“Todavia, é com verdadeira alegria que me acho neste canto que a política me deixa. Faço deste canto de boa vontade o lugar do espectáculo para assistir às últimas agonias do pensamento em Portugal. Trata-se de cair bem, meus amigos, como os antigos gladiadores: ‘Oh, egoísmo mundano, os que vão morrer saúdam-te’.
E depois, meus caros amigos, eu acho admirável a sociedade moderna, a sua política perfeita, a sua indústria magnífica, a sua agiotagem providencial, o seu luxo simpático, a sua retórica florida, a sua arte económica, os seus sonhos de ouro, mas persisto em invejar aqueles como o antigo Daniel podem contemplar as estrelas, enquanto os bichos sociais se devoram na sombra” – Eça de Queirós, O Milhafre
Durante pouco mais de duas semanas dediquei-me a um exercício que foi o de apresentar recortes, frases soltas, citações, colhidas aqui e ali, sobre temas de actualidade relacionados com Portugal, com a governação, com os portugueses. Houve quem visse aí uma afronta a um poder legítimo e democrático saído de eleições há pouco mais de dois meses. Muitos ficaram incomodados porque não identificaram nesses recortes, nessa transparência, uma "nova forma de fazer política" e de "falar verdade" aos portugueses. Reconheceram, contra o que desejavam, frases que não gostariam de ter lido, algumas de companheiros de partido e de gente que levou os últimos anos a suspirar pela saída de José Sócrates. Viram reflectidas as atitudes e os comportamentos de quem tendo alcançado o poder e anunciado a mudança acabou por, inexplicavelmente, para quem não o esperava, assumir modelos herdados do passado que contrariavam o discurso pré-eleitoral. Nalguns casos, o discurso já era pós-eleitoral e pós-tomada de posse e ainda assim surgia inquinado sem que a Oposição, ainda carecida de liderança e em convalescença, tivesse de fazer alguma coisa para demonstrá-lo.
Não cometerei, não obstante, a deselegância - esse não é o modelo que sigo – de chamar aos actuais responsáveis, como outros fizeram, nesta mesma blogosfera e quantas vezes protegidos pelo anonimato, os nomes que todos recordam terem sido apontados a quem saiu e às suas políticas.
O exercício que tive a “ousadia” de fazer foi recebido por alguns incontrolados e indefectíveis cristãos-novos do “passismo” – assim se deverá chamar a "nova forma de fazer política" inaugurada em 5 de Junho – como um “ressabiamento socratista”, quando qualquer pessoa interessada e diligente que tivesse lido o que escrevi nos últimos anos, a começar por esta tribuna, dificilmente poderia concluir, com seriedade e de boa fé, que eu alguma vez tivesse sido um “socratista” ou moleque de alguém, e que ressabiado é coisa que não sou (nem tolero, pois continua a haver muita coisa em que, interpretem como quiserem, me afasto do politicamente correcto). A incompreensão faz parte da natureza humana.
Se agora fizermos um outro exercício, verificaremos que muitas das (poucas) medidas já tomadas por este Governo faziam parte do pacote da troika, não se revestindo de qualquer inteligência ou originalidade (à semelhança das citações que fiz); algumas outras não foram mais do que um empurrar lá mais à frente a resolução dos problemas, entregando a grupos de trabalho ou comissões de circunstância a produção de documentos de apoio à decisão que já deviam ter sido preparados – o caso da RTP é de todos o mais flagrante – ou decisões mitigadas e que aparentemente se destinavam a revelar uma "nova forma de fazer política" e "falar verdade" aos portugueses, que, salvo uma ou outra excepção, não passaram de gestos inconsequentes, populistas e em relação aos quais se dirá, não tendo que citar o "detestado" Miguel Sousa Tavares, que até gente tão insuspeita quanto Manuela Ferreira Leite alertou para o perigo da demagogia.
De quem disse aos portugueses que estava preparado para governar, que tinha uma equipa capaz e competente e que se impunha tomar o poder numa situação de verdadeira emergência nacional (também penso que era), esperava-se que fosse capaz de fazer as coisas de outra forma, não dando o flanco à crítica tão depressa e de forma tão atabalhoada.
Neste curtíssimo espaço de tempo que leva na primeira linha da acção política, Passos Coelho e a sua equipa já se envolveram num número nada desprezível de trapalhadas, começando logo pelo duplo chumbo de Fernando Nobre, passando pelas confusões desencadeadas pelo “caso Bairrão”, as nomeações dos seus acólitos para a CGD (com uma poupança de € 6000!), os inquéritos (parece que é mais do que um) aos serviços "secretos", a forma como o imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal foi criado ou os transportes foram aumentados; sem esquecer a forma como se continuaram a “meter” motoristas e especialistas (de quê, pergunta-se, como tão bem recordava Manuela Ferreira Leite) nos gabinetes ministeriais ou se ocupou o espaço público com “fait-divers”, tomando de assalto as redes sociais, inundando a comunicação social de “meias-notícias” e de meias-verdades, de que constitui exemplo mais recente o afastamento de Pedro Rosa Mendes da delegação da Lusa em Paris e as inacreditáveis explicações dadas pelo seu principal responsável, sem que se descortine qualquer outra intenção que não seja o afastamento de alguém incómodo, a coberto da redução da despesa, e intoxicar a opinião pública, como ainda hoje a revista Visão tão bem desmonta.
