É preciso ter memória quando se fala do OE 2016 (fim)
(Minerva e o Centauro, Botticelli, Uffizi, 1480/1482)
Se o OE de 2016 é mau, se tem projecções irrealistas, se há coisas que devem ser corrigidas, isso deverá necessariamente ser feito para no fim não pagarem outra vez os mesmos. Não só com esse orçamento mas igualmente com todos os orçamentos que este ou qualquer outro Governo elabore.
A natureza e o estilo das críticas que têm sido feitas não são muito diferentes daquelas que no passado se leram e ouviram, por vezes até procedentes das mesmas entidades, quando foram apresentados os orçamentos e os múltiplos rectificativos destes preparados pelo executivo de Passos Coelho nas suas diversas versões. Houve, inclusivamente, um ministro das Finanças que tendo errado de forma tão escandalosa nas suas previsões acabou propondo um "brutal aumento de impostos", retirando-se pela porta baixa e provocando uma crise governamental que teve grande repercussão política e económica. Isso não o impediu, todavia, de ainda há dias ter sido condecorado pelo, ainda, Presidente da República como se tivesse feito bem o seu trabalho e não nos tivesse a todos lixado com a sua teimosia.
Em tempos, Mendes Bota comparava a ASAE à PIDE. Hoje, compara-se a actuação em democracia de um primeiro-ministro com a acção de líderes autoritários do pré-25 de Abril, como se em democracia não existissem mecanismos políticos que permitissem reagir e afastar um chefe de executivo se essa for a vontade da maioria. Há quem o faça recorrendo à ironia ou em registos sarcásticos, mas há quem leve isso a sério e confunda o traço humorístico e a caricatura inteligente que alguns fazem com a realidade.
O que me incomoda, volto a dizê-lo, não são as críticas, nem que elas sejam feitas. O que deveras aborrece e desacredita cada vez mais o discurso dos agentes políticos é que essas críticas sejam feitas pelos mesmos que antes também apresentaram orçamentos laborando em graves erros de projecção e análise. E que tentem confundir os outros. Os que antes elaboraram, apoiaram e aprovaram esses orçamentos são os que hoje apontam erros aos sucessores, fazendo-o como se eles próprios não tivessem errado de forma quase grotesca e mais a mais servil, cumprindo ordens de terceiros que depois vieram pedir desculpa pelas ordens e pelos erros, coisa que os responsáveis políticos que os bajularam não fizeram. Como se só tivessem virtudes e os outros só defeitos. Um exemplo: compare-se o que escreveu José Manuel Fernandes no Observador com o que Rui Peres Jorge deixou no Jornal de Negócios sobre o mesmo assunto. Recorde-se, igualmente, que a UTAO que duvidou das contas do OE de 2016 foi a mesma que duvidou das contas dos OE apresentados pelo anterior executivo. Dos anteriores já se sabe que falharam nas contas, uns por excesso de optimismo, outros por excesso de zelo e convencimento de que os meios que se usam e os fins em vista cabem todos no mesmo saco. Destes, por ora, há dúvidas e suspeitas, e aqueles que lhes apontam um optimismo excessivo já se esqueceram das previsões dos orçamentos que nos últimos anos foram apresentados e várias vezes corrigidos com rectificativos. E por vezes entra-se de tal forma em contradição que a mesma pessoa que um dia disse que "[a] política implica uma capacidade de fazer concessões, de negociar, de aldrabar" e "[o]briga necessariamente à demagogia, à disciplina, a renunciar muitas vezes ao que pensa pela sua cabeça" (Público, 29/01/2012), três anos volvidos (Público, 16/09/2015) apela ao voto em alguém que, consequência lógica do que dissera para quem lera a entrevista de 2012, devia ter com toda a certeza as características que referira como necessárias para poder estar hoje na política. Omito aqui o nome de quem o disse porque não me parece que seja relevante e o que interessa é o exemplo, o que ficou registado, a coerência em relação ao que se afirmou. É evidente que a primeira afirmação foi excessiva, mas levada à letra impediria três anos depois o apelo ao voto em quem quer que fosse, sob pena de se estar a aconselhar o voto em alguém que, nos termos da leitura feita, para estar na política teria de ter os defeitos que se apontou em 2012 para justificar o seu próprio posicionamento e afastamento da política.
