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Delito de Opinião

Todos os que ouviram se admiraram do que lhes disseram

Pedro Correia, 24.12.23

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«Os pastores disseram uns aos outros: "Vamos, então, até Belém e vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer." Foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino, deitado na manjedoira. E, quando os viram, começaram a espalhar o que lhes tinham dito a respeito daquele Menino. Todos os que ouviram se admiraram do que lhes disseram os pastores.»
 
Lucas II, 15-18

Preparació per a la Nit de Nadal

Paulo Sousa, 23.12.23

Um dos meus sobrinhos já regressou à base e por isso fizemos um jantar de preparação para a Consoada. Está a trabalhar em Barcelona e de cada vez que regressa vem com a veia independentista mais inflamada, o que tem graça pois permite sempre que em cada regresso se pratique o saudável debate à volta de um tabuleiro de carne assada no forno e regada com um bom tinto. Ele, que anda ainda mais focado no desporto do que na visita anterior, depois de ter abandonado as colas, só bebe água. Não estive a controlar, mas acho que só bebeu água. No vinho sei bem que não tocou.

Diz que tem um amigo que lhe explicou que nos centros habitacionais à volta de Barcelona pouca gente fala castelhano e nas zonas rurais ainda menos. Depois de ter deixado de ser a língua materna no ensino oficial, as gerações mais novas deixaram mesmo cair o uso da língua de Cervantes. O castelhano é aliás a segunda língua do ensino oficial. Então, e inglês, perguntei-lhe. Respondeu-me com outra pergunta. Quem é que fala inglês em Espanha?

Acrescenta que as pessoas não se sentem espanholas e não se importam que a independência tenha custos económicos. Aceitam isso.

Perguntei-lhe qual a percentagem de catalães que não queria a independência. Disse-me que esses eram os pussy, estavam acomodados e preferiam o conforto à luta pela identidade.

Disse-lhe que a mudança do status quo ibérico tinha um enorme potencial de perturbação para o nosso país e que a União Europeia nunca iria aceitar como estado-membro algo que resultasse de uma secessão de um outro estado-membro. Insistiu em que os independentistas aceitam suportar essas perdas económicas. O custo das “futuras” forças armadas catalãs ainda foi assunto, mas já não teve seguimento.

Diz que já leu o “Homenagem à Catalunha” de Orwell, mas acabou por concluir que precisa de saber mais sobre a Guerra Civil de Espanha. Pois, disse-lhe, aí fala-se mais sobre os totalitarismos do que sobre a identidade catalã.

Combinamos pensar em mais alegações para continuarmos a conversa amanhã à noite. Já lhe tinha dito que, perante novos argumentos, adiar uma tomada de posição de modo a se poder pensar melhor no assunto, mostra, pelo menos, seriedade e mente aberta no debate.

Amanhã vou-lhe falar na “Ordem Mundial” e no “Diplomacia” de Kissinger, nas relações diplomáticas entre os estados e na norma da não aceitação de secessões como forma de manter a ordem, e ainda nos países e regimes que rejubilariam com uma Catalunha independente. Se, por entre o bacalhau e o peru, ainda tivermos tempo, vou recomendar-lhe ouvir a opinião de um catalão espanholista.

Aproveito a ocasião para desejar a todos os companheiros delituosos e a todos os leitores um Feliz Natal. Certamente, ainda voltaremos à conversa em 2023.

Livros: dez sugestões de Natal

Pedro Correia, 23.12.23

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A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (Tinta da China). Escreve com a elegante desenvoltura de muito poucos, utilizando a língua portuguesa com talento e requinte. O mineiro Ruy Castro, carioca do coração, ensina a escrever biografias. É algo que o leitor possa aprender? O irónico subtítulo "ciência e arte da biografia" basta para suscitar sérias dúvidas. Mas aqui o essencial é aquilo que o autor nos narra, a pretexto de revisitar os livros que foi publicando - com destaque para histórias ligadas às vidas de Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, João Gilberto e outros gigantes da cultura, do espectáculo e do desporto brasileiro. Mundo de algum modo nosso também.

 

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ABRIL EM NOVEMBRO, de Rui Salvada (Lisbon Press). Quase meio século depois, a Revolução dos Cravos lembrada por quem a fez. Exemplo de história com fontes directas, que participaram nos acontecimentos e ainda cá estão para nos contar. Com factos, não com mitos. Homens que foram à guerra e depois lhe puseram fim. Como o coronel Luís Oliveira Pimentel, em 1974 capitão de Infantaria: «O 25 de Abril teve dois grandes motivos, o primeiro foi a ultrapassagem dos oficiais do quadro permanente que ficavam ali parados (...) e o segundo foi o reforço da convicção de que fazer a guerra não levava a lado nenhum.» Também se fala do 11 de Março e do 25 de Novembro de 1975.

 

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O DEVER DE DESLUMBRAR, de Fillipa Martins (Contraponto). Em ano de centenário, Natália Correia (1923-1993) foi lembrada até na Assembleia da República, onde esteve como deputada - primeiro do PSD, depois do efémero PRD. Esta extensa biografia desvenda-nos muito sobre a vulcânica escritora açoriana que a seu modo, bem peculiar, lutou pela liberdade antes e depois de 1974. Filipa Martins já tinha recordado a autora de Não Percas a Rosa ao escrever o argumento da excelente série Três Mulheres, exibida na RTP. Aqui vai mais longe, evidenciando muito do brilho da biografada sem ocultar várias sombras de quem escreveu «Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»

 

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TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (Guerra & Paz). Um dos melhores livros publicados sobre a dita "cultura do cancelamento" que vem anulando a liberdade de expressão em muitos países europeus. Vaga iniciada nos EUA a pretexto de justas causas, como a do feminismo com marca #MeToo ou do anti-racismo após o homicídio do negro George Floyd por um polícia branco em Minneapolis. «Uma das principais armas das guerras culturais do século XXI é precisamente o cancelamento: a obliteração do interlocutor, a mordaça digital. Na realidade virtual, o linchamento é electrónico», alerta Paulo Nogueira, escritor e cronista brasileiro que viveu 25 anos em Portugal.