Mas se a isto acrescentarmos a frivolidade de algumas atitudes, a maneira como se confunde aquilo que é informação de interesse público com puros e simples actos de propaganda por parte de quem, sublinhe-se de novo, ainda não leva dois meses completos de governação (veja-se o que Ricardo Araújo Pereira escreve no mesmo número da Visão), ou o episódio das “férias” do Governo, em especial as do primeiro-ministro, naquela que é mais uma rocambolesca situação em que se deu o dito por não dito, começamos a ter uma ideia da estratégia seguida. Ou da falta dela quanto aos assuntos importantes.
E não se queira, como parece ser o caso da aposta feita por algumas pessoas próximas do Governo, colocar essa questão num patamar menosprezável, visto que esses gestos têm tanta ou tão pouca importância como o sinal dado aos portugueses pelas viagens em económica. Não está em causa, na minha modesta perspectiva, dizer que o primeiro-ministro não tem ou não deverá ter direito a férias como as goza qualquer outro “trabalhador”, ou que não deva tirá-las para assim se colocar no patamar dos “desgraçados” que não têm férias, nivelando por baixo. Para mim, isso é o que menos interessa e não vale a pena iludir os factos. Mas não deixa de ser sintomático que iguais atitudes no seu antecessor – como o ter ido de férias para o estrangeiro em alturas em que a crise não era sequer parecida com a que atravessamos (e não quero com isto dizer que estivesse de acordo com os destinos ou a oportunidade em que o anterior primeiro-ministro escolheu gozá-las) – fossem ao tempo encaradas como de lesa-pátria e de ofensa aos portugueses que atravessavam dificuldades.
Que diabo, deixemo-nos de querer fazer dos outros idiotas, sejamos justos e rigorosos: o primeiro-ministro não leva ainda dois meses de exercício de funções no seu "novo emprego" e já necessita de descansar? Descansar de quê? Em “tempo de guerra”? Estou seguro que qualquer trabalhador que entrasse para uma das empresas que foram geridas por Passos Coelho, Miguel Relvas ou administradas pelo Dr. Ricardo Salgado, que em tão pouco tempo está tão satisfeito com a acção do Governo que até, logo ele que é sempre tão prudente e comedido, já o elogia publicamente - fosse à luz da legislação laboral vigente ou do estatuto do funcionalismo -, não poderia tirar uma semana de férias para "descansar" ao fim de quarenta e cinco (45) dias de trabalho, a não ser que metesse uma "cunha" ao chefe e este soberanamente autorizasse o gozo antecipado à margem das regras aplicáveis ao comum dos trabalhadores, ficando o beneficiado eternamente grato ao patrão e a dever-lhe mais um “favor”. "Favor" que, estou certo, os portugueses, que em matéria de férias e pontes são bastante compreensivos, não irão cobrar a Passos Coelho e ao seu Governo se este dentro de quatro anos lhes apresentar resultados.
Percebo que muitos leitores não tivessem gostado de ler algumas das citações e comentários que foram feitos, mas isso faz parte das regras e estas nem sempre são as que nós queremos e na forma que gostaríamos que elas assumissem. As minhas declarações de interesses são conhecidas de todos. Nunca iludi ninguém ou escondi a minha condição, ou estados de alma, a começar pelos leitores deste blogue.
Compreender-se-á, por isso mesmo, que alguns se amofinem quando verificam ser a Passos Coelho um pouco mais difícil iludir Marcelo Rebelo de Sousa, Manuela Ferreira Leite, António Capucho, Rui Moreira, Miguel Sousa Tavares ou o vilipendiado Pacheco Pereira do que convencer Miguel Relvas, Marques Mendes ou o presidente da Lusa da excelência das suas decisões.
O rol de contratações de alguns que se especializaram em dizer mal dos que estavam e que agora convivem com as decisões das “alforrecas” e dos “torquemadas” que antes criticavam, e em relação aos quais só reconheciam defeitos, enaltecendo agora os méritos e as virtudes das irrelevâncias que por aí saltitam de canal em canal e de revista em revista, fazendo de conta que não ouvem os lugares-comuns e as banalidades debitadas sobre coisas como a “criminalidade gratuita” (sic), ante o olhar condescendente dos apresentadores pensantes de serviço, ou, ainda, enfatizando as novas atitudes (concordo, mais desempoeirada de alguns ministros), revela bem como em tão curto espaço de tempo os critérios de julgamento dos comportamentos do poder mudaram e aquela que era a bitola para julgar José Sócrates se transmutou.