Os erros cometidos no passado não servem, nunca serviram, para justificar asneiras presentes. E da mesma forma que cai mal invocar os erros de José Sócrates quando se é apanhado numa asneira para se justificar e encobrir desmandos próprios, actuações passivas e de protecção de camarilhas, que estão a sair muito caro aos portugueses, também não se pode aceitar que todas as críticas sejam feitas, como se tem visto, com os sapatos cheios de pedras, por vezes de forma xenófoba e racista, chegando-se ao ponto de se fazerem comentários depreciativos à condição do actual primeiro-ministro, como já li e ouvi, com base na sua herança genética. Como em tempos também o fizeram em relação a Narana Coissoró, a Medeiros Ferreira, a Hélder Amaral ou a Sousa Franco.
Este tipo de registo, que não é exclusivo de alguns quando estão no poder ou na oposição, e o culto do espírito de trincheira têm sido altamente danosos para o país.
Aquele trata-se de um modelo que se tem vindo a afirmar no discurso público e na acção de agentes políticos, alguns com responsabilidades, em jornais, televisões e redes sociais. A qualidade das elites que temos é medíocre, eu sei, só que isso não serve de desculpa. Mas enquanto se aceitar tudo como inevitável, até a falta de equilíbrio e de racionalidade da crítica por mero preconceito, e não com base em factos, cavando-se ainda mais o fosso entre a realidade, as preocupações dos cidadãos e os interesses de casta de muitos dos que se sentam nas bancadas de S. Bento, a discussão estará sempre inquinada.
O modo inenarrável como se tem atacado o que alguns dizem e escrevem é disso exemplo. Ataca-se o mensageiro como em tempos remotos se faria a um leproso. Ignora-se a mensagem, atirem-se-lhe umas pedras que o tipo cala-se. Aqueles que discordam em vez de rebaterem as críticas afastando as situações referidas e os exemplos dados com argumentos decentes, ponto por ponto, preferem atacar fulano e sicrano. Porque é "preto", porque é "comunista" ou "socialista", porque é de "direita", porque é "retornado", porque é "monhé", porque tem "dor de cotovelo", e adiante. A lista é imensa e o importante é a agenda.
Um mau escritor pode ser um bom crítico e não é o facto de ter escrito maus livros que lhe vai retirar o mérito na crítica a que dedique. O facto de escrever maus livros não é inibitório de poder ser um bom crítico sem que necessariamente e de cada vez que surja uma crítica sua se lhe aponte o dedo, não em razão do bem ou mal fundado da crítica que fez, mas porque só escrevia maus livros. Do mesmo modo que um mau jogador de futebol pode dar um excelente treinador, nada impede que um mau político ou péssimo governante não possa ser um académico de excelência, um pensador irrepreensível ou um cronista de eleição. Isso não pode impedi-lo de criticar um antecessor ou um sucessor. Saber se tem autoridade moral para fazê-lo é outra questão. E pode e deve ser questionado havendo razão para isso, mas esse é um julgamento que terá de ser feito por cada um e não com base no preconceito, em palas invisíveis, na irracionalidade, no pressuposto de que nós é que somos bons e que os outros são estúpidos e necessitam de ser iluminados ou com a desculpa dos erros que no passado foram cometidos.
Longe como estou, cada vez mais afastado da actividade política partidária, preocupado com outras questões bem mais prementes e passando por Portugal com uma regularidade distanciada, vou assistindo ao que se vai passando e ainda vou aparecendo por aqui para dizer o que penso. Outros há muito deixaram de fazê-lo. Não sei se isso será sinal de alguma coisa, mas tenho pena que assim seja.
Dentro de um casulo não há intervenção cívica, não se discutem ideias, não se mudam mentalidades. A opinião não é um delito.