 

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PARA QUE SERVE O PCP?, de Adelino Cunha (Saída de Emergência). Prestes a sofrer talvez o seu pior resultado eleitoral de sempre, o Partido Comunista Português é aqui analisado por um historiador que se especializou nesta área e já publicou obras marcantes, como a biografia do injustiçado Júlio Fogaça, destituído por Álvaro Cunhal no comando do partido durante o salazarismo. Aqui se fala dos anos de fundação do PCP, desde as raízes anarco-sindicalistas à imposição do marxismo-leninisto - "bolchevização", para usar um vocábulo muito em uso naquela época. Com o primeiro secretário-geral (Carlos Rates) acabando a defender Salazar na União Nacional. Tempos que já não voltam.

 

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ANTES QUE ME ESQUEÇA, de Francisco Seixas da Costa (D. Quixote). Memórias de um embaixador que serviu Portugal em Nova Iorque, Brasília e Paris já no topo da carreira. Memórias originais, com base na escrita algo anárquica do blogue Duas ou Três Coisas, que por cá sempre acompanhámos com atenção. É de política que aqui se fala, com vasta gama de protagonistas, portugueses e estrangeiros. Viajamos aos mais diversos locais do globo - da Líbia ao Turquemenistão, sem nunca esquecer Angola. Com múltiplas notas do quotidiano entre 2009 e 2022, além de constantes alusões a décadas mais recuadas. Quase um diário, quase um romance, verdadeiramente inclassificável. Dá gosto ler.

 

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A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (Zigurate). Homicida contumaz, um dos maiores tiranos que o mundo já conheceu, Estaline era também leitor compulsivo. Tinha uma vasta biblioteca, cheia de livros de história e filosofia. Com Marx e Lenine em lugar privilegiado, mas sem faltarem clássicos russos: romance, teatro e poesia destacavam-se igualmente nas suas estantes. Enquanto lia, fazia anotações nos livros. Durante longos anos, o historiador irlandês foi investigando e desvenda-nos aqui um ditador na intimidade - leitor até de Oscar Wilde e Walt Whitman, de quem ele citava este verso: «Estamos vivos. O nosso sangue escarlate ferve com o fogo da força por usar.»

 

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LIDERANÇA, de Henry Kissinger (D. Quixote). Falecido muito recentemente, já centenário, Henry Kissinger foi académico de prestígio antes de mergulhar a fundo na política, como secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford na década de 70. Judeu nascido em 1923 na Alemanha, emigrado aos 15 anos nos EUA, nunca perdeu o cerrado sotaque germânico. Neste livro-testamento lega-nos seis ensaios sobre estadistas que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Nixon, Anwar Sadate, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher. Estudos de valor desigual, mas todos ajudam a reflectir sobre o exercício do poder. Só o fascinante retrato do general De Gaulle já valeria a obra.

 

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A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (Guerra & Paz). Um dos melhores livros sobre os actuais ditames da correcção política, transformada em moda demencial. Impondo severas censuras um pouco por toda a parte deste mundo a que nos habituámos a considerar livre. A liberdade de outrora tornou-se vigiada. Os exemplos abundam, sobretudo nos meios universitários, aqui dissecados com minúcia e sarcasmo. "A Religião Woke", com o seu cortejo de dogmas, abala até os próprios fundamentos do conhecimento científico. Decreta novos comportamentos, nova linguagem e até novo pensamento. Resultado: sabedoria em regressão e um catálogo de tabus cada vez mais vasto.

 

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RÚSSIA - REVOLUÇÃO E GUERRA CIVIL 1917-1921, de Anthony Beevor (Bertrand). Um clássico instantâneo que nos faz viajar ao estertor da monarquia russa, à fugaz revolução democrática de Fevereiro de 1917 e à posterior insurreição vermelha liderada por Lenine que anunciava ventos de liberdade mas instaurou o mais longo despotismo do século XX. O "primeiro Estado proletário da história" viria a mergulhar os povos da emergente União Soviética num inverno totalitário que parecia não ter fim. Beever, prestigiado historiador britânico especializado em temas militares, guia-nos ao jeito de um thriller neste trilho que não desvenda só o passado: serve também de sério aviso para o futuro.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 23.12.23

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Hoje lemos: Dr. Seuss. "Como o Grinch Roubou o Natal".

Passagem a L-Azular: "E o Grinch, com seus grandes e gelados pés enterrados na neve, ficou confuso e perdido. Como poderia isso ser assim? O seu presente veio sem fitas, sem cartões. E se o Natal, pensou ele, não viesse de uma loja? E se o Natal talvez significasse algo a mais?"

O significado do Natal, mesmo sendo cada vez mais comercial e diluído no consumismo, será sempre aquele que o coração dos homens lhe quiser atribuir. Com todos os Grinch que nos roubam exploram e enganam durante um ano inteiro, seguramente que aquele que rouba o Natal é o menos importante, porque ninguém pode roubar o que nos vai na alma.

