Ontem fui a um funeral de um amigo de infância.
Durante anos vivemos à distância de uma pedrada. Brincava-se com o que havia. À bola, às escondidas, em corridas encosta acima e encosta abaixo. Em 1982, inspirados pelas Olimpíadas, chegamos a replicar várias das modalidades do atletismo. O lançamento do martelo foi simulado com um cordel amarrado a uma bola que era uma meia velha cheia de areia e a tábua de chamada do salto em comprimento era um bocado de cana tombado no início da cova dos feijoeiros do avô dele. Nesse ano, lembro-me bem, no telheiro ali ao lado e que já não existe, dentro do novelo de uma corda de sisal enrolada em forma de um oito, um casal de verdilhões fez ninho. Não resistimos, metemos as mãos lá dentro e mexemos nos ovos pequeninos, do tamanho da cabeça de um dedo, arriscando assim que os pais enjeitassem a ninhada.
Nos santos populares cortávamos carrascos na encosta e traziamo-los de rojo até ao largo da oficina do pai dele, que ficava a uma hora de transpiração. Quando ateadas, as folhas dos carrascos estalavam ruidosamente e esse era o som que gostávamos de ouvir quando saltávamos a fogueira. Uma vez, durante um salto, uma folha a esvoaçar ficou-lhe presa no bolso da camisa e fez-lhe um buraco no tecido. Já não me lembro, mas como era normal ele deve ter apanhado umas palmadas por isso.
Depois a vida separou-nos. Os nossos pais continuaram vizinhos e parentes. Não disse, mas além de vizinhos e companheiros de aventuras, éramos também primos em segundo grau.
O intervalo com que nos cruzávamos foi-se alargando cada vez mais. Havia sempre um cumprimento e uma risada pelas pequenas patifarias que tínhamos partilhado e que nem precisavam de ser lembradas. Tinham simplesmente acontecido e faziam parte daquilo que nos tínhamos tornado.
Soube há uns tempos que andava doente. Tinha ido ao médico várias vezes e nunca mais lhe davam seguimento ao assunto. Enquanto esperava pelo próxima consulta ou exame, passava mal. Através de uma familiar que trabalha num hospital, conseguiu finalmente que pegassem no seu assunto até saberem o que tinha e o que tinha não era bom. A vida passa num foguete e algumas doenças não se compadecem com o ritmo da assistência que ele conseguiu ter. Em pandemia tudo piorou. Ele, mesmo já sabendo o que carregava, ou também por já saber o que era, continuou a passar mal. Quase não saía de casa e as notícias nunca mais foram animadoras. Pelo que fui sabendo, desde há alguns meses passou a enfrentar o tempo que lhe faltava com serenidade.
Nas últimas duas semanas, foi já nos cuidados paliativos que o sistema nacional de saúde finalmente lhe conseguiu aliviar as queixas.
Nas terras pequenas, depois da encomenda na igreja, vai-se a pé até ao cemitério e isso repetiu-se ontem. Caminha-se a um ritmo lento e triste, pela Rua da Escola acima. O grupo fica mais extenso nas passagens estreitas e junto dos carros mal estacionados. Acaba por se ir conversando com quem já não se via há algum tempo.
O filho dele, um pré-adolescente, juntamente com os seus companheiros de equipa levavam vestido a camisola do clube de futebol cá da terra. Já no cemitério, depois da uma música muito bem escolhida, que desconhecia, a equipa largou uns balões que subiram rapidamente pelos ares. Tal como fazem os adultos, os amigos abraçaram-no, um de cada vez, sentidos. Ele agradeceu, a cada um, igualmente sentido. Olhando para o tamanho deles, cinco reis de gente, este terá sido o primeiro funeral em que participaram. Todos mostraram uma solenidade só possível a quem sentia a intensidade do momento que estava a viver. Nenhum se chegou aos calcanhares do filho que acompanhou cada instante daquela sequência ritual. Quando o caixão se aproximou da cova, ele conseguiu uns centímetros de um degrau de pedra para ali se sentar, o mais perto possível. O vão das escadas apontava noutra direcção e isso obrigou-o a ficar meio de esguelha. O rosto, magro e bonito, pesava-lhe na cara. Sempre sem lágrimas, ali ficou, magoado, assustado, sem procurar pontos de fuga. Observou cada pazada de terra. Talvez estivesse a contá-las.
Soube de quem não tenha conseguido ficar a observa-lo e tenha saído do cemitério mais cedo.
Para eles, tudo poderia ter sido diferente. Mas agora nada será igual.
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