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Delito de Opinião

Lição de vida

Pedro Correia, 03.03.24

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No Monólogo do Vaqueiro, primeira peça exibida na RTP (1957)

 

«A morte é certa, não vale a pena estar a pensar nela. Vivam a vida, vivam, vivam, vivam, vivam e saibam o que fazer com a liberdade. A liberdade é uma coisa muito bonita -- e a democracia também.»

Ruy de Carvalho, anteontem, no dia em que festejou 97 anos. Em palco, como ele mais gosta. Parabéns!

O eterno movimento

Paulo Sousa, 09.01.23

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Uma corrida para esticar as pernas numa manhã de Janeiro, entre duas chuvadas.

Nos auscultadores, um programa de rádio fez referência à morte do radialista António Cartaxo. A rádio está de luto. Aos arquivos foram buscar um excerto da sua voz sorridente, desejando a todos, votos de bom ano novo. A gravação é de 2016.

Quarenta anos de rádio. Quarenta anos à frente do microfone ao ponto de, é fácil imaginar, o próprio poder confundir o “eu” com o “ofício”, o que é algo que está sempre a acontecer.

Que bela homenagem a de Maria Flor Pedroso, na rádio pública, que seria o ponto de encontro de ambos.

E como é que podemos homenagear aqueles que partem, que não eram radialistas, e que não podemos recuperar, relembrar, trazer à vida, pelo carregar dum botão?

O chão continua a fugir-me debaixo dos pés. Encosta abaixo, as ervas molhadas tentam arrefecer-me as canelas que, indiferentes, continuam a avançar. As frias cores do Inverno conduzem a memória nostálgica das perdas que já todos tivemos. O arrepio causado pela música escolhida para a homenagem radiofónica rima com o castanho das folhas mortas que atapetam o estreito carreiro onde, entretanto, cheguei. Os espinhos das silvas insistem em gravar algumas lembranças na minha pele, mas tembém elas serão temporárias e, por isso, também passageiras. Muito mais passageiras do que quarenta anos de um ofício, e que mesmo sendo quarenta anos, são também passageiros. Tão passageiros, como passageira é a vida.

Como é que podemos homenagear aqueles que partem, e que um dia desaparecerão no esquecimento da nossa partida?

Se a própria vida é efémera, então até um efémero subir do calcanhar, que se afasta do chão molhado, das raízes de um carvalho centenário, despido pelo Outono que já lá vai, pode ser uma homenagem aos que partem. O movimento é a negação do fim e é nesse movimento que viajam as memórias dos que não podemos homenagear de nenhuma outra forma.

O Fim

Maria Dulce Fernandes, 23.09.22

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Este é um postal um tanto pascácio.

É sobre O Fim.

Quem é que gosta de ler coisas secantes e deprimentes acerca da morte?

Eu, que costumo gravitar pelas novidades da blogosfera e dos blogues que costumo seguir, se me deparasse com uma dissertação sobre a iminente mortalidade de todos nós, saía da página a sete pés, porque coisas que nos ralem já nós temos em quantidade na nossa vida e não precisamos da opinião destrambelhada duma tipa que escreve umas coisas de vez em quando.

Podem não querer a minha opinião, mas eu dou-a na mesma. É de borla e só lê quem quer. A morte é a única certeza que temos na nossa vida a partir do exacto segundo em que nascemos. Não escolhe hora, idade, sexo, religião, raça ou extracto social. Chega quando quer, é silenciosa, eficaz e nós deixamos de ser.

“ – Hoje bateu forte, não?” Hoje e todos os dias, de há uns tempos para cá."

Dá que pensar e muito, naquilo que não queremos pensar. Já vos aconteceu num “Dia-Não” ou na véspera dum exame médico mais específico, por exemplo, olhar para o espelho e pensar “Se calhar já estou morta e ainda não dei por isso."

Penso que não tenho medo da morte. Penso hoje. Daqui a uns tempos e algumas doenças, quem sabe, mudo drasticamente de opinião? Não perco tempo a pensar se morrer é o final. Não me interessa, não quero saber… nunca ninguém voltou para contar como foi, por isso é coisa que não me preocupa. Não gostava de ficar para aí a vegetar sem noção do tempo nem do espaço, sem conhecer ninguém, sem controlo das minhas funções psicossomáticas. Poderá ser a morte pior que a completa perda de dignidade e humanidade? Poderá ser a morte pior que o sofrimento atroz de uma doença terminal?