Desejo ao ínclito Delito de Opinião, a todos os autores, comentadores, leitores e visitantes um Santo Natal. 

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(Imagens Google)

É Natal. Pás na terra.

Paulo Sousa, 19.12.23

Mortes evitáveis incomodam-nos a todos. Quem de bons sentimentos consegue ficar indiferente perante a morte de inocentes ou, mesmo de patifes, que pudesse ser evitada? Apenas para os mais simplistas o mundo é dividido entre pessoas boas e pessoas más. Eu não vou nessa. Todos somos bons e maus, uns maioritariamente maus e outros o seu contrário. Mas todos bons e maus. Mesmo nos sítios onde só se fazem boas coisas e se reúnem boas pessoas com bons sentimentos, residem maus fígados, recalcamentos quase esquecidos, pequenas arrogâncias disfarçadas e, o pior de tudo, a indiferença. Dante, na sua viagem pelo inferno acompanhado por Virgílio, encontrou no último círculo, naquele onde só existia o breu sem estrelas, onde se ouviam gritos de dor, de raiva e de medo, sobrevoado por nuvens de insectos venenosos, encontrou aqueles que nunca se tinha movido para fazer o bem ou o mal.

No Natal celebramos coisas boas, coisas positivas, celebramos o bem, a renovação, um novo recomeço. O mal não é perdido nem achado no Natal. Todos os o querem esquecer e dele se afastar. No Natal, paz na terra, diz-se.

Apesar disso, as notícias entopem-nos com guerras incómodas. Do alto de mais de setenta inéditos anos de paz na Europa, já são poucos os que se recordam da última guerra. Só gente antiga, e documentários, nos podem contar histórias de guerra na primeira pessoa. Viver em cima de quase oitenta anos de paz, rodeado de dezenas de conflitos, é quase como como aquele tipo que, no seu carro novo, passeia na única rua transitável de um bairro de lata. Incomoda? Pois é claro que incomoda. No bairro da lata, há sempre um rufia maior que por não ter nenhum carro para passear, sente-se aliviado em apedrejar o carro do outro. Qual é o bom e o mau nesta história? Uns dirão que a miséria é a caixa de Petri onde se cultivam os maus sentimentos, a inveja, a ira e até o ódio. Outros dirão que o tipo do carro novo se tivesse noção nunca iria passear para aqueles lados (mesmo que seja naquela rua que ele reside) sujeito a acordar a inveja e os maus fígados dos demais.

Há uma visão que distingue a esquerda da direita pela forma como se considera o ser humano no mundo. A esquerda acha que o humano é essencialmente bom, mas estragado pela sociedade e, pelo contrário, a direita não duvida que todos transportam dentro de si uma dose de maldade e que por isso têm de ser moldados pela sociedade de forma a impedir males maiores. A esquerda aspira por mudar a sociedade e a direita a manter a sua coesão. Em Portugal existe ainda uma visão classista da coisa que leva a que o voto seja condicionado pelos interesses imediatos do eleitor, que assim se preocupa mais com o seu umbigo do que com a sociedade.

É preferível impedir o tipo do carro novo de circular ou o rufia maior de apedrejar o seu carro?

Não procuro aqui dar respostas a esta questão, pois é inegável que a resposta de cada um seja condicionada pelo lado com que mais se identifica. Qual de nós escolheu em que lado da barricada ia nascer? Em que geografia? Com que cor de pele? Com que nível conforto físico ou emocional? Acredito profundamente que o mais razoável é ser tolerante e colaborativo, mas como levar na tromba é aborrecido, o melhor seria mesmo ter umas forças armadas capazes e bem equipadas.

As notícias, dizia, entopem-nos com guerras incómodas. Em todas as que são faladas, existe ali sempre a mácula do tipo do carro novo. Tentam convencê-lo de que tem de expiar o pecado de viver em paz e ser razoavelmente próspero. Quem é que o mandou? Agora tem de se aguentar.

Algumas guerras, porém, não se enquadram na mácula do tipo do carro novo e por isso não aparecem nas notícias. Não cabem na narrativa do ocidente decadente, culpado, provocador e … próspero.

Para além das guerras mais mediáticas em curso, na Ucrânia e Israel, decorrem pelo mundo algumas dezenas de conflitos armados que aqui vou tentar elencar. Espero não deixar nenhum para trás.

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Muito a propósito

Maria Dulce Fernandes, 20.11.23

Daqui a pouco mais de um mês é Natal. Em convénio familiar, decidiu-se que a vida não está para gastos em presentes que nem sempre são úteis. Sempre foi uma dor de cabeça decidir o que ofertar a quem, por isso proclamou-se que o Natal é das crianças, transcreveu-se em acta e pronto. Roupa, livros e dois brinquedos.

Para que corra tudo bem, o melhor é mesmo perguntar aos crescidos o que faz falta aos pequenos, fazer uma listinha e ir procurando nas promoções onde compensa mais fazer compras. 

Um dos meus sobrinhos enviou-me a seguinte mensagem ao questionário: "Calças ganga, tamanho 5. Jogo Johnny Cagoni." Juro que pensei que fosse piada. Não é. Nem penso que seja para rir. 

Talvez inspirado nos acontecimentos actuais um pouco por toda a parte, alguém teve a grande ideia de criar um jogo que diz o seguinte: "Já não aguentas mais? Corre para a casa de banho! O Johnny Cagoni estará à tua espera… Puxa uma carta, imita os puns, gira a maçaneta e... joga! Se o Johnny saltar pelo ar, perdes o jogo e, pior ainda, o papel higiénico sairá disparado na tua direção".

