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Delito de Opinião

Aprender até morrer

Maria Dulce Fernandes, 25.08.24

Hoje aprendi que o governo talibã do Afeganistão, além  de obrigar as suas mulheres a vestir a roupa da cama para que os homens não incorram em tentação, "aconselha" também, e pelo mesmo motivo,  as mulheres a "evitar o som em público ou a voz elevada, incluindo cantar, recitar, ou falar em microfones".

Umas sussurram enquanto os outros zurram, pois quem por lá manda são as vozes de burro.

É assim, aprender até morrer...

 

Bacall 'in excelsis'

Pedro Correia, 13.08.24

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Tinha um jeito único de olhar. Que lhe vinha de uma timidez profunda: poucos suspeitavam dela, chegando a confundi-la com sobranceria ou arrogância.

Baixava a cabeça e mirava-nos daquela forma, com os olhos em ângulo ascendente. E foi assim fotografada uma e outra vez, milhares de vezes, pelas câmaras que procuravam a sua prodigiosa fotogenia.

Era um olhar inconfundível: não houve outro como este no cinema.

 

Lauren Bacall era a última de uma estirpe rara. Vinha de um tempo em que a fama estava longe da banalização hoje tão corrente e transportava ecos dessa época tão distinta da nossa, em que havia um toque de mistério e majestade associado a quem imperava no mundo do espectáculo.

Era uma deusa do celulóide, como Ava Gardner, Rita Hayworth, Gene Tierney, Grace Kelly, Elizabeth Taylor e a eterna Marilyn Monroe. Cada vez que iluminava um pedaço de celulóide produzia em nós, mortais espectadores de osso e carne, o efeito de uma aparição.

Certas pessoas são assim: impõem-se pela sua presença. O cinema, quando não receia ombrear com qualquer outra forma de expressão artística, potencia e amplifica esta aura. Com a vantagem acrescida de ser um repositório excepcional de momentos inapagáveis.

 

Por este motivo teremos sempre Lauren Bacall entre nós. Atirando a Humphrey Bogart -- paixão na tela e na vida -- uma das mais fantásticas deixas de que há memória na Sétima Arte. Foi em To Have and Have Not -- o primeiro filme dela, o primeiro filme deles, rodado em 1944. Chamava-se Slim nessa fita, nome adequado para designar a figura esbelta que nunca deixou de ter.

Slim olhava Bogart, que ali se chamava Steve, daquele jeito único. Confessou muitos anos depois, num livro de memórias, que estava aterrorizada no momento em que rodaram a cena, filmada por Howard Hawks com base num roteiro de William Faulkner inspirado numa novela de Ernest Hemingway.

Tinha apenas 19 anos e ocultava o pânico de se encontrar num plateau cinematográfico, rodeada de celebridades. O que contribuiu para lhe baixar o tom de voz, já grave por natureza. E acentuar a intensidade daquela mirada tão singular e expressiva.

Ao vê-la, ninguém a suporia sequer nervosa. Isto ajuda a perceber o fascínio da arte de representar, ao alcance apenas de alguns eleitos.

 

«Sabes assobiar, não sabes, Steve? Basta juntar os lábios... e soprar», disse-lhe Slim/Bacall.

Steve/Bogart ficou preso para sempre àquela voz, àquele olhar só gélido na aparência.

Juntaram os lábios, os corpos, as almas e viveram felizes como nos filmes. Até a morte dele os ter separado.

Hoje bem cedo, tantos anos depois, alguns cinéfilos escutaram um assobio vindo de muito longe. Sinal inequívoco: eles voltaram a encontrar-se.

 

Texto reeditado, no 10.º aniversário da morte de Lauren Bacall

A Mulher do Ano

Pedro Correia, 01.08.24

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Ainda só estamos em Agosto, mas elejo-a já como Mulher do Ano, por mérito próprio: MARIA CORINA MACHADO. Heroína da Venezuela, luta com a força da razão contra a tirania do misógino Maduro e do seu séquito de homens «de barba rija» (major-general Agostinho Costa dixit) reclamando para o seu povo uma das mais belas palavras em qualquer idioma: Liberdade.