Tenho cirurgia marcada para daqui a um par de semanas e a percepção das probabilidades é até animadora, mas o pensamento macambúzio insidia-se em qualquer nesga de boa disposição que ainda não esteja putrefacta e arruina-a num ápice.

Deixar tudo em ordem…

Faço mil e um malabarismos para não ter que acompanhar funerais, mas sei que há um em particular a que, por muito que não queira, não posso deixar de comparecer.

Quem é crente reza pelo reino dos céus, por um paraíso, seja em que religião for. Eu sou crente à minha maneira e no fim espero poder encontrar apenas paz.

 

(Republicado/Imagens Google)

Festa da vida

Maria Dulce Fernandes, 27.07.22

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Não me chamem Ishmael, tampouco obcecado ou pessimista. 
Porque sempre que me ausento por breve ou prolongado período de tempo, trato de providenciar para que o meu parco património fique seguro de abutres fiscais e outros predadores que tais, em caso de acontecer um não retorno.
Porque trato de explicar os meus desejos finais, a minha última vontade sobre aquilo a que me votou o ânimo desertor. Sou eu quem determina. Sou eu quem quer assim. 
Será muito pedir respeito?
Isto não é maluquice, paranóia ou pessimismo, mas sim puro pragmatismo.
E afinal, quem manda em mim ainda sou eu, mesmo depois de deixar de o ser.
Não quero vigílias claustrofóbicas em espaços deprimentes com aquele aroma anojoso a círios e flores sem alma; não quero flores. Que desperdício de beleza sacrificar uma rosa a quem já se finou.
Não quero choros. Carpir aleivosias tornou-me intolerante a mágoas lacónicas de circunstância. O pesar, que seguramente o terá quem muito me quis, não o lavará ali com lágrimas ou escorraçará com gritos, porque é marcado na alma a ferro e fogo. Pode o tempo esbatê-lo sim, mas a memória nunca o apagará.
 
Não quero cetins ou pérolas numa caixa fechada. Não quero um buraco negro, num triste canteiro com um número sem significado, nem uma pedra de epitáfio com palavras abrigadas num acordo que não acordei, dizeres que eu não disse e que de mim só dizem aquilo que se convencionou dizer.
 
Não quero ser grande na memória dos homens; não quero ter uma estrela na terra e tornar ao pó numa colina de torrões tristes e desesperados, sem mérito nem obra.
 
 
Deixem-me voar nas asas da fénix que me levou a alma e que me espalhará junto ao braço de água que me viu nascer, o mesmo de onde partiram as naus da cruz de Cristo.
 
Cumpri.

Nasci, cresci, flori, frutifiquei. Os meus frutos deram frutos lindos e eu fui feliz. Sou feliz.

Vivi intensamente. Vivo ainda.
Jubilei com as alegrias, solucei as tristezas, sorri sempre e continuo a sorrir, grata que estou, porque estou e porque sou.
 
Não quero angústias, nem amarguras. Quero alegria, quero festa. Quero que a memória que deixo, a indelével pegada da minha breve passagem, seja a festa da vida que eu vivi. 

Ela nunca nos falha

Paulo Sousa, 15.06.22

Ontem fui a um funeral de um amigo de infância.

Durante anos vivemos à distância de uma pedrada. Brincava-se com o que havia. À bola, às escondidas, em corridas encosta acima e encosta abaixo. Em 1982, inspirados pelas Olimpíadas, chegamos a replicar várias das modalidades do atletismo. O lançamento do martelo foi simulado com um cordel amarrado a uma bola que era uma meia velha cheia de areia e a tábua de chamada do salto em comprimento era um bocado de cana tombado no início da cova dos feijoeiros do avô dele. Nesse ano, lembro-me bem, no telheiro ali ao lado e que já não existe, dentro do novelo de uma corda de sisal enrolada em forma de um oito, um casal de verdilhões fez ninho. Não resistimos, metemos as mãos lá dentro e mexemos nos ovos pequeninos, do tamanho da cabeça de um dedo, arriscando assim que os pais enjeitassem a ninhada.

Nos santos populares cortávamos carrascos na encosta e traziamo-los de rojo até ao largo da oficina do pai dele, que ficava a uma hora de transpiração. Quando ateadas, as folhas dos carrascos estalavam ruidosamente e esse era o som que gostávamos de ouvir quando saltávamos a fogueira. Uma vez, durante um salto, uma folha a esvoaçar ficou-lhe presa no bolso da camisa e fez-lhe um buraco no tecido. Já não me lembro, mas como era normal ele deve ter apanhado umas palmadas por isso.