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Com tanto tema didáctico para divertir e erudir as nossas crianças, o best seller do Natal parece que é mesmo o Johnny Cagoni...

Eu sei que nos meus últimos postais tenho escrito literalmente sobre m*rda, por isso quem sou eu para ficar macambúzia com um jogo de m*rda para crianças com mais de cinco anos? Quem sabe será uma boa idade para começarem a entender que mexer muito na m*rda, acaba por nos rebentar na cara...

Alguém me disse que o jogo da "Operação" vai passar a ser uma mudança de sexo, ou seja incentivar a criatividade das crianças para que possam criar como quiserem, alguém com quem se possam identificar. Pela parte que me toca nestas modernices, creio que será melhor continuarem a jogar o Johnny Cagoni. No final do dia, vai dar tudo ao mesmo.

(Imagem Google)

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 25.12.22

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Primeiro e antes de tudo o mais, quero desejar um Santo e Feliz Natal a todos os autores, comentadores e leitores desta imensa e multicultural família que é o Delito de Opinião. Bem hajam.

 

A 25 de Dezembro celebra-se, na maior parte do Mundo Cristão,

O Dia de Natal

No dia 25 de Dezembro, na maior parte dos países de cultura cristã, celebra-se o nascimento de Jesus Cristo, considerado pela tradição cristã como o filho de Deus e uma das três partes da Santíssima Trindade, junto ao Espírito Santo e Deus Pai.

O nome mais usual que é empregado para se definir esta data é, simplesmente, Natal. Todavia, sabemos que nem nos Evangelhos e nem em quaisquer outros textos que tratam da história de Jesus Cristo há evidência de que ele tenha nascido no dia 25 de Dezembro. Porque, então, comemoramos hoje o seu nascimento? 

Após a morte e ressurreição de Cristo, por volta de 33 d.C., as primeiras comunidades cristãs formaram-se ainda no Médio Oriente, mas logo se disseminaram para outras regiões, como a Ásia Menor e a Anatólia, que compreendia domínios do Império Romano com grande influência da cultura helenística. Não demorou muito para que pregadores cristãos chegassem à cidade de Roma e lá também se disseminassem. Foi nesse contexto de expansão do cristianismo dentro dos domínios do Império Romano que as datas de celebração aos antigos deuses romanos foram assimiladas e transformadas pelos cristãos.

Uma dessas datas era o 25 de Dezembro, dedicado a Mitra, divindade solar. O culto oficial a Mitra foi instituído pelo imperador Aureliano em 273 d.C. Este dia 25 de Dezembro, a partir de então, ficou conhecido como dia do Natalis Solis Invicti (O Nascimento do Sol Invencível). Na medida em que a parte ocidental do Império Romano se deteriorava com as invasões bárbaras, o cristianismo passou a ganhar espaço e influência.

Assim, a data dedicada a Mitra foi convertida no dia do nascimento do Deus Filho, o Salvador da Humanidade, que traz a remissão dos pecados e a esperança da ressurreição da carne, tal como o Sol traz a esperança das colheitas após o Inverno. O simbolismo do Sol foi transferido para a figura de Cristo. 

Esta é uma ocasião propícia para reuniões familiares e acções de solidariedade. E uma data carregada de símbolos de que nem sempre conhecemos a origem e o significado, como a árvore de Natal, o presépio e o Pai Natal. 

  • Presépio: encenação artesanal ou artística, em barro ou outros materiais, do nascimento de Cristo, surgiu no século XIII por criação de São Francisco de Assis, no século XIII.

  • Pai Natal: personagem que deriva da figura de São Nicolau, que distribuía presentes para as crianças no dia do Natal, no século IV.

  • Árvore de Natal: foi assimilada de cultos de culturas pagãs nórdicas por São Bonifácio, no século VIII.

É dia de peru. Este ano é com mise en scène e encenação minha, que em podendo executar apenas tarefas leves, carregar com o peru, travessas, tachos e panelas, ficam para os convocados para ajudantes de cozinha, os meus elfos culinários. Confesso que odeio ter outras pessoas que não o meu marido na cozinha comigo. Não sabem onde está nada, não fazem coisa alguma sem perguntar, em suma, só atrapalham, mas este Natal vai ter de ser assim. Os coscorões da minha Avó Hortênsia, vou fazê-los sentada. Sempre quero ver o que vai sair dali. 

Bom Natal!

(ImagensGoogle)

 

Um ponto de luz rodeado de noite

Pedro Correia, 25.12.22

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Cada vez gosto mais de ler cronistas e colunistas da imprensa espanhola. E cada vez mais admiro a qualidade da escrita deles na comparação com os congéneres portugueses - salvo raras e muito honrosas excepções.

Ao ler o El Mundo de ontem, deparei com três crónicas notáveis, que assinalo aqui: "Consolo e tristeza na Noite de Natal", de Lucía Méndez. "A superioridade da neve face à chuva", de Andrés Trapiello. E "Luz na noite", de Jorge Bustos.

Qualquer destas peças jornalísticas merecia figurar numa antologia do género sem favor algum.

Do texto de Bustos destaco uma das melhores definições que já li sobre o sortilégio desta quadra, diferente das restantes que desfilam no calendário: «O Natal nada mais é do que um ponto de luz rodeado de noite.»