Num país de 28 milhões de pessoas que viu partir mais de 7 milhões na última década para escaparem à catástrofe económica e social a que 25 anos de regime "socialista" o condenaram. Já perdeu cerca de um quinto da população, registando hoje a segunda maior crise migratória a nível mundial, só superado pela Síria. Cerca de dois mil venezuelanos cruzam diariamente a fronteira, segundo estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Na Venezuela "bolivariana", onde 19 milhões de pessoas sofrem graves carências alimentares e sanitárias. Onde continuam a registar-se execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, casos documentados de tortura (nas celas da sinistra SEBIN, a PIDE do chavismo-madurismo) e agressões sexuais contra militantes da oposição, como denuncia o Observatório dos Direitos Humanos.

Maria Corina vai vencer, não tenho dúvidas. A Venezuela que Chávez e Maduro transformaram num narco-estado será livre. Da miséria, da corrupção, da prepotência, da opressão.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 31.07.24

«Substituir "mulheres e raparigas" por "pessoas que menstruam" não é inclusivo. É exclusivo - porque exclui as mulheres e raparigas. É anticientífico - porque só corpos de milheres menstruam. É misógino - porque apaga as mulheres de um assunto que as impacta; porque espera que as mulheres (que são a maioria da população) se anulem em prol de meia dúzia de pessoas que acreditam que nasceram no corpo errado e teimam que o mundo valide os seus sentimentos (ao invés de simplesmente viverem a sua vida como lhes apetece, sem maçar terceiros que nem sequer estão interessados); porque impõem que "mulher" seja definido por homens que se identificam como mulheres (e não menstruam), ao invés de pelas mulheres.»

 

Maria João Marques, no Público

Reflexão do dia

Pedro Correia, 19.07.24

«A menstruação resulta do sexo com que se nasce. Ao diluir o termo mulher no grupo de "pessoas que menstruam", ou de "pessoas portadoras de útero", ou ao inventar o termo mulheres cis para mulheres que se identificam com a anatomia feminina com que nasceram, como se existissem mulheres nascidas com anatomia masculina, é não só a confusão que passa a raiar a paranóia, mas também o universo feminino que fica debaixo de fogo, ferido por uma linguagem que, pretendendo-se inclusiva e libertadora das amarras biológicas, tem o resultado inverso, reduzindo as mulheres às suas características biológicas e remetendo-as para uma subcategoria do seu grupo sexual.»

 

Ana Cristina Leonardo, no Público

 

O Eixo

Putin, caudilho de um regime sem mulheres. Tenebrosamente só

Pedro Correia, 19.07.24

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Cada qual a seu modo, quatro mulheres mandam hoje na Europa: a alemã Ursula Von Der Leyen (ontem reeleita por larga margem para novo mandato como presidente da Comissão Europeia, muito acima dos 360 votos necessários), a maltesa Roberta Metsola, recém-reeleita presidente do Parlamento Europeu, a estónia Kaja Kallas, nova chefe da diplomacia comunitária, e Giorgia Meloni, que desde Outubro de 2022 chefia o Governo de Itália, terceira maior economia do euro. 

De famílias políticas diferentes, têm um traço comum: expressam intransigente apoio à Ucrânia, vítima da guerra de agressão que lhe move Moscovo.

Formam um contraste gritante com a ditadura russa, sistema sem mulheres, sistema de um homem só. Tenebrosamente só. 

O contraste torna-se ainda mais evidente quando reparamos nos aliados internacionais de Putin. O Eixo Moscovo-Minsk-Pequim-Teerão-Pionguiangue é formado em exclusivo por homens. «De barba rija», como diria um major-general putinófilo que ainda pontifica numa canal televisivo.

Até nisto o caudilho do Kremlin navega contra a História. Rumo a um passado ancestral que nada tem a ver com o nosso tempo.

 

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Parecem irmãs

Cristina Torrão, 20.05.24

Há dias, deparei com um post de Maria João Pessoa, no Facebook, questionando um hábito social que também sempre me causou mal-estar. Piropos e certos “elogios” a mulheres é, como se sabe, um assunto polémico. A esmagadora maioria deles foram fabricados sob a óptica masculina patriarcal e, sinceramente, deixam muito a desejar. Um deles é o de ver mãe e filha numa foto e dizer-se "parecem irmãs", ou "quem é a filha?".

Comentários destes pretendem ser gentis, mas pensem bem: mesmo admitindo que uma mulher foi mãe cedo, digamos, com dezoito anos, alguém acha que uma miúda de quinze fica feliz ao saber que parece irmã de uma mulher de trinta e três? Ou que uma jovem de vinte gosta de parecer irmã de alguém com trinta e oito? A mera ideia de parecer irmã da mãe, independentemente da idade, não é nada lisonjeiro para uma miúda. Nem para ninguém. Mãe é mãe! É alguém que está muito acima do nosso nível, sejamos filha ou filho! Eu detestava, quando ouvia comentários destes, na minha juventude. Mas sorria, claro, e fingia estar muito feliz.

