.

Sobre a votação que equipara o nazismo ao comunismo

Paulo Sousa, 19.11.19

O Parlamento Europeu aprovou recentemente a resolução sobre a importância da memória europeia para o futuro da Europa, por ocasião do 80º aniversário do início da Segunda Guerra Mundial.

Além de outros detalhes o documento dá enfoque i) aos massacres, ao genocídio, às deportações, aos crimes contra a humanidade e violações em massa dos direitos humanos perpetrados pelos regimes nazi e comunista, ii) ao facto de os crimes do regime nazi terem sido julgados e punidos nos julgamentos de Nuremberga e o mesmo nunca ter sido feito relativamente aos crimes do Estalinismo, iii) ao trágico passado da Europa que deve continuar a servir de inspiração moral e política.

O PS enquanto partido humanista e responsável membro do PSE votou favoravelmente o documento em Estrasburgo. Mas entretanto, quando o mesmo foi colocado à votação na Assembleia da República, mudou de posição. Estas incoerências estão incluídas nas demais que fazem de António Costa um político hábil. Em política a maleabilidade é uma habilidade. Já sabíamos isso há muito mas neste caso específico podemos avaliar mais um caso em que se consegue trocar princípios por fins. Sabemos que não quer irritar os seus ex-futuros parceiros. Para que algo idêntico fosse aprovado no nosso Parlamento foi necessário retirar a palavra comunismo do documento.

A expressiva votação do Parlamento Europeu de 535 contra 66, com 52 abstenções, foi possível com forte apoio dos deputados dos Estados Membros que pertenceram ao lado de lá da Cortina de Ferro. Eles conheceram os regimes nazi e comunista, sofreram os seus crimes contra a Humanidade e por eles foram privados da sua liberdade. Recordam-se disso e não terão duvidado em escolher de que lado queriam estar nesta simbólica tomada de posição.

Os comunistas estão convencidos que pelo combate que deram aos nazis acumularam karma points suficientes para os ilibar dos mais de 100 milhões vitimas que causaram. No fundo a tomada de posição do Parlamento Europeu anula exactamente esse argumento desrespeitoso da memória das suas próprias vítimas.

Sem nos surpreender, os comunistas tugas, e demais partidos radicais, irritaram-se com tudo isto.

Não podemos negar que o PCP dá um toque vintage ao espectro político português. Foices e martelos nos parlamentos europeus são uma antiguidade e em toda a Europa nenhuma loja de ferragens razoavelmente séria se arrisca a inclui-los na mesma família de produtos. Martelos estão nas ferramentas e as foices nas alfaias. Mistura-las na mesma prateleira ou corredor dá má fama à casa.

Pelo exotismo, o nosso PCP bem podia ser transformado em mais uma atração turística do nosso país. Um bocado como os golfinhos no Jardim Zoológico embora com menos cor e alegria.

Conhecendo a imensidão de crimes que foram cometidos pelos comunistas, e depois olhando para o nosso PCP a definhar, temos de acabar por ser portuguesmente condescendentes para com eles. Se tivessem cometido uma fracção dos crimes que motivaram a referida votação já teriam sido varridos da nossa vida política. Existem por puro conservadorismo dos seus eleitores o que não deixa de ter graça para um partido que se diz revolucionário.

Os nazis, esses esquerdalhos

João Pedro Pimenta, 06.04.19

Segundo Jair Bolsonaro, esse grande pensador político, o nazismo era de esquerda porque "tinha socialismo no nome". Pois tinha, provém do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. E a República Democrática Alemã e a República Popular Democrática da Coreia do Norte sempre foram modelos de democracia porque tinham "democrática" no nome. Se calhar vêm daí as dúvidas de Bernardino Soares sobre a Coreia do Norte. Vai-se a ver, Bolsonaro e Bernardino até têm ideias parecidas.

Mas há quem tenha ideias fixas. Muitos dos apoiantes desta tese continuam a defendê-la nas redes sociais, como Maria Vieira, actriz convertida em comentadora política, que aparentemente descobriu agora que nazi é abreviatura de nationalsozialismus (ou nem tanto, porque também diz que "os nacionais-socialistas depois ficaram nazis) e sente-se defraudada "pelos historiadores comunistas" que "andaram a passar a ideia de que o nazismo era de extrema-direita" (confirmar isto na página de Facebook da senhora).