Acontece em larga medida, assinala Trapiello, porque a data de hoje nos traz contínuas reminiscências de tempos idos, ligadas ao assombroso mistério da existência. Como um episódio que narra da sua infância, à saída da Missa do Galo de mão dada com a mãe, ao ver a neve que cobria de branco a pequena cidade de província onde cresceu. Daí o brilho natalício ser tão decisivo para as crianças: estamos agora a forjar nelas «o que um dia será o seu passado»

Ponto de luz rodeado de noite. Eis o supremo desafio da vida, ainda mais nítido nesta noite de Natal, segundo observa Lucía Méndez: algo digno de nos deixar «a alma em paz».

Silent night, holy night. All is calm, all is bright.

João Sousa, 24.12.22

A papelaria onde descobrimos termos ambos comprado os nossos primeiros livros está hoje fechada, o vidro da montra embaciado pela poeira e tapado por jornais já queimados pelo sol. O caminho por onde regressávamos, não por ser o mais curto mas precisamente pelo contrário, há muito que não o percorria. Amores tornaram-se um nome na agenda com quem são trocadas mensagens de circunstância no aniversário e no Natal.

Todos os que ouviram se admiraram do que lhes disseram

Pedro Correia, 24.12.22

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«Os pastores disseram uns aos outros: "Vamos, então, até Belém e vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer." Foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino, deitado na manjedoira. E, quando os viram, começaram a espalhar o que lhes tinham dito a respeito daquele Menino. Todos os que ouviram se admiraram do que lhes disseram os pastores.»
 
Lucas II, 15-18

Músicas de Natal

Maria Dulce Fernandes, 24.12.22

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Nos meus  anos de inglês no liceu, na altura em que o ensino era a doer e líamos Shakespeare, Milton, Oscar Wilde, James Joyce… todos os anos pelo Natal produzíamos uma pequena peça de 15/20 minutos escrita a 15 mãos (que normalmente acabavam por ser só duas ou três, mas enfim…) sobre uma das obras que tínhamos estudado e cantávamos vários Christmas Carrols, mas sempre sempre The Twelve Days of Christmas, música que a professora adorava e vibrava ao entoá-la connosco. 

Não sei bem porquê, nunca fui muito fã de tal canção festiva, porque sempre a achei muito estúpida e não lhe percebia o sentido. A parte pior era mesmo ilustrar a cançoneta, porque nenhuma de nós tinha paciência para inventar adereços que exemplificassem aquele exagero de paixoneta. Que apaixonado, por muito apaixonado que estivesse, seria tão estúpido ao ponto de juntar toda aquela tropa fandanga que não servia absolutamente para nada – excepto os anéis de ouro, claro, mas cinco? Seria talvez um para cada dedo da mão?

Se o meu marido, no tempo em que andava a arrastar-me a asa, se lembrasse de tal despautério, teria seguramente gritado “Ó da Guarda!”, e fugido horrorizada e provavelmente teria ficado para tia. Uma pessoa já se vê grega em equilibrar o orçamento numa humilde casinha com cinco divisões, três alminhas, dois batráquios felinos e o duende do papel higiénico, quanto mais com toda aquela cangalhada de presente natalício! 

O meu pai é que era doido pelo Natal. Adorava decorar a árvore, levava-nos a todos à noite à Baixa, bem embrulhadinhos em casacos, gorros e cachecóis, ver as iluminações das ruas e decorações das montras, adorava os doces e os cozinhados… adorava juntar a família à volta da árvore e entoar os cânticos de Natal só com as luzes do pinheiro ligadas e a piscar. Ainda choro como uma Madalena com a sua música preferida “The Little Drummer Boy”. O meu pai tinha bom gosto e também não era grande amante da perdiz na pereira, por isso não fazia parte do repertório familiar.  Passados trinta e dois anos ainda cantamos músicas de Natal, mas apenas aquelas que as crianças aprendem na escola, com poemas adaptados e um tanto desconcertantes, mas afinal a festa do Natal é para eles. Nós já tivemos o nosso tempo, um tempo de ternura, emoção e compreensão, em que as luzes do pinheiro enfeitado que brilhavam no escuro nos enchiam de esperança e felicidade.

Feliz Natal.

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 24.12.22

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No dia 24 de Dezembro celebra-se a Consoada

«A origem do nome “Consoada” vem do Latim “consolata”, de “consolare”, “consolar”. No rito católico os fiéis participam, ao final da noite, na Missa do Galo.

Segundo a tradição portuguesa, a Consoada consiste principalmente em bacalhau com batatas e couves, seguido dos doces, como aletria, rabanadas e filhoses. Em algumas regiões do país (principalmente no Norte), o polvo também consta da mesa de Natal.

Em Trás-os-Montes, peru no forno, canja de galinha e assados de borrego, porco ou leitão também marcam o Natal, enquanto na Beira Alta o cabrito é uma tradição. No Alentejo e no Algarve, o peru recheado assado também pode constar das mesas.

No entanto, são muitas as pessoas que não cumprem a tradição à risca, isto porque a loiça usada não deve ser lavada nem levantada da mesa por respeito a todos os mortos da família.»

 

Éramos tantos e somos tão poucos. Há alegria, há crianças,  há comida, há tradição e há tantos vazios, tanta nostalgia, tanta saudade. Chegados àquele ponto das nossas vidas em que os momentos felizes passam a tradição oral, com lágrimas e risos à mistura, não tem como não nos azoar a ideia de que aquele é talvez o nosso último Natal, e não no próximo, mas nos seguintes, seremos nós os protagonistas das histórias agridoces contadas à mesa, que vai ficando cada vez mais vazia.