Por seu lado, a minha mãe derretia-se de vaidade. Porém, também neste caso, sejamos sinceros: será saudável, para a auto-estima de uma mulher de quarenta anos, aparentar a falta de experiência de uma jovem de dezoito? Como diz a Maria João Pessoa, dá-se a ideia de que a mãe ainda não conseguiu amadurecer. A mentalidade patriarcal está cheia de armadilhas em forma de elogio. Neste caso, são logo duas: além de se dizer a uma mulher que parece não ter maturidade para ser mãe da jovem a seu lado, dá-se igualmente a ideia de que ela só pode ser bonita se aparentar ter menos vinte anos (no mínimo).

Não estou a dizer que é proibido elogiar. Faça-se, porém, de outra maneira, por exemplo, diferenciando as virtudes físicas e de indumentária de cada uma, sem nunca as comparar. Também nada contra o facto de se dizer ser a filha parecida com a mãe e/ou que são as duas bonitas, desde que não se caia no erro de lhes atribuir uma idade que não têm.

 

Adenda: por ter referido piropos, neste postal, várias pessoas me corrigiram, dizendo que não se trata de um piropo. Pois não. Nem eu digo isso. Chamem-lhe "chavão", ou "galanteio", eu prefiro chamar-lhe "elogio falso". Tanto é dito por homens, como por mulheres, e perpetua a ideia de que uma mulher deve ficar jovem toda a vida. Usar exemplos com velhas amigas, que conhecemos e nos conhecem bem, está naturalmente desfasado em relação ao significado do que escrevi (é ler bem, faz favor). E só mais uma coisa: porque será que não se usam frases deste tipo com homens e seus filhos adolescentes?

Governo com mais mulheres

Pedro Correia, 06.04.24

 

É o Governo que tem mais mulheres desde sempre em Portugal: são 24 entre 59 titulares de ministérios e secretarias de Estado.

Percentagem: 40,6%.

Facto positivo, sem sombra de dúvida.

 

ADENDA: Escrever que este é o Executivo com «mais mulheres desde o 25 de Abril», como faz o Polígrafo, é um sofisma. Antes do 25 de Abril - I República e Estado Novo - só houve uma mulher no Governo: Teresa Lobo, subsecretária de Estado da Saúde e Assistência (1970-1973). 

Dignidade

Pedro Correia, 23.03.24

É a palavra que me ocorre neste momento tão doloroso para a princesa de Gales e a sua família. E para a esmagadora maioria dos britânicos, chocados com a inesperada notícia da doença cancerosa da nora do Rei - tão jovem ainda, aos 42 anos.

Dignidade, sim. Além de humildade, ao revelar o seu precário estado de saúde sem a menor pompa associada à realeza. Como se fosse qualquer de nós. Talvez com mais coragem e desassombro do que a maioria de nós.

Fora do Reino Unido, somos igualmente muitos a desejar-lhe que recupere. E que, para ela, estes dias de pesadelo possam vir a ser apenas uma amarga mas distante recordação.

Ele há mulheres

Cristina Torrão, 08.03.24

Ele há mulheres

que mantêm fria a cabeça

na mais opressiva situação.

Logo lhes sai a resposta seca,

ou a adequada reacção.

Infalíveis computadores,

neurónios como chips,

músculos como tractores,

ninguém lhes chega aos acepipes.

Não há medo, nervosismo,

nem vergonha, ou intimidação.

Determinada tecla

acciona a correspondente reacção.

São imunes ao dramalhão.

 

Raciocinam numa fracção de segundo,

indiferentes aos olhares de meio mundo,

ou à solidão de um poço fundo.

E logo se lhes levanta o joelho,

direito à tomatada.

E logo se lhes levanta a mão,

aplicando a bofetada.

E logo se lhes solta a língua,

sem gaguejar, sem hesitar,

em impropérios ao camarada.

 

Ele há mulheres

que desdenham das mulheres

desprovidas de chips,

possuindo detestáveis tiques.

Não pensam com ligeireza,

mostram (sacrilégio!) fraqueza.