Esta estranha ideia de rever a posição do nazismo no espectro político mostra bem como as massas hoje em dia se deixam arrastar pelas redes sociais e por demagogos, tanto os messiânicos como os de caixa de comentários. Houve uma discussão idêntica, há uns anos, entre José Rodrigues dos Santos, que jurava a pés juntos que o fascismo provinha do marxismo, e António Araújo (longe de ser marxista), que o contradisse com sólida argumentação. Ao menos aí houve polémica nos jornais; quase que me atrevo a dizer "como antigamente", só que sem os numerosos pontos de exclamação e a ameaça de bengaladas.

Mas só para dar uma pequena ajuda à ideia revisionista de que o nazismo era de esquerda e que o fascismo "era marxista", lembrei-me de um livro meio esquecido mas que ainda tenho num estante qualquer, o "Testamento Político de Mussolini" com prefácio de Alfredo Pimenta (não é meu parente, asseguro). Mais do que a herança da Duce, interessam aqui as palavras do historiador português fundador da Acção Realista, monárquico tradicionalista e com ideias próximas do Integralismo Lusitano. Pimenta eleva Mussolini aos píncaros, apesar de "não se considerar feixista" (podíamos usar o aportuguesamento do termo, como fazem os galegos), considera-o restaurador do império romano" como Hitler tinha restaurado "o império germânico" e Salazar "o império lusitano". Mussolini começou no socialismo, como se sabe, mas as suas convicções mudaram com os anos. Alfredo Pimenta, tal como António Sardinha, o ideólogo do Integralismo, também teve um percurso de extremos: começou no anarquismo, passou pelo republicanismo moderado e acabou na tradicionalismo anti-liberal e anti-democrata. É um bom exemplo de como há mudanças profundas em certos percursos políticos, e uma testemunha óbvia de que os compagnons de route dos fascistas por esta altura eram os tradicionalistas e não os marxistas e que o nacional-socialismo era uma doutrina da direita revolucionária e nunca da esquerda.

testamento.jpg

O equívoco Mário Machado

João Pedro Pimenta, 15.01.19

 

A famigerada entrevista de Mário Machado por Manuel Luís Goucha (isto dito assim seria digno de um jornal satírico), além de levantar celeuma pela qualidade do entrevistado, dividiu um pouco as hostes da micropolítica. Parece que pelo facto de alguma esquerda bramir contra a entrevista, alguma direita pespega com exemplos aparentemente equivalentes que tiveram honras de entrevistados ou até de colunistas, como Camilo Mortágua, Isabel do Carmo ou Otelo Saraiva de Carvalho. Nuno Melo, cabeça de lista pelo CDS às europeias, por exemplo, é um dos que caem nessa armadilha, mais digna de conversas de rede social. É que tirando talvez Otelo, pela sua ligação às tenebrosas FP-25, é difícil equiparar Machado a qualquer um dos outros, e muito menos a Mariana Mortágua, que surge à baila. O equivalente directo seriam as redes bombistas dos anos setenta, também com crimes nas mãos, como o da morte do Padre Max (já depois do 25 de Novembro), cujos autores nunca foram punidos nem sequer condenados. Um dos prováveis autores morais, aliás, teve um elogio póstumo do mesmo Nuno Melo, o que talvez ajude a explicar o esquecimento.

A ver se nos entendemos: Mário Machado não é um político, nem representante de um sector político, tirando uma dúzia de neonazis. É um delinquente e um psicopata, preso por associação a grupos de criminosos e assassinos, posse de arma, ameaças, etc. Ultimamente tem arquitectado planos para dirigir a Juve Leo, depois da bela operação criminosa que as cúpulas da claque sportinguista protagonizaram, e de uma facção de motards, Los Bandidos, não exactamente conhecidos por actos de beneficência. Talvez a indignação de alguma esquerda por lhe darem a palavra, desde que não lance mensagens de ódio, seja contraproducente e oportunista. Mas a defesa, ou pelo menos a ausência de crítica de alguma direita, fazendo equiparações abusivas, dá a impressão de que tolera Machado, ou que não se incomoda grandemente com ele, passando a ideia de que ele é o radical do "seu lado". Dar importância política a quem tem somente importância criminal, eis o profundo erro dos que recordam eventuais equivalências do outro espectro.