( Imagens Google)

Natal e Fim de Ano

João André, 23.12.22

Desde que era pequeno que tenho festejado de uma forma ou outra o Natal. Tinha até uma certa sorte de ter duas noites de Natal, dado que o meu avô paterno era sacristão e, como tinha que estar de serviço à missa a 24, só reuníamos a família paterna na noite de 25. Duas noites de Natal consecutivas e, tendo eu o meu aniversário em Dezembro, até tinha direito a receber múltiplas prendas porque toda a gente se lembrava "ah pois, o Joãozinho fez anos há pouco tempo".

Devo notar no entanto que nunca foram noites de Natal muito religiosas. Lá havia a referência a prendas "do menino Jesus", coisa que me deixava confuso com a logística dele e do Pai Natal em entregar as prendas - lá me convenci que o Pai Natal deixava Portugal para o Menino Jesus e que dividiam territórios - mas fora a história de o meu avô ser sacristão, não tínhamos grande presença da religião. Era uma festa de família. Com os anos isso não mudou. Cresci não crente (que é uma maneira mais simpática de dizer ateu até à medula num blogue povoado de bons cristãos cuja Fé não quero incomodar) e como tal a religião sempre foi como a água num submarino: está ali em todo o lado mas não entra. É o ambiente em que me movo neste período - não nego a religiosidade do Natal, como é óbvio - mas deixa-me indiferente. Adiante, isto não era para falar de religião especificamente. Esclarecimento feito.

Hoje, numa Holanda que dá relativamente pouca importância ao Natal no sentido que nós o damos, numa família internacional onde a minha cara metade não liga ao dia 25, e com os preços dos bilhetes de aviões a tornarem uma viagem a Portugal um custo ridículo para 7 ou 8 dias passados essencialmente em casa, acabei por ir ligando pouco. Temos as prendas, a árvore, amanhã haverá Bacalhau e os telefonemas à família e... já está. Aproveitarei o dia 26 ser feriado por cá, tirarei o resto da semana porque também preciso de descansar e estará feito o período festivo. Penso que esta falta de espírito natalício advém também de não ver televisão (as transmissões, que temos o aparelho) e não ser inundado pelos votos de Boas Festas! a cada 5 minutos. Nas ruas ao redor não há decorações festivas, as lojas não fazem grande esforço (as prendas foram no período do Sinterklaas - São Nicolau - a 5-6 de Dezembro) e a atmosfera não existe.

O fim do ano torna-se assim apenas isso, um final de ano. Um momento para balanços do ano, de pensar no que foi e vai ser, de enviar os votos de boas festas a amigos e colegas e de desejar que este mundo louco melhore.

Então, e respeitando esta lógica, deixo aqui os meus desejos de um Santo Natal a quem o festeje de forma religiosa, bom período festivo a outros que festejem o Natal, feliz Hanukkah (tenho dois amigos que o festejam e como tal lembro-me dele) a quem o celebre e votos que para o ano de 2023 as coisas não piorem - já seria um passo em frente em relação aos últimos anos. Gostaria de ser mais festivo, mas talvez me falte o espírito ou talvez eu seja simplesmente um pessimista. Seja como for, bom Natal, bom Ano Novo e muita saúde para vós e vossos, co-autores e leitores.

O menino Jesus possível *

Paulo Sousa, 23.12.22

"Quando era criança, os presentes eram do menino Jesus e o Pai Natal quase não existia, salvo num anúncio ou noutro. Não sendo de uma família católica, ainda assim recolhíamos os brinquedos e fazíamos um presépio com musgo a sério e tudo. Nunca me disseram que Jesus era Deus, e menos ainda conhecia as complexidades teológicas de ser “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”, como reza o credo.

Nas aulas da faculdade lembro-me de um professor afirmar que não havia prova coe­va (ou seja, na mesma exata época) da existência de Jesus, A minha vida passei-a a ser exceção de um lado (pais não casados pela Igreja, falta de educação religiosa) para outra exceção: dar importância à religião e perceber o impacto que ela deve ter nas nossas vidas, que teve na nossa História.

Não me proponho discutir a divindade de Jesus, menos ainda a sua existência histórica comprovada. Cada um terá a sua opinião; mas muito gostaria que todos interiorizassem a importância da mensagem que lhe é atribuída: o amor, a fraternidade, o perdão, a misericórdia, a igualdade, a liberdade, o desprendimento, a fé, a convicção, a superação, a aceitação… enfim, tantos valores em voga, outros em desuso, mas todos de uma atualidade impressionante."

 

* Excerto da coluna semanal de Henrique Monteiro no Expresso

Quando Jesus disse: «Aqui estou»

O SUAVE MILAGRE, de Eça: deslumbrante conto de Natal

Pedro Correia, 23.12.22

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«O reino de Deus está dentro de nós.»

Lucas XVII, 21

 

Foi uma das mais fecundas viagens da literatura portuguesa. As sete semanas da jornada de José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) ao Egipto e à Terra Santa entre Outubro e Dezembro de 1869, a pretexto da inauguração do Canal do Suez, serviram de inspiração ao escritor até ao fim da sua vida demasiado breve. De lá o jovem jurista trouxe três cadernos de bolso e uma grossa pasta com tiras de papel almaço cheias de notas que jamais o abandonariam.

