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Delito de Opinião

Os Muros

Maria Dulce Fernandes, 30.07.22

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Todos nós nascemos e crescemos (salvo por algum bambúrrio da sorte) num espaço edificado e entre paredes de madeira, de tijolo, de lona, de colmo… A parede é a estrutura da vida tal e qual a conhecemos. A expressão “entre quatro paredes”, com todas as nuances que lhe queiramos atribuir, significa lar, privacidade. Significa Construção, força.
A nossa vida está repleta de paredes e de muros, que no sentido real ou figurativo regulam a existência humana e são quase sempre sinónimos de divisão, exemplo da Grande Muralha da China, da Muralha de Adriano, do Ghetto de Varsóvia, do Muro de Berlim, da Muralha de Gaza… ou tão simplesmente das divisões na arquitectura dos edifícios.
A tantos obstáculos contornáveis ou incontornáveis que se nos apresentam durante a nossa existência chamamos muralha da indiferença, muro do silêncio, ficar em cima do muro ou descer do muro, dar com a cara na parede, entre a espada e a parede ou simplesmente falar para uma parede. São todas expressões triviais, figurativas do carácter de alguém, mas nem sempre abonando em seu favor.
Finalmente há os muros de cada um, aqueles que nós próprios edificamos, que nos escudam de todas as agressões exteriores e que vamos aumentando todos os dias, pedra a pedra, tijolo a tijolo; há a fachada pública que normalmente adquire revestimento antichoque, e há a outra, aquela em que, pedras à parte, podemos ser nós próprios.
Eu não queria ter um muro à minha volta. Não me agrada a ideia de andar por aí couraçada, qual Golem bíblico, contra as investidas das tormentas, mas neste país, que em pleno século XXI podemos comparar ao Muro das Lamentações, é preciso ter-se consistência e fortificar o intelecto e as acções e, quantas vezes, empedernir o peito. Lamentavelmente, por cada ideia de abertura e transparência pela qual me queira pautar na vida em sociedade, vejo-me a acrescentar mais um tijolo no muro.

«Something is rotten in the state of Denmark»*

Cristina Torrão, 10.11.19

Quando se fala na compra da Gronelândia, por parte dos EUA, costumo rir-me, na convicção de que a Dinamarca nunca o irá permitir. Há dias, porém, vi um documentário televisivo num canal alemão que me transformou esse riso num sorriso amarelo.

A Dinamarca, um país que se considera civilizado, tem mais em comum com os EUA de Trump do que o que se poderia pensar. Perante os olhares perplexos dos cidadãos dinamarqueses e alemães, o país escandinavo constrói, desde o Verão, uma cerca de metal ao longo de toda a fronteira que separa os dois países.

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Imagem daqui

A fronteira entre a Alemanha e a Dinamarca tem uma extensão de apenas 70 km, uma estreita faixa de terra entre os Mares do Norte e Báltico. Com o pretexto de se protegerem da peste suína africana, os dinamarqueses procedem à construção de uma cerca de metal com 1,50 m de altura, obra orçada em 10 milhões de euros. Apenas as estradas com postos fronteiriços serão poupadas. O motivo alegado é recearem que os javalis vindos da Alemanha possam levar consigo o vírus da peste suína africana, apesar de a doença não existir no país da Sra. Merkel. Os dinamarqueses, porém, alegam que, no ano passado, a peste suína africana foi detectada na Bélgica, a apenas 60 km da fronteira alemã. E, pelos vistos, acham que mais vale prevenir do que remediar.

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Imagem daqui

A população local, tanto de um lado, como do outro, está perplexa e descontente. Afinal, estamos a falar da fronteira entre dois países da Comunidade Europeia. Além disso, no Norte da Alemanha vivem muitos dinamarqueses, assim como é numerosa a comunidade alemã no Sul da Dinamarca. A cerca está a ser construída em plena natureza, em locais por onde as pessoas passeavam livremente, sem se preocuparem em que país estavam. Principalmente os alemães, que festejam, nesta altura, os trinta anos da queda do muro de Berlim, mostram-se muito desiludidos.

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Imagem daqui

Muita gente duvida da razão apresentada pelos dinamarqueses. Também o Ministro da Agricultura e do Ambiente do Schleswig-Holstein (o Land alemão que faz fronteira com a Dinamarca) põe em causa o sentido e a necessidade da construção da cerca. Afinal, serão as próprias pessoas, não os javalis, quem mais contribui para a disseminação da peste suína africana, nomeadamente, através do transporte de animais e de rações e de excursões de caça, sem se verificarem medidas de higiene e segurança. Por isso, se desconfia que a Dinamarca pretende proteger-se de outros “perigos”. É sabido, por exemplo, que, desde 2015, entraram quase dois milhões de refugiados e migrantes na Alemanha. Ou tratar-se-á de outro motivo, desconhecido de todos (menos do governo dinamarquês, claro)? A falta de transparência é incompreensível e está aberta a especulação.

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Imagem daqui

Os jovens dos dois países têm protestado pacificamente, por exemplo, usando a cerca como rede de voleibol, onde a bola é jogada de um país para o outro, ou enfeitando a cerca com artefactos coloridos. Mas a sua construção continua. E eu começo a acreditar que não será assim tão difícil o governo dinamarquês entrar em acordo com o Trump...

 

*In Hamlet, William Shakespeare