Mas há ainda outra aspecto esta história toda que me deixa espantado: é a pergunta "acha que faz falta um novo Salazar", e sobretudo que Mário Machado ache que sim, É que com o currículo de desordeiro que tem, o mais provável é que no tempo de Salazar ele fosse posto na masmorra ainda mais anos.

Imagem relacionada

Ensaiando uma explicação serena sobre uma confusão recorrente

Tiago Mota Saraiva, 17.11.15

Depois de vário comentadores do Delito colocarem nas caixas de comentários as suas certezas sobre a equiparação do comunismo ao nazismo/fascismo, José António Abreu também o fez aqui. De uma forma serena e sem ser preciso um tratado diria que, para comparar, nos devemos entender sobre o terreno da comparação.
Se optarmos por fazer a comparação pelo número de mortes causados, suponho que o capitalismo também entrará a jogo e vencerá de uma forma avassaladora, por isso não pode ser. Se o fizermos pelas suas expressões práticas e qualidades das respectivas democracias - recordando que nenhum país no mundo alguma vez se declarou como um estado comunista - também creio que é de difícil comparação até porque nenhum estado nazi/fascista pretendeu ter práticas democráticas e, mais uma vez, temos de colocar na equação muitos estados-exemplo das práticas do capitalismo. 
Assim sendo, creio que o único campo em que podemos colocar esta comparação é do ponto de vista teórico-ideológico. Nesse campo, o nazismo/fascismo é uma ideologia que não perfilha a libertação do homem, mas a vitória perante outros. Mais, o comunismo foi, ao longo da história, quem mais combateu (e continua a combater) o nazismo/fascismo para que pessoas como eu ou o José António Abreu possamos, em liberdade, escrever no mesmo blogue o que bem entendermos.

Sorrisos de comunista

José António Abreu, 16.11.15

Confesso uma incapacidade antiga, que poderei talvez exprimir usando o primeiro texto publicado neste blogue por Tiago Mota Saraiva (intitulado, sem ponta de ironia, «aprender, aprender sempre»). Nele, Tiago declarou-se comunista. Afirmou depois, em resposta a um comentador segundo o qual agora só falta um nazi ao grupo de colaboradores do Delito, gostar de uma boa gargalhada mas o nazismo não lhe provocar sequer um sorriso. Entendo e partilho a segunda posição. Considerando a falta de liberdade, as perseguições políticas, os milhões de mortos do comunismo, não entendo a primeira – nem como compatibilizar ambas.

Das distorções literárias ou olhando para trás com olhos actuais

José António Abreu, 12.06.12

Max Aue quase me partiu o pulso após meia dúzia de páginas, facto que tomei como bom indicador da malevolência da criatura, mesmo forçada ao ambiente – que imagino abafado, seco, claustrofóbico – do interior de um livro. Por causa disso e de outras cobardias, a minha cópia de As Benevolentes encontra-se há cerca de quatro anos a arquear uma das prateleiras da estante, ainda por ler. Pelo que não posso sequer comentar o texto que vou apresentar de seguida. Mas, na sequência do post do José Navarro de Andrade, não resisto a colocá-lo aqui, em especial porque me parece poder representar bastante mais do que uma simples opinião em relação a As Benevolentes. E já sabem; se tiverem questões que exijam conhecer o livro, não falem comigo. Talvez o José Navarro vos possa ajudar. Ou então arrisquem os vossos próprios pulsos e leiam-no.

 

Li num fórum Internet a afirmação categórica de um leitor sobre a personagem de Littell: «Max Aue soa a verdadeiro porque é o espelho da sua época.» Nada disso. Soa verdadeiro (para certos leitores fáceis de enganar) porque é o espelho da nossa época: niilista e pós-moderna, para não dizer mais. Em nenhum momento é dito que essa personagem adere ao nazismo. Pelo contrário, ela assume um desprendimento por vezes crítico face à doutrina nacional-socialista, e nisso não se pode dizer que reflecte o fanatismo delirante que reinava na sua época. Em contrapartida, esse desprendimento exibido, esse ar indiferente de quem já passou por muito, esse mal-estar permanente, esse gosto pela argumentação filosófica, esse amoralismo assumido, esse sadismo amargo e essa terrível frustração sexual que o corrói… é claro!, como é que não percebi antes? De súbito começo a ver claro: Les Bienveillantes é «Houellebecq entre os nazis», pura e simplesmente.