O medo deixa-as bloqueadas,

certas palavras, intimidadas,

certas situações, envergonhadas.

Ficam arrasadas,

sentem-se culpadas,

por não terem reagido a preceito

e levado tudo a eito.

 

Ele há mulheres

que criticam estas mulheres

sem dó nem piedade.

E deixam impoluto o homem

que as pôs em dificuldade,

que as ofendeu, ou abusou

de profícua oportunidade.

As indefectíveis mulheres

avaliam de longe a situação

no conforto do seu cadeirão.

“Havia de ser comigo,

Dizia isto,

fazia aqueloitro

e deixava o desgraçado num oito”.

Palavras de conforto,

de alento, de carinho,

solidariedade e apoio

para as suas semelhantes?

Mas que tamanhas lacrimejantes!

Não reagiu?

É porque gostou.

Não respondeu?

É porque bem achou.

Queixa-se do homem?

Ainda lhe estraga a vida

por tamanha lana-caprina.

 

Ele há mulheres

duras, implacáveis,

de reflexos memoráveis,

matemáticas e insensíveis,

cheias de soluções exequíveis,

amantes dos clássicos:

“Ai se fosse comigo”;

“Segurem-me que os desfaço”.

Treinadas, musculadas,

engomadas, engravatadas.

 

Ele há mulheres…

Que parecem (certos) homens.

© 2024 Cristina Torrão

 

Desdenhar da fraqueza é cobardia. Solidariedade é coragem.

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Imagem daqui

 

A dignidade humana é intocável.

Direitos das Mulheres são Direitos Humanos.

Quando um véu vale mais do que uma vida

Pedro Correia, 20.10.23

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O Hamas é financiado, treinado e armado pelo Irão, Estado teocrático e homicida.

Inimigo n.º 1 do Ocidente.

Inimigo n.º 1 do seu próprio povo.

Capaz de liquidar jovens indefesas, como a curda Jina Mahsa Amina, ontem justamente distinguida (a título póstumo) com o Prémio Sakharov pelo Parlamento Europeu. Morta após três dias de cruel detenção pela polícia religiosa por se ter alegadamente atrevido a sair à rua com o véu islâmico mal posto.

É indispensável que as jovens portuguesas de 22 anos (idade da infeliz Jina, assassinada em Setembro de 2022) saibam que ainda existem ideologias totalitárias prontas a pôr um pedaço de tecido acima da vida humana.

Raras vezes um prémio foi tão merecido e comovente como este, extensivo ao movimento de libertação das mulheres iranianas. O Parlamento Europeu - que nele honra a prestigiada memória de Andrei Sakharov, outra vítima do totalitarismo - volta a ser digno de elogio.

 

Leitura complementar:

- Os barbudos que odeiam as mulheres (25 de Setembro de 2022)

- Onde estão as feministas? (18 de Outubro de 2022)

Ainda o Dia Internacional da Mulher

Pedro Correia, 09.03.23

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No Afeganistão:

O brutal regime de Cabul discrimina as mulheres de todas as idades, começando pelas mais jovens, impedidas de frequentar o ensino secundário e universitário. Os casamentos forçados e as violações são frequentes no Afeganistão, onde a camarilha talibã tomou o poder em Agosto de 2021. Após 20 anos de inédita liberdade neste país, as mulheres voltaram a ser banidas da política: até esse Verão, preenchiam 27% dos assentos parlamentares. Hoje não são autorizadas a usar transportes públicos excepto na companhia de um homem da sua família. Em regra, só podem sair de casa devido a assuntos urgentes, mas terão de usar burca. Activistas dos direitos das mulheres são sistematicamente detidas e agredidas nas esquadras policiais. O Ministério dos Assuntos Femininos deu lugar ao Ministério da Propagação da Virtude e da Prevenção do Vício.

 

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No Irão:

O brutal regime de Teerão discrimina as mulheres, tratando-as como cidadãs de segunda classe. Permite a violência contra mulheres e tolera a exploração sexual de meninas. Prende, multa e açoita mulheres por aparecerem em público sem cobrir os cabelos com o véu islâmico. Reprime ferozmente as activistas pelos direitos das mulheres. Pune desproporcionalmente as mulheres no sistema judicial. Nega às mulheres todas as oportunidades políticas e económicas. Favorece os homens em detrimento das mulheres nas lei de família e sucessões. As mulheres que forem apanhadas de cabelo descoberto e roupas consideradas "imorais" podem ser presas durante dois meses pela Polícia da Moralidade criada após a implantação da ditadura teocrática, em 1979. Em alternativa, o código penal iraniano prevê que recebam «até chicotadas».

