«O reino de Deus está dentro de nós.»
Lucas XVII, 21
Foi uma das mais fecundas viagens da literatura portuguesa. As sete semanas da jornada de José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) ao Egipto e à Terra Santa entre Outubro e Dezembro de 1869, a pretexto da inauguração do Canal do Suez, serviram de inspiração ao escritor até ao fim da sua vida demasiado breve. De lá o jovem jurista trouxe três cadernos de bolso e uma grossa pasta com tiras de papel almaço cheias de notas que jamais o abandonariam.
Teve a noção imediata do impacto que aquela digressão produziria na sua obra. E assim o confessaria anos depois, em alusão polvilhada de ironia, pela boca de uma das suas mais inconfundíveis criações literárias, Teodorico Raposo: «Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira.»
Não se enganava. A viagem por terras do Oriente, como assinalou o seu biógrafo João Gaspar Simões, libertou-o do «metaforismo visionário dos folhetins» ao introduzi-lo nas virtudes da observação e da anotação. Proporcionando-lhe material para o que viria a ser um livro póstumo (O Egipto), um dos seus mais corrosivos e admiráveis romances (A Relíquia), diversas crónicas jornalísticas e aquele que figura entre os melhores contos escritos no nosso idioma: O Suave Milagre.
Com esta história (definição que Eça sempre preferiu à de conto), Jesus Cristo irrompe como inesperada personagem na literatura portuguesa.
Vasco Graça Moura não duvidou em classificá-la de «grande realização» no seu prefácio à antologia As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal (Quetzal, 3.ª edição, 2016). Num sentido metafórico, podemos na verdade inseri-la entre as prosas de recorte natalício, aliás com ampla tradição na nossa literatura. Mas O Suave Milagre, na brevidade das suas dez páginas, tem um alcance mais vasto: é uma pequena obra-prima sobre a inspiração da fé impregnada no recôndito da alma humana.
A acção, iniciada no pretérito mais-que-perfeito para acentuar a aura simbólica, decorre na época em que Cristo peregrinava pela Galileia, convertendo multidões à sua passagem. Aqui Eça recorre às paisagens visuais que lhe ficaram impressas na memória, transformando-as em matéria literária. Em 1869 o futuro romancista deambulara por Jerusalém, escutara missa no Santo Sepulcro, visitara o rio Jordão, o Monte das Oliveiras, as colinas de Judá, as ruínas do Templo, o Mar Morto. Numa espécie de rito iniciático que o sagraria como escritor – ali no centro da civilização do Livro. Logo a ele, que na juventude várias vezes se proclamou ateu militante.
O Suave Milagre teve três versões.
A primeira, surgida em 1885 e denominada Um Amável Milagre, integrou-se numa colectânea intitulada Um Feixe de Penas, organizada com intuitos de beneficência por Maria Amália Vaz de Carvalho.
A segunda, mais seca e resumida, imprimiu-se em 1897 sob o título Um Milagre na edição inaugural de uma tal Revista Cor de Rosa.
No ano seguinte seria enfim divulgada a versão definitiva, na Revista Moderna, magazine editado em Paris, onde Eça desempenhava as funções de cônsul. É claramente a que tem uma escrita mais apurada, fruto do perfeccionismo constante de um prosador sempre insatisfeito em questões formais.
Em livro só sairia no volume de Contos, lançado em 1902, numa edição póstuma.
«Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíade: — mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.»
É o sugestivo parágrafo inicial do conto, redigido segundo a toada dos textos evangélicos, com profusão de topónimos e antropónimos colhidos in loco, naquela viagem tão determinante para a vida e obra do autor.
Mas nem só o estilo bebe o exemplo dos Evangelhos: o mais determinante aqui é a intenção moral. Com uma assumida dicotomia entre os ricos e poderosos, que acumulam bens materiais mas são afinal impotentes no combate aos abismos da doença e da morte, e os pobres e despojados de bens materiais mas iluminados pela luz da fé.
Entre os primeiros figura o velho Obed, «senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas — e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo». Um «vento de desolação» arrasara-lhe as terras de cultivo e os pastos para o gado, e em consequência ele «ruminava queixumes contra Deus». Ao ouvir falar do rabi que fazia milagres na Galileia, imaginou-o como um feiticeiro capaz de lhe restituir a sorte e enviou uns servos com «cinturões de oiro» no seu encalço.
Em vão.
Figura também o centurião romano Publius Septimus, comandante do forte implantado no vale da Cesareia, «homem áspero», veterano de mil guerras que «enriquecera durante a revolta da Samaria com presas e saques». Adoecera-lhe a filha e ele despachou três centúrias de soldados às suas ordens para lhe acharem aquele rabi de que todos falavam, convicto de que o favoreceria com o seu «superior feitiço».
Também em vão: ninguém encontrou Jesus.
Cristo aparecerá, sim, mas ao mais humilde dos humildes: um menino entrevado, residente num casebre com a pobre mãe, que mais não tinha senão umas ervas secas para lhe mitigar a fome. Ao contrário do rico proprietário e do poderoso centurião, ele nada pede, nada exige, nada reclama: diz apenas à mãe que gostaria de «ver Jesus».
Querer ver sem duvidar do invisível: eis a expressão mais pura da crença despida de artifícios ou disfarces. Este menino sem nome, arquétipo universal de uma fé capaz de mover montanhas, será recompensado. Tal como a samaritana pecadora que deu de beber a Cristo no poço de Jacob. Ou como Inger, a mulher ressuscitada na sequência de uma prece do “tontinho” Johannes Borgen numa cena crucial d’ A Palavra, de Carl Dreyer – um dos mais belos filmes da história do cinema, estreado 70 anos após a publicação d' O Suave Milagre na sua versão inicial.
Jesus, personagem literária, profere neste conto apenas duas palavras: «Aqui estou.» É quanto basta enquanto essência da mensagem cristã – tanto mais divina quanto mais humana, tanto mais humana quanto mais divina.
Eis Eça, o ateu incerto que se ajoelhou por atávico impulso religioso no Santo Sepulcro, a reconduzir-nos ao espírito mais genuíno do cristianismo: aquele que depura o dom da fé, libertando-o do ilusório poder material, da ostentação postiça, do farisaísmo dos sepulcros caiados.
«Aqui estou.» História de Natal, sim. Deslumbrante revelação de todos os verdadeiros Natais.
Texto reeditado