Laurent Binet, HHhH.

Sextante Editora (2011), tradução de Manuela Torres.

Lviv

José Navarro de Andrade, 11.06.12

Não será prudente recomendar assim sem mais nem menos “Les Bienveillantes” (trad. pt: “As benevolentes”, D. Quixote). Escrito directamente em língua francesa pelo americano Jonathan Littell, será provavelmente um dos melhores romances do séc. XXI, foi decerto um dos mais controversos, e mesmo numa época em que predomina a sensação de já se ter visto tudo, a sua leitura é capaz de perturbar ou até traumatizar os espíritos menos prevenidos.

O horror que se desprende das páginas de “Les Bienveillantes” deriva não tanto das cenas cruas e brutais nele descritas, mas sobretudo do modo meticuloso e prático como Maximilien Aue, o fleumático, se não blasé, oficial das SS, desempenha o seu trabalho. Este consiste em expurgar os territórios conquistados pela Wehrmacht a leste do Reich de qualquer resquício de semitismo, de modo a prepará-los para a radiosa colonização germânica. O nosso Aue, cujas preocupações pouco ou nada divergem das de qualquer bom profissional, afigura-se como um executivo competente, contrariando o acomodamento burocrático de alguns camaradas e procurando sempre aperfeiçoar a sua performance. Dito de outro modo: Maximilien Aue dedica-se a exterminar dezenas de milhares de judeus maximizando as cotas, a eficácia e os custos da sua operação – sim ele podia ser qualquer um de nós.

A primeira missão de Aue passa-se em Lemberg, que em polaco teve o nome de Lwów, enquanto cidade russa chamava-se L’vov e agora que pertence à Ucrânia tomou o nome de Lviv. À chegada o Einsatzgruppe de Aue é recebido em festa, o povo saiu à rua com bandeiras amarelas e azuis, acolhendo os nazis como libertadores e aclamando o líder nacionalista Stefan Bandera. Aos festejos não falta um pogrom.

Seria ignóbil discutir qual é o instantâneo mais horrendo dos muitíssimos horrores que se praticaram na II Grande Guerra. Este é dos que mais me impressionam e foi recolhido no pogrom de 1941 em Lviv.

É possível imaginar que a mulher da fotografia, menos de uma semana antes, não passasse de uma recatada matrona pequeno-burguesa, conservadora, mãe ou tia numa família de artesãos e lojistas, que levava a sua vida com pudor e discrição. E de repente, por ser judia, vê-se assim exposta e em pânico, fugindo seminua e sem destino rua abaixo, perseguida por um bando de rapazes na mais pura reinação, que de vez em quando lhe ferram uma paulada, para que ela não pare de correr aos tropeções e só para gozarem o seu desespero. A humilhação é um castigo mais desumano do que a morte.

Não sei se depois da Guerra os alemães terão regressado a Lviv antes deste Euro 2012, onde no Sábado jogaram contra Portugal.

Uma cripta em Praga

José António Abreu, 05.06.12

 

Esperava um local maior. Espera-se sempre um local maior ou, pelo menos, diferente. Da mesma forma que Praga é demasiado bela, demasiado ampla e, acima de tudo, demasiado luminosa para ser a cidade de Joseph K., do Golem e das cabeças de líderes protestantes espetadas em estacas durante anos na Ponte Carlos, a cripta da Igreja Ortodoxa de S. Cirilo e S. Metódio é muito mais acanhada do que a leitura dos relatos me deixara antever. No entanto, apesar das flores e das velas e de algumas fotografias, não é menos impressionante por isso. Pelo contrário: as dimensões reduzidas fazem com que imaginar os acontecimentos daquela manhã de 18 de Junho de 1942 deixe uma marca ainda mais forte.