O talento das mulheres

Cristina Torrão, 13.11.22

Durante muitos séculos (ou seria melhor dizer milénios?), aceitava-se, como argumento para o suposto talento superior dos homens, dizer que era só comparar os feitos de uns e outras. 99% das obras-primas (fosse em literatura, pintura, música ou nas restantes artes), das invenções, das descobertas científicas, das obras de engenharia, etc. era de autoria de homens.

Por incrível que pareça, só nos últimos anos se começou a tomar consciência de que, salvo raras excepções, as mulheres não tinham, por um lado, acesso ao conhecimento e, por outro, andavam ocupadas com outras tarefas, impeditivas de se dedicarem a actividades consideradas mais prestigiantes. Era interessante verificar a contradição: se os homens se elogiavam por serem os maiores criadores e inventores, aplaudiam, ao mesmo tempo, as primeiras mulheres a serem aceites numa Universidade. Tinham a resposta à frente da cara e não a viam. Se isto é inteligência…

A esmagadora maioria das mulheres seguia-lhes aliás os passos. Mas havia excepções, mulheres com coragem para admitir que a educação que lhes impunham desde o berço só servia o universo masculino.

A bávara Emerenz Meier (1874-1928), pertencente a uma família de lavradores, foi uma dessas mulheres. Começou a escrever sobre a sua terra-natal ainda em criança e, em 1893, foram publicados os seus primeiros contos no periódico regional Passauer Donau. Três anos mais tarde, foi publicado o seu único livro. Mas também escreveu poemas, onde, muitas vezes, se destacava um tom irónico. Em Março de 1906, emigrou para os EUA com a sua mãe, juntando-se ao pai e às irmãs, no bairro alemão de Chicago. Casou em 1907, mas o marido morreu três anos mais tarde de tuberculose, deixando-a com o filho pequeno. Emerenz Meier não deixou de ser dona-de-casa, durante toda a sua vida e, durante a Lei Seca, fazia cerveja para si e os seus compatriotas.

No Jornal Católico da diocese de Hildesheim (edição nº 33, de 21-08-2022) deparei com um seu pequeno poema de traço irónico, o qual não resisto a traduzir (segue-se o original em alemão):

 

Tivesse Goethe de engrossar sopas,

De salgar almôndegas,

Schiller de limpar a pia,

Heine de remendar o que rompia,

Esfregar o chão, matar baratas,

Ah, os cavalheiros,

Não teriam sido

Esses poetas virtuosos.

 

Hätte Goethe Suppen schmalzen,

Klöße salzen,

Schiller Pfannen waschen müssen,

Heine nähen, was er verrissen,

Stuben scheuern, Wanzen morden,

Ach die Herren,

Alle wären

Keine großen Dichter worden.

 

Emerenz Meier (1874-1928)

Os barbudos que odeiam as mulheres

Pedro Correia, 25.09.22

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Teocracia islâmica oprime o Irão há 43 anos

 

O Irão está em pé de guerra. Não contra outro país, mas contra si próprio. Ou antes: o Estado teocrático dos aiatolás declarou guerra ao povo iraniano. Sobretudo às mulheres. Pelo simples facto de serem mulheres. 

Há estados totalitários onde impera o ódio de classe ou o ódio racial. No Irão sob a bota dos clérigos barbudos impera o ódio sexual. Os aiatolás - alvos de tanta tolerância e "compreensão" em círculos bem-pensantes do Ocidente - odeiam as mulheres. E agem em conformidade, exercendo sobre elas uma repressão permanente, que agora suscita um gigantesco levantamento popular neste país sujeito há 43 anos a uma das mais ferozes ditaduras do planeta.

 

Tudo começou no dia 16 com a morte de uma jovem iraniana curda, detida e agredida pela imoral "Polícia da Moralidade" por mostrar parte do cabelo na via pública, algo interdito neste Estado que em 1979 mergulhou nas trevas medievais.

Mahsa Amini, de apenas 22 anos, sucumbiu à violência policial. As suas imagens, já agonizante, indignaram milhões de jovens de ambos os sexos que agora arriscam a vida nas ruas. Revoltam-se contra a brutalidade do totalitarismo islâmico neste país onde nascer mulher é sofrer dupla indignidade.