Depois a vida separou-nos. Os nossos pais continuaram vizinhos e parentes. Não disse, mas além de vizinhos e companheiros de aventuras, éramos também primos em segundo grau.

O intervalo com que nos cruzávamos foi-se alargando cada vez mais. Havia sempre um cumprimento e uma risada pelas pequenas patifarias que tínhamos partilhado e que nem precisavam de ser lembradas. Tinham simplesmente acontecido e faziam parte daquilo que nos tínhamos tornado.

Soube há uns tempos que andava doente. Tinha ido ao médico várias vezes e nunca mais lhe davam seguimento ao assunto. Enquanto esperava pelo próxima consulta ou exame, passava mal. Através de uma familiar que trabalha num hospital, conseguiu finalmente que pegassem no seu assunto até saberem o que tinha e o que tinha não era bom. A vida passa num foguete e algumas doenças não se compadecem com o ritmo da assistência que ele conseguiu ter. Em pandemia tudo piorou. Ele, mesmo já sabendo o que carregava, ou também por já saber o que era, continuou a passar mal. Quase não saía de casa e as notícias nunca mais foram animadoras. Pelo que fui sabendo, desde há alguns meses passou a enfrentar o tempo que lhe faltava com serenidade.

Nas últimas duas semanas, foi já nos cuidados paliativos que o sistema nacional de saúde finalmente lhe conseguiu aliviar as queixas.

Nas terras pequenas, depois da encomenda na igreja, vai-se a pé até ao cemitério e isso repetiu-se ontem. Caminha-se a um ritmo lento e triste, pela Rua da Escola acima. O grupo fica mais extenso nas passagens estreitas e junto dos carros mal estacionados. Acaba por se ir conversando com quem já não se via há algum tempo.

O filho dele, um pré-adolescente, juntamente com os seus companheiros de equipa levavam vestido a camisola do clube de futebol cá da terra. Já no cemitério, depois da uma música muito bem escolhida, que desconhecia, a equipa largou uns balões que subiram rapidamente pelos ares. Tal como fazem os adultos, os amigos abraçaram-no, um de cada vez, sentidos. Ele agradeceu, a cada um, igualmente sentido. Olhando para o tamanho deles, cinco reis de gente, este terá sido o primeiro funeral em que participaram. Todos mostraram uma solenidade só possível a quem sentia a intensidade do momento que estava a viver. Nenhum se chegou aos calcanhares do filho que acompanhou cada instante daquela sequência ritual. Quando o caixão se aproximou da cova, ele conseguiu uns centímetros de um degrau de pedra para ali se sentar, o mais perto possível. O vão das escadas apontava noutra direcção e isso obrigou-o a ficar meio de esguelha. O rosto, magro e bonito, pesava-lhe na cara. Sempre sem lágrimas, ali ficou, magoado, assustado, sem procurar pontos de fuga. Observou cada pazada de terra. Talvez estivesse a contá-las.

Soube de quem não tenha conseguido ficar a observa-lo e tenha saído do cemitério mais cedo.

Para eles, tudo poderia ter sido diferente. Mas agora nada será igual.

 

Este postal não terá comentários.

Como se a morte não existisse

Pedro Correia, 26.01.22

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Eufemismos da linguagem corrente contaminam em força o jornalismo. Agora não se morre: parte-se. Como quem vai de férias para qualquer lado.

É cada vez mais patente a nossa dificuldade em lidar com a morte. Ao ponto de eliminarmos a palavra do vocabulário de todos os dias. Como se a morte não fizesse parte da vida. Como se ela jamais chegasse pelo simples facto de a banirmos do nosso convívio. Como se fôssemos eternos personagens de um filme fofinho dos estúdios Walt Disney, fatalmente condenados a um final feliz.

No silêncio, entre cadáveres

Pedro Correia, 08.12.20

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Albert Camus escreveu um dos melhores textos que conheço para uma alocução proferida em Novembro de 1948, num encontro internacional de escritores. Intitulado "O Testemunho da Liberdade", tem uma actualidade espantosa.

Esta reflexão devia constituir uma espécie de código de conduta para todos os intelectuais contemporâneos.