 

Reinhard Heydrich é o Reichsprotektor de Praga, nomeado por Hitler para eliminar a resistência e germanizar os checos. Heydrich prova ser o homem certo. Ameaça, persegue, deporta e mata mas, num acto de inteligência, não apenas os opositores declarados do regime; também todos aqueles que no mercado negro, dos agricultores aos distribuidores, dificultam a vida ao codadão comum. Escrevi-o num post anterior: Heydrich fascina-me. O cérebro de Himmler, como alguns alemães diziam (Himmlers Hirn heisst Heydrich, ou O Cérebro de Himmler é Heydrich, ou HHhH, título do livro de Laurent Binet que devo aconselhar novamente). Um dos organizadores da Noite de Cristal. O principal mentor da Solução Final. Um monstro. Mas também um executante do violino e um apreciador das artes que considera incultos muitos colegas do topo da hierarquia do Reich. No exílio em Londres, o presidente checo, Edvard Beneš, decide tentar matá-lo. Será um sinal para o Terceiro Reich e para o mundo, por parte da primeira nação espezinhada durante a Segunda Guerra Mundial (na verdade, ainda antes, em 1938). A operação recebe o nome de «Antropóide». Após um período de treino na Escócia, dois pára-quedistas, um checo (Jan Kubiš), outro eslovaco (Josef Gabčik), são lançados sobre território checo. Com eles, seguem outros homens, encarregados de operações de recolha de informação. Kubiš e Gabčik passam meses em Praga, escondidos em casas de família, preparando o ataque com o apoio de elementos locais da resistência e dos outros infiltrados. Executam-no a 27 de Maio de 1942. São dez e meia da manhã e Heydrich desloca-se do castelo nos arredores onde se instalou com a família para a cidade. (Sim, os monstros têm família, a quem muitas vezes são dedicados – Heydrich gosta de brincar com os filhos; o que não têm é consciência de que são monstros ou não a suficiente para que ela se sobreponha ao prazer de utilizar o poder conseguido.) Numa curva da rua Holešovičkách (hoje completamente diferente), Kubiš e Gabčik atacam. Mas a metralhadora Sten de Gabčik encrava. É então que o motorista de Heydrich comete um erro (o outro, mais grave, da responsabilidade do próprio Heydrich – deixará Hitler extremamente irritado mas é sintomático de quão invulnerável ele se devia sentir ou de quão impotentes considerava os checos , é não existir escolta) e, em vez de acelerar e desaparecer dali, trava, decidido a lutar. Kubiš usa uma bomba artesanal que, apesar de mal apontada, fere o Reichsprotektor. Os dois pára-quedistas fogem, sem saber se conseguiram. Conseguiram. Apesar dos esforços dos alemães, Heydrich morrerá a 4 de Junho, no hospital. Por essa altura, o inferno já se mudou para Praga.

 

E a propósito do inferno, antes de chegarmos aqui, à igreja e à cripta: quando é que um acto deste género é lícito e não terrorismo? Aceitamo-lo e glorificamo-lo por ocorrer durante uma guerra e ser cometido pelo lado justo (e neste caso é fácil; quase todos aceitamos o mesmo lado como sendo o justo) ou por Heydrich ser um monstro? Talvez mais importante: quando é que um acto destes vale a pena? Na sequência do atentado, os nazis mataram, torturaram e deportaram centenas de pessoas. Seguindo uma suspeita infundada, arrasaram a aldeia de Lidice, a noroeste de Praga (173 homens entre os quinze e os oitenta e quatro anos foram fuzilados de imediato, 26 foram mortos mais tarde em Praga, 88 crianças foram gaseadas em Chelmno, na Polónia, e 53 mulheres morreram em vários campos de concentração). Todos as pessoas envolvidas na preparação do atentado, ainda que de forma circunstancial, foram mortas (incluindo, evidentemente, os clérigos da igreja de São Cirilo e São Metódio e as familias que esconderam os pára-quedistas). No outro prato da balança, o atentado abanou de facto a confiança do Terceiro Reich, mostrou que a ocupação da República Checa estava longe de ser pacífica e, mais importante, o massacre de Lidice provocou reacções de horror a nível internacional, expondo o regime nazi como de facto era: brutal. Ainda assim: valeu a pena?