 

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Mahsa Amini, assassinada aos 22 anos no Irão por «mostrar o cabelo»

 

Os clérigos, assustados com a revolta popular em todas as províncias do país, fizeram aquilo em que mais se especializaram: ordenaram aos esbirros do poder que atirassem a matar. Pelo menos 50 pessoas já tombaram sob as balas assassinas. A tropa está a ser mobilizada para esmagar a rebelião civil, entre apelos públicos da ala mais extremista do regime à execução sumária dos jovens que se atrevem a desafiar o Governo.

Mas a rebelião cívica continua: mulheres sem véu exibem com orgulho o cabelo na via pública, jovens registam imagens que divulgam nas redes sociais apesar de o Governo ter imposto sérias restrições à internet. Nas ruas, a palavra mais escutada é «liberdade».

 

A nova vaga de protestos pode ser afogada em sangue, como aconteceu em 1999 e 2009, às ordens de um regime repugnante, que apenas subsiste pelo aparelho repressivo montado ao longo destas quatro décadas. Detenções ilegais de opositores e a prática de tortura nas prisões tornaram-se banais no Irão, como tem denunciado a Amnistia Internacional.

Estes barbudos que odeiam as mulheres são hoje fortes aliados de Vladimir Putin e da sua corte de oligarcas, algo que faz todo o sentido. Estão bem uns para os outros.

Eterno Feminino

Maria Dulce Fernandes, 19.07.22

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Dei comigo para ali nua... pois se nua não estava, para que serviriam os panos que me cobriam a nudez, se pelas pregas resvalavam carne e pele em abundância suficiente para encher a ânfora maior repousada à sombra seca duma árvore de folha perene, que resistia debaixo dum calor insuportável.
Por todo o lado, belas e musculadas mulheres, morenas e sorridentes, seminuas naqueles panos parcos e finos, se exercitavam debaixo dum abrasador sol de fogo, fazendo alongamentos ou envolvidas num abraço de força e destreza, dentro dum círculo desenhado no chão, com a pele gotejada de suor que lhes conferia um brilho adamantino, atraente e formidável.
"Anda, bacante, é a tua vez." Percebi que se dirigiam a mim e atrevi-me a perguntar: "Bacante Porquê?"
"Ora mulher, branca e gorda é certo e seguro que não pertences ao culto de Artémis. Crês tu porventura conseguir finalizar a Heraia?" Riram todas. Afinal era mesmo engraçado que alguém sem preparação física visível se imaginasse sequer nos primeiros pés da Heraia... Se se obrigasse a atingir um estádio poderia até ter fim idêntico ao do valoroso Feidípedes, que engrossa agora o panteão dos glorificados pela morte magnífica. 

Afinal estávamos em Marathónas, caramba!

Embalada pelo conhecimento adquirido em muitas horas de conversa/estudo com a filha historiadora, atrevi-me a contrapor que de onde eu vinha as mulheres eram fortes e resistentes e não corriam só a Heraia, corriam todos os seis sextos, corriam a Maratona como os homens, taco a taco, lado a lado, com a mesma vontade, o mesmo vigor e muitas vezes melhor classificação no podium.
Fizeram-me calar logo, não fosse homem de atalaia ouvir tamanho sacrilégio e condenarem-me sem apelo nem agravo ao monte Taigeto. "Mas isso do Taigeto não é só para deficientes?", perguntei. Há olhares que valem mil palavras. Os delas disseram tudo.
Ripostei: "Se eu vivesse numa terra onde os homens brutalizam as mulheres, que se calam por respeito e medo e os da religião fossem feios, porcos e maus, permitissem incestos, violações e consanguinidades, fugiria a sete pés ou torna-me-ia eremita!!" Parei de imediato para pensar na ironia das palavras que proferira, que transbordavam falsidade por todas as entrelinhas... eu, a apregoar sobre o meu mundo de telhados de vidro... 
Sorri tristemente, encolhi os ombros e dei o braço à top-model que estava a meu lado:
"Vá, vamos beber qualquer coisa fresca, que eu ensino-vos sobre lingerie sensual, dores de cabeça e de como fazer os homens pensar que são os donos da vontade."
O sol pôs-se, caiu a noite, surgiram fogueiras mil, rimos, bebemos e adormecemos abraçadas como irmãs, filhas dum sangue antigo, espesso e tão poderoso que perdurará pela eternidade.