Onde antes se via um mentiroso, um desavergonhado, um líder de seita do piorio, um "abrantes", vê-se agora uma alma impoluta, cheia de qualidades e virtudes, quase que diria um santo que aguarda a consagração da auréola, alguém que só nomeia em função do “critério da competência”, em relação ao qual estamos (estão, digo eu) sempre dispostos a dar o benefício da dúvida. Mas que, curiosamente, ao mesmo tempo é incapaz de dizer uma palavra, simples que seja, descomprometida, para condenar os insultos, as inanidades e as obscenidades regularmente proferidas e exibidas, de dedo espetado, com copo e sem copo, nos horários mais nobres, por um conselheiro de Estado do seu partido que se especializou na agressão, esta sim gratuita, a todas as instituições que não controla e a todos os que não pensando como ele além de serem ofendidos ainda têm, com os seus impostos, de sustentar a sua tropa de serventuários e avençados.
Aos meus críticos direi que não sou modelo de coisa alguma, que não pretendo afirmar-me como tal, que não concorro para primeiro-ministro, que tenho mais de sibarita do que de asceta, de homem livre - que sempre fui no pensamento e na acção - do que de funcionário, e que por essa razão não sou candidato, como nunca fui, a nenhum prato de lentilhas. Não me reconheço as qualidades, os talentos "inatos" e as vocações, que outros em si próprios vêem. E sei bem que é mais fácil criticar do que fazer. Aquela é infinitamente mais cómoda e prazenteira, mas não será por isso, se Deus quiser, que perderei o discernimento, a liberdade ou a independência, ainda que algumas vezes tenha de assumir atitudes de simpatia ou de proximidade em relação a realidades que me estão distantes e que ontologicamente repudio. Não fazendo favores, admito tais atitudes de forma limitada e não encapotada, como um exercício que me auxiliará a ver melhor, de uma forma mais crua, sem medo de me expor e de percorrer caminhos que não são os que defendo para melhor poder sublinhar o que entendo ser pertinente. E, em especial, decisivo quando se trata de pensar (mesmo mal e incompletamente) e de exercer direitos de cidadania.
Sei que alguns dos que entraram não vão tirar “férias”, uma semana que seja, porque aquilo que têm para fazer é mais premente e não se compadece com as acções de marketing político que estão sendo preparadas. Também sei que o que é apregoado pelo primeiro-ministro ou pelos seus colaboradores mais próximos não servirá de bitola ou de desculpa para os que falharem na concretização ou deixarem de realizar o que se lhes impõe. Como, de igual modo, de nada lhes servirá quando a opinião pública iniciar a accountability da sua acção e, exasperada e farta de esperar pelas febras, começar a pedir responsabilidades aos que tributam o trabalho isentando o capital e "protegendo" os gangues que arruinaram este País à sombra da tolerância com as offshores, com o tráfico de influências, com a corrupção mal disfarçada, a ineficiência, a obscuridade e a morosidade da justiça e a persistente fuga ao fisco.
E também não ignoro que a acção governativa não pode ser julgada pelas mensagens do Facebook, a temperatura do ar-condicionado nos ministérios, as viagens em classe económica ou o louvável exemplo da dádiva de sangue do ministro da Saúde (sou dador, por isso aprecio duplamente o gesto).
Estas são constatações que dispensam contraditório. Contraditório que, porém, deverá começar a ser exercido logo após as “férias” do primeiro-ministro. Para já, que o texto já vai longo, desejo que depois do que aconteceu o ano passado, este ano, na festa do Pontal, o líder do PSD/Algarve tenha o bom senso de não vir enaltecer a qualidade das salsichas e da entremeada servida pelo primeiro-ministro aos seus convivas. Já chega de espectáculos deprimentes. Uma situação como a que o País e a Europa atravessam dispensa a atenção que seja dada pelos media a números de circo, rodízios e chanatas.
Quando o Verão terminar acabará a folga. Com ele deverá finar-se o “estado de graça”. Ou, se se quiser, de “desgraça”. E também o passado recente, o qual terá de ser enterrado contra a vontade de todos aqueles que não se cansam de embalsamá-lo, por entre meias-palavras, a propósito e a despropósito, como se estivéssemos todos condenados a ser perseguidos pelo passado.
Saber olhar o futuro, mostrando estofo e coragem, também passa por aí. E isso aplica-se a todos, aos que estão no Governo ou na Oposição. Para que, recuperando uma ideia de Malraux que sempre me persegue, os portugueses não tenham de julgá-los pelo que não fizeram, como aconteceu com outros antes deles, mas pelo que ainda poderão vir a fazer.