 

Seja a resposta qual for (e creio que, para uma tal questão, só pode haver respostas individuais), Kubiš e Gabčik merecem a nossa homenagem. O acto custou-lhes a vida mas os nazis quase falharam nos esforços para os encontrarem. Com outros cinco elementos infiltrados (Josef Valčik, Jan Hruby, Jaroslav Švarc, Josef Bublík e Adolf Opálka; falta um e isso revelar-se-á crucial), Kubiš e Gabčik estão escondidos na igreja de São Cirilo e São Metódio, no número nove da rua Resslova. Hoje, é uma rua larga, movimentada, com semáforos e passadeiras para peões, que vai dar ao rio e ao famoso edifício de vidro, metal e betão conhecido por Casa Dançante ou Ginger e Fred. Na época, teria a mesma largura mas desconheço se existiam semáforos; quanto a Ginger e Fred, só existiam os verdadeiros, fazendo filmes em que acontecimentos deste género não têm lugar. Os nazis revistam casas mas, estranhamente, não igrejas. Prometem uma recompensa a quem der informações que permitam a captura dos homens que mataram Heydrich e garantem uma bala a quem, tendo-as, não as forneça. Passam-se dias e ninguém avança. Os nazis percebem que o medo das consequências assusta os possíveis denunciantes e, a 13 de Junho, jogam uma última cartada: apesar do tempo que decorreu, quem avançar terá o dinheiro e total imunidade. Mas a oferta só dura cinco dias. Trata-se de um acto de desespero que pode correr mal: se nos cinco dias não acontecer uma denúncia, certamente já não acontecerá. É então que o elemento em falta (chama-se Karel Čurda e será julgado e executado depois da guerra) entra na sede da Gestapo e, em troca de vinte milhões de coroas, denuncia Kubiš e Gabčik. Ele não sabe o sítio exacto onde eles se encontram mas conhece muitos contactos, incluindo pessoas que os acolheram. É o suficiente. A prisão e a tortura fazem o resto. Às duas da manhã de 18 de Junho, a igreja é cercada por oitocentos soldados. Às quatro e um quarto, o assalto começa.

 

É esta cripta. Acanhada, escura, fria, bruta. Mas não morrem aqui os sete. Kubiš, Bublík e Opálka morrem lá em cima, na nave, depois de resistirem a partir da galeria até às sete da manhã. Só depois os nazis se apercebem da existência dos restantes. Gabčik, Valčik, Hruby e Švarc aguentam cinco horas, aqui em baixo. Os nazis não conseguem descer (os soldados que, cumprindo ordens, procuram fazê-lo são recebidos com tiros nas pernas) e revelam-se estranhamente ineficazes na resolução do problema. Resolvem inundar a cripta através da seteira que dá para a rua e, ao mesmo tempo, lançar granadas lacrimogénias cá para dentro. Mas os métodos têm efeitos contraproducentes (a água no chão diminui o efeito das granadas permitindo que seja possível atirá-las de volta para a rua) e os sitiados conseguem, com uma escada de mão, ir empurrando a mangueira da água. Entretanto, vão escavando na parede, tentando atingir uma qualquer conduta subterrânea que passe sob a rua Resslova (a seteira, ou respiradouro, ou o que lhe quiserem chamar, está aqui, a uns dois metros e meio de altura, e o buraco na parede também, quase por baixo, desviado para a direita). Finalmente, por volta do meio dia, tudo acaba: na nave da igreja, os nazis rebentam uma laje e abrem outro acesso à cripta. Gabčik, Valčik, Hruby e Švarc percebem que o jogo acabou e suicidam-se.

 

É sábado, 2 de Junho, e apercebo-me de repente que foi há setenta anos. Há setenta anos, Heydrich estava a morrer no hospital e homens condenados ocupavam esta cripta. Sinto-me indisposto, aqui dentro, como turista, máquina fotográfica na mão. Mas provavelmente é a única reacção adequada.

(Os retratos são de Kubiš e Gabčik, tal como aparecem nos painéis informativos existentes na igreja. As fotos da cripta são actuais, tiradas por mim. Os dados foram recolhidos do folheto oficial, comprado no local, do livro HHhH, de Laurent Binet, e da internet.)