Eunice

Pedro Correia, 15.04.22

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Nunca entrevistei a Eunice - e tenho pena. Era assim que os portugueses a conheciam: Eunice. Representou durante mais de sete décadas, até há poucos meses. A bem dizer, até ao fim. Só lhe faltou morrer em palco para avolumar o mito. Mas teve uma carreira artística plena e foi consagrada pelo maior dos títulos: a ovação contínua dos espectadores. Que foram mudando, só ela se manteve.

Parecia eterna, como parece o grande Rui de Carvalho, agora o último sobrevivente daqueles gigantes portugueses da arte de representar nascidos há cerca de cem anos, na década de 20 do século passado. A Carmen Dolores, o Raul Solnado, a Milu, o José Viana, a Glicínia Quartin, o Armando Cortez. A enorme Amália. 

Vi-a no cinema desde miúdo (em filmes como Camões e Ribatejo), lembro-me dela desde sempre na televisão (por exemplo n'O Jogo da Verdade, primeira série dramática produzida pela RTP, e A Banqueira do Povo, talvez a melhor telenovela portuguesa já realizada) e aplaudi-a no teatro (em peças como Gin GameA Casa do Lago). Como se costuma dizer, era muito lá de casa. Das casas de todos nós.

Era de outro tempo, tinha contracenado com figuras quase lendárias, parecia transportar consigo toda a memória do palco. De uma irrepreensível qualidade em vários registos, do drama à comédia. Não se ajustava aos tradicionais cânones da beleza mas era daquelas raras figuras que bastavam irromper em cena para deslumbrar a plateia com o fulgor do seu magnetismo pessoal.

Ao contrário de tantas outras neste país ingrato, Eunice Muñoz foi repetidamente e justamente louvada em vida. Até na sua Amareleja natal, contrariando o aforismo bíblico de que ninguém é profeta na sua terra. E mereceu também o apreço unânime dos colegas de profissão, nada fácil de alcançar. 

Entra em definitivo na imortalidade após uma vida longa, cheia e realizada. Inclino-me em sua memória, numa vénia sentida e grata.

A Mulher

Pedro Correia, 08.03.22

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Elena Ossipova tem 80 anos. Nasceu em Leninegrado quando a segunda maior cidade russa se encontrava cercada por forças da Alemanha nazi durante a II Guerra Mundial. Conhece desde o berço a violência dos conflitos bélicos.

Chocada com a agressão do seu próprio país à Ucrânia, esta pintora e activista decidiu ostentar dois rudimentares cartazes de protesto - um a favor da paz, outro contra a utilização de armas nucleares. Onde se liam frases como estas, escritas em russo: «Filho, não vás para esta guerra! Soldado! Larga as armas e torna-te um verdadeiro herói! Não dispares!»

Discurso interdito na Rússia totalitária de Vladimir Putin onde a palavra guerra está banida do léxico público e uma mãe que chore um filho soldado morto na Ucrânia arrisca pesada pena de prisão por traição à pátria. 

Mesmo assim Elena saiu à rua, em Sampetersburgo. Exibindo as mensagens que redigiu naqueles cartazes considerados subversivos pelos esbirros do ditador. Fisicamente alquebrada mas com notável desassombro cívico - equivalente ao dos sete mil cientistas e académicos russos que se atreveram a escrever uma corajosa carta aberta ao déspota do Kremlin, pedindo-lhe que ponha fim à guerra. É quanto basta para poderem penar nos calabouços.

Durou poucos minutos, o protesto de Elena na passada quarta-feira. Oito polícias antidistúrbios, munidos de capacetes e coletes antibalas, não tardaram a comparecer no local, detiveram-na e transportaram-na para local incerto. Tal como já aconteceu a mais de dez mil pessoas indiciadas desde 24 de Fevereiro em várias cidades russas por delito de opinião. Ninguém escapa à senha persecutória dos lacaios fardados. Que também já detiveram crianças pelo «crime» de pretenderem pôr flores à porta da embaixada ucraniana em Moscovo.

Esta senhora com idade para ser avó daqueles que a prenderam deu ao mundo uma inequívoca lição de dignidade moral. Mostrando ter enorme robustez interior apesar da aparência frágil. Confirmando que é imperioso não confundir Putin com o povo russo, que sofre hoje quase tanto como os vizinhos ucranianos.

Não concebo imagem com maior força simbólica neste Dia Internacional da Mulher.