Teve a noção imediata do impacto que aquela digressão produziria na sua obra. E assim o confessaria anos depois, em alusão polvilhada de ironia, pela boca de uma das suas mais inconfundíveis criações literárias, Teodorico Raposo: «Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira.»

Não se enganava. A viagem por terras do Oriente, como assinalou o seu biógrafo João Gaspar Simões, libertou-o do «metaforismo visionário dos folhetins» ao introduzi-lo nas virtudes da observação e da anotação. Proporcionando-lhe material para o que viria a ser um livro póstumo (O Egipto), um dos seus mais corrosivos e admiráveis romances (A Relíquia), diversas crónicas jornalísticas e aquele que figura entre os melhores contos escritos no nosso idioma: O Suave Milagre.

 

Com esta história (definição que Eça sempre preferiu à de conto), Jesus Cristo irrompe como inesperada personagem na literatura portuguesa.

Vasco Graça Moura não duvidou em classificá-la de «grande realização» no seu prefácio à antologia As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal (Quetzal, 3.ª edição, 2016). Num sentido metafórico, podemos na verdade inseri-la entre as prosas de recorte natalício, aliás com ampla tradição na nossa literatura. Mas O Suave Milagre, na brevidade das suas dez páginas, tem um alcance mais vasto: é uma pequena obra-prima sobre a inspiração da fé impregnada no recôndito da alma humana.

A acção, iniciada no pretérito mais-que-perfeito para acentuar a aura simbólica, decorre na época em que Cristo peregrinava pela Galileia, convertendo multidões à sua passagem. Aqui Eça recorre às paisagens visuais que lhe ficaram impressas na memória, transformando-as em matéria literária. Em 1869 o futuro romancista deambulara por Jerusalém, escutara missa no Santo Sepulcro, visitara o rio Jordão, o Monte das Oliveiras, as colinas de Judá, as ruínas do Templo, o Mar Morto. Numa espécie de rito iniciático que o sagraria como escritor – ali no centro da civilização do Livro. Logo a ele, que na juventude várias vezes se proclamou ateu militante.

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O Suave Milagre teve três versões.

A primeira, surgida em 1885 e denominada Um Amável Milagre, integrou-se numa colectânea intitulada Um Feixe de Penas, organizada com intuitos de beneficência por Maria Amália Vaz de Carvalho.

A segunda, mais seca e resumida, imprimiu-se em 1897 sob o título Um Milagre na edição inaugural de uma tal Revista Cor de Rosa.

No ano seguinte seria enfim divulgada a versão definitiva, na Revista Moderna, magazine editado em Paris, onde Eça desempenhava as funções de cônsul. É claramente a que tem uma escrita mais apurada, fruto do perfeccionismo constante de um prosador sempre insatisfeito em questões formais.

Em livro só sairia no volume de Contos, lançado em 1902, numa edição póstuma.

 

«Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíade: — mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.»

É o sugestivo parágrafo inicial do conto, redigido segundo a toada dos textos evangélicos, com profusão de topónimos e antropónimos colhidos in loco, naquela viagem tão determinante para a vida e obra do autor.

Mas nem só o estilo bebe o exemplo dos Evangelhos: o mais determinante aqui é a intenção moral. Com uma assumida dicotomia entre os ricos e poderosos, que acumulam bens materiais mas são afinal impotentes no combate aos abismos da doença e da morte, e os pobres e despojados de bens materiais mas iluminados pela luz da fé.

 

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Entre os primeiros figura o velho Obed, «senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas — e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo». Um «vento de desolação» arrasara-lhe as terras de cultivo e os pastos para o gado, e em consequência ele «ruminava queixumes contra Deus». Ao ouvir falar do rabi que fazia milagres na Galileia, imaginou-o como um feiticeiro capaz de lhe restituir a sorte e enviou uns servos com «cinturões de oiro» no seu encalço.

Em vão.

Figura também o centurião romano Publius Septimus, comandante do forte implantado no vale da Cesareia, «homem áspero», veterano de mil guerras que «enriquecera durante a revolta da Samaria com presas e saques»Adoecera-lhe a filha e ele despachou três centúrias de soldados às suas ordens para lhe acharem aquele rabi de que todos falavam, convicto de que o favoreceria com o seu «superior feitiço».

Também em vão: ninguém encontrou Jesus.

 

Cristo aparecerá, sim, mas ao mais humilde dos humildes: um menino entrevado, residente num casebre com a pobre mãe, que mais não tinha senão umas ervas secas para lhe mitigar a fome. Ao contrário do rico proprietário e do poderoso centurião, ele nada pede, nada exige, nada reclama: diz apenas à mãe que gostaria de «ver Jesus».

Querer ver sem duvidar do invisível: eis a expressão mais pura da crença despida de artifícios ou disfarces. Este menino sem nome, arquétipo universal de uma fé capaz de mover montanhas, será recompensado. Tal como a samaritana pecadora que deu de beber a Cristo no poço de Jacob. Ou como Inger, a mulher ressuscitada na sequência de uma prece do “tontinho” Johannes Borgen numa cena crucial d’ A Palavra, de Carl Dreyer – um dos mais belos filmes da história do cinema, estreado 70 anos após a publicação d' O Suave Milagre na sua versão inicial.

 

Jesus, personagem literária, profere neste conto apenas duas palavras: «Aqui estou.» É quanto basta enquanto essência da mensagem cristã – tanto mais divina quanto mais humana, tanto mais humana quanto mais divina.