Um salto para a escuridão

Pedro Correia, 26.11.09

 

No dia 31 de Janeiro de 1933, um jornal católico alemão resumiu tudo numa só frase: “Um salto para a escuridão.” Com este título – que o futuro demonstraria ser correctíssimo, em sentido real e metafórico – classificava a chegada ao poder, na véspera, de Adolf Hitler.
A frase infelizmente profética é recordada na monumental biografia de Hitler redigida pelo historiador britânico Ian Kershaw e agora editada em português numa versão condensada de 849 páginas. A versão original está distribuída em dois volumes – Hitler, 1889-1936: Hubris e Hitler, 1936-1945: Nemesis, inicialmente publicados em 1998 e 2000, com um total de mais de 1450 páginas, acrescidas de outras 450 só com notas e bibliografia. É “a biografia definitiva de Hitler”, como assinalou o Los Angeles Times, com razão.


O que mais impressiona, neste exame minucioso da tomada do poder por Hitler numa das nações culturalmente mais ricas da Europa, é o facto de ela ter ocorrido por vias estritamente legais, cumprindo as regras constitucionais estabelecidas na República de Weimar, implantada em 1919, logo após a Alemanha ter sido derrotada na I Guerra Mundial. No final da década de 20, Berlim transformara-se numa das cidades mais dinâmicas e cosmopolitas do Velho Continente, albergando uma multidão de intelectuais e artistas que serviam de exemplo ao restante mundo civilizado. Mas tinha também uma das mais ineptas castas de dirigentes políticos de que há memória. As pequenas ambições, os ódios disseminados, as intensas rivalidades pessoais e a falta de sentido de Estado cruzaram-se, à esquerda e à direita, para abrir caminho à tropa de choque nazi que se propunha regenerar a Alemanha das humilhações impostas pelos vencedores da guerra na conferência de paz de Versalhes.

Neste quadro, que favorecia a tolerância perante todos os extremismos, Hitler singrou com o seu bando de arruaceiros até o poder lhe ser oferecido de bandeja a 30 de Janeiro de 1933, quando o idoso presidente Hindenburg lhe formalizou o convite para formar governo. O Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães era então a força política mais representada num Parlamento profundamente dividido: obtivera 33,1% nas eleições de Novembro, quando os sociais-democratas conseguiram cerca de 20% e o Partido Comunista conquistou 16,9%. Os restantes votos foram partilhados por forças políticas do centro e da direita moderada, que viviam em permanente clima de contenda civil. “Foi a cegueira da direita conservadora (...) que entregou o poder de uma nação soberana, que albergava toda a agressão reprimida de um gigante ferido, nas mãos do perigoso líder de um bando de arruaceiros políticos”, assinala Kershaw.

 

O primeiro Governo de Hitler era de coligação. Os nazis só tinham duas pastas ministeriais: a do Interior, confiada a Wilhelm Frick, e a da Prússia a Hermann Göring – ambas decisivas por tutelarem as forças policiais. Mas nos Negócios Estrangeiros ficou Konstantin von Neurath, que transitara do Executivo anterior, e todas as pastas na área económica foram confiadas a políticos da direita conservadora tradicional, que tinha o seu líder, Von Papen, como vice-chanceler. Estavam convencidos de que conseguiriam “moderar” Hitler. Foi uma perigosa ilusão.

Pouco depois do meio-dia de 30 de Janeiro, Hitler e o seu gabinete da ‘direita nacionalista’ eram recebidos por Hindenburg, que lhes deu posse, limitando-se a proferir uma frase: “E agora, cavalheiros, em frente com Deus.” A Alemanha mergulhava num longo pesadelo. Só despertou em 1945, transformada num mar de cinzas.

 

Hitler, de Ian Kershaw (Dom Quixote, 2009). 849 páginas.

Classificação: * * * * *

Co-conspiradores

Jorge Assunção, 18.04.09

Ainda a propósito deste meu post e sobre a excelente literatura (não necessariamente alemã) que se vai produzindo nos dias que correm sobre o regime Nazi, recomendo este artigo muito interessante na The Atlantic. Neste, Benjamin Schwarz faz referência às mais recentes obras literárias sobre o holocausto. A mensagem central destas últimas análises históricas é que a maioria do povo alemão tinha conhecimento da "solução final para a questão judaica" adoptada pelo regime nazi e esse conhecimento era propositadamente fomentado pelo regime como forma de associar todo o povo aos crimes perpetrados pelos seus líderes. O objectivo era levar os alemães a empenharem-se ainda mais na guerra com receio do julgamento a que seriam certamente submetidos em caso de derrota. Como Shwartz tão bem conclui, The Final Solution had given the Germans no way forward but Armageddon.

Quando um juiz se torna criminoso

Pedro Correia, 16.03.09

A máxima degradação de um regime verifica-se no seu sistema judicial: a corrupção de juízes, ao sabor de conveniências políticas, viola a relação de confiança entre os cidadãos e o Estado. Foi pelos vergonhosos processos de Moscovo, que permitiram a Estaline decapitar a estrutura dirigente do Partido Comunista responsável pela revolução de 1917, que o Estado soviético revelou a sua verdadeira natureza, de cariz totalitário. Fenómeno simétrico ocorreu na Alemanha hitleriana, que pôs os tribunais ao serviço do Partido Nacional-Socialista e fez cada magistrado vergar-se à vontade do Führer. Nenhum indivíduo simbolizou tanto a perversão do poder judicial submetido ao domínio nazi como o juiz Roland Freisler (1893-1945), que presidiu ao Tribunal ‘Popular’ reunido em Agosto de 1944 para julgar os implicados na Operação Valquíria, destinada a assassinar Hitler. O principal implicado, o coronel Claus von Stauffenberg, fora fuzilado em Berlim, na noite de 20 de Julho, horas após ter sido confirmado o malogro do atentado, recriado no filme Valquíria, agora em exibição, com Tom Cruise como protagonista.

 
O assassínio de Hitler teria poupado a vida a cerca de dois milhões de alemães. A 20 de Julho de 1944, quando Von Stauffenberg (na foto) tentou executar o Führer, a Alemanha havia sofrido 2,8 milhões de baixas em cinco anos de guerra. Dez meses depois, ao terminar o segundo conflito mundial em solo europeu, o número de vítimas quase duplicara: 4,8 milhões de mortos alemães. Ao ser fuzilado na própria noite do atentado, este coronel de 37 anos que era leitor compulsivo de Goethe e Rilke tornava-se num dos mais célebres mártires do nazismo. “Monumental como o bronze”, como lhe chamava há dias Joaquín Tamames no diário El Mundo.
As actas do julgamento, transcritas pelo historiador britânico Ian Kershaw no seu livro Sorte do Diabo (edição portuguesa da Livros d’Hoje, 2009), confirmam que Freisler era um mero executante da vontade de Hitler. E um executor: havia a certeza, desde o primeiro minuto, de que os réus não escapariam à pena capital.
 
Hitler chamava a Freisler “o nosso Vijinski”, comparando-o ao procurador soviético que foi marioneta de Estaline nos processos de Moscovo. Curiosamente, este fanático nazi viera da esquerda liberal. Renegando as suas origens ideológicas, tornou-se o mais demencial juiz do III Reich, indigno de vestir a toga. “Sob a sua presidência, o número de sentenças de morte proferidas pelo Tribunal tinha subido de 102 em 1941 para 2097 em 1944”, lembra Kershaw.
Durante os interrogatórios, Frisler (na foto) fez proselitismo político e humilhou os réus: a sua atitude, perpetuada em registos filmados nesse julgamento, foi um insulto à justiça. A um dos réus, o conde Schwanenfeld, gritou-lhe: “Você não é mais que um monte de miséria!”
Nem isso acobardou os conjurados. Mal foi pronunciada a sentença de morte, um deles, o general Fellgiebel, afirmou: “Apresse-se com o enforcamento; doutro modo, será enforcado antes de mim.” E o marechal Witzleben gritou: “Pode entregar-nos ao carrasco. Daqui a dois ou três meses, o povo irado e atormentado pedir-lhe-á contas e arrastá-lo-á vivo pelo lixo da rua.”
Palavras quase premonitórias: Freisler morreu seis meses depois, num raide aéreo. Quando o regime de Hitler chegava também ao fim.