Eis Eça, o ateu incerto que se ajoelhou por atávico impulso religioso no Santo Sepulcro, a reconduzir-nos ao espírito mais genuíno do cristianismo: aquele que depura o dom da fé, libertando-o do ilusório poder material, da ostentação postiça, do farisaísmo dos sepulcros caiados.

«Aqui estou.» História de Natal, sim. Deslumbrante revelação de todos os verdadeiros Natais.

 

Texto reeditado

Livros: dez sugestões de Natal

Pedro Correia, 20.12.22

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DIREITA E ESQUERDA, de Joseph Roth (Cavalo de Ferro). Viagem à Berlim de há cem anos, no fugaz interlúdio entre a guerra e a fracassada erupção comunista, por um lado, e a ascensão do nazismo, por outro. Dinheiro, hipocrisia social e radicalismo político são ingredientes deste romance de Roth (1894-1939) enfim editado em Portugal.

 

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NA CABEÇA DE XI, de François Bougon (Zigurate). Inspirado ensaio biográfico sobre o mais poderoso ditador do nosso tempo: Xi Jinping, o Presidente da China, ainda encarado com benevolência em meios geralmente mal informados. Título de referência nesta nova editora, digna de aplauso por surgir em tempos difíceis e não mutilar consoantes.

 

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O SONHO DA CHINA, de Ma Jian (Quetzal). Impiedosa sátira social ao outro lado do espelho do "milagre económico" chinês, marcado pela corrupção da oligarquia comunista agora que a geração dos adolescentes formados na tenebrosa "Revolução Cultural" chegou ao poder. Este romance está proibido na China e o seu autor vive no exilio.

 

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FRANCISCO - O CAMINHO, de Maria João Avillez (Temas e Debates). Transcrição da recente entrevista feita pela jornalista ao Papa para a TVI. Com um prefácio que explica ao leitor como foi possível consegui-la e o contexto concreto em que decorreu, no Vaticano. Francisco pede aos jovens de todo o mundo para «abrirem janelas», com vistas largas. 

 

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BREVE HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA, de Roger Scruton (Guerra & Paz). Um dos mestres pensadores do nosso tempo revisita alguns dos filósofos que mais o marcaram. Fascinante percurso pela rota das ideias que fazem girar o mundo. Num estilo elegante e fluente, provando que a erudição não tem de ser árida nem aborrecida.

 

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OLIVENÇA NA HISTÓRIA, de vários autores (Assembleia da República). Muito se fala de Olivença, mas poucos conhecem com rigor o tema - na sua dimensão histórica, cultural e jurídica. Lacuna aqui colmatada, com chancela parlamentar, em textos de valor desigual sobre uma parcela de território sob domínio espanhol que é portuguesa de raiz e lei.

 

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«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (Tinta da China). A frase, que o autor adaptou a título com inegável argúcia, é de José Cardoso Pires e serviu de mote inspirador à revista Almanaque, que marcou o início da década de 60 no meio intelectual português. Ainda hoje se fala dela. Toda a história desse mirabolante projecto é contada aqui.

 

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O MUNDO PELOS OLHOS DA LÍNGUA, de Manuel Monteiro (Objectiva). Um dos nossos mais esclarecidos linguistas regressa com uma obra útil a todos quantos escrevem. Alertando para o uso e abuso de erros de palmatória neste nosso idioma por vezes tão maltratado por quem mais devia cuidar dele. Felizmente vai resistindo a quase tudo.

 

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QUARTETO DE HAVANA, de Leonardo Padura (Porto Editora). Na Cuba comunista também há crimes, como em qualquer outro país: o paraíso terreal está longe de existir ali. Quem tiver dúvidas, repare neste excelente escritor, dos raros que não foram presos ou desterrados. Romances policiais ao sol das Caraíbas. Para ler nas linhas e nas entrelinhas.

 

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O INFINITO NUM JUNCO, de Irene Vallejo (Bertrand). Declaração de amor à literatura pela pena ágil de uma investigadora espanhola neste ensaio que parece um romance e foi monumental sucesso de vendas no país vizinho. Fascinante digressão pela civilização greco-romana que há muitos séculos nos ensinou a ler, a escrever, a pensar e a sonhar.

Natal

jpt, 27.12.21

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(Postal para o meu mural de facebook)

Eu sou ateu, nisso um cristão cultural. Mas fui fraco leitor do (nosso) Livro e nunca o estudei, nem à sua exegese. Ainda assim sei que não é preciso ser qual franciscano para se ser bom cristão e que aquilo da renúncia é algo que foi dito como problemático. Bem como da inexistência de qualquer contradição entre o júbilo do Advento e a sua publicitação, numa festividade pessoal, interior, ou colectiva, pública. Mesmo assim há algo que me confunde, e cada vez mais com a idade o sinto: este é um ritual de esperança, de renovação. Nisso de afirmação da incompletude própria, da vontade de ascensão, do seu rogar. E isso nada a tem a ver com todas e tantas estas imagens nas redes sociais, pejadas do pecado da soberba, as mesas fartas, as famílias amorosas e alegres, as viagens magníficas, as casas bem-postas, sei lá mais o quê. Não é um "consumismo" que me afronta, isso que lhes faça bom proveito. É mesmo essa satisfação que patenteiam, as almas fartas, roliças até. Se esta gente vai tão feliz para que precisa do Natal? Para mim, o tal ateu, esta é a época da tal esperança, a de vir a ter tabaco e mortalhas para dar uso a estes filtros. E que nunca me falte o lume. Apenas isso. E acho que vou muito mais cristão que todos estes festivos lampeiros. Crentes.