 

Passo a transcrever alguns trechos*:

«Os verdadeiros artistas não dão bons vencedores políticos, pois são incapazes de aceitar levianamente, ah, isso sei eu bem, a morte do adversário! Estão do lado da vida, não da morte. São os testemunhos da carne, não da lei. (...) No mundo da condenação à morte, que é o nosso, os artistas testemunham o que no homem é recusa de morrer. Inimigos de ninguém, a não ser dos carrascos! (...) Um dia virá em que todos o hão-de reconhecer e, respeitadores das nossas diferenças, os mais válidos de nós deixarão então de se dilacerar, como hoje o fazem. Hão-de reconhecer que a sua profunda vocação é a de defender até ao fim o direito dos seus adversários a não terem a mesma opinião que eles. Hão-de proclamar, consoante o seu estado, que mais vale uma pessoa enganar-se, sem assassinar ninguém e permitindo que os outros falem, do que ter razão no meio do silêncio e pilhas de cadáveres.»

Hoje, mais que nunca, estas palavras devem merecer-nos profunda meditação.



* Tradução (excelente) de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes para a editora Contexto (2001)

Como se os mortos infectassem

Pedro Correia, 02.11.20

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Dia de Finados. Escolhido hipocritamente pelos titulares do poder político como dia de luto nacional enquanto se proíbe a população de prestar tributo aos nossos mortos em grande parte do País. Vamos a caminho dos três mil falecidos só de Covid-19 - fora as outras doenças, entretanto remetidas à clandestinidade, sem cobertura mediática. Muitos dos funerais foram feitos à pressa, sem possibilidade de uma despedida digna, como se houvesse que varrer entulho. Tratando-se, em tantos casos, de pessoas que não tiveram sequer direito a um último aceno dos entes queridos.

Esta inaceitável exclusão prolonga-se hoje, com muitos cemitérios encerrados por decisão das autoridades municipais. Como se fosse impossível visitá-los por turnos, mantendo as distâncias sanitárias e tomando as precauções que conhecemos. Como se os mortos infectassem. Como se honrar a memória dos que partiram fosse um pecado. Como se existir não fosse aprender todos os dias a conviver com o abandono, sabendo que a morte não é só ausência: é também uma presença, por mais discreta que pareça.

Eis-nos, pois, num dia ainda mais triste entre tantos outros por que temos passado neste ano de pesadelo. Leio o que ontem escreveu António Barreto, na sua sábia coluna do Público, e só posso dar-lhe razão: temos «esta sensação temível de que as autoridades correm atrás dos acontecimentos e se limitam a prever o passado». Aturdidas, também elas. E aturdindo-nos a cada medida que vão tomando, de improviso em improviso, navegando à deriva rumo sabe-se lá a quê.

A pandemia dentro da pandemia

Pedro Correia, 22.09.20

Durante o recente estado de emergência em Espanha, 59 cadáveres ficaram por reclamar em Madrid. Imagino que terão sido pessoas como qualquer de nós: riram, choraram, conviveram, sonharam, amaram. Foram a «palha pensante» de que falava Pascal, aludindo à fragilidade da condição humana.

Na nudez absoluta da morgue, ninguém as procurou: incineradas ou depositadas na vala comum sem um lamento fúnebre, tornaram-se mero dado estatístico para discussões à hora do jantar. 

Esta é uma pandemia dentro da pandemia: a de que menos se fala mas a que mais devia preocupar-nos, pois comprova como se tornaram inóspitas as sociedades que criámos, gerando desenfreadas correrias que conduzem a lugar nenhum. Quantos dramas humanos se ocultam sob as luzes citadinas? Quanta dor silenciada na perpétua vigília de quem é incapaz de adormecer? Quanta solidão povoada de fantasmas assombrando noites que nunca verão nascer o sol?

Instituto do Abuso Legal

José Meireles Graça, 04.06.20

No blogue de uma amiga unilateral (isto é, eu gosto dela, que não retribui desde que confessou que não estava mais disposta a tolerar os meus “sarcasmos” – olha logo eu que sou tão contido nas palavras) tomei conhecimento desta publicação no Facebook de João Sedas Nunes, que não conheço, a respeito da mãe, a escritora Maria Velho da Costa.

A história é escandalosa e João, que a narra contidamente mas com mágoa, diz a certo passo:

“Trago isto a público (enfim, tanto quanto este estaminé é público), não para demandar reparação (ou pedido de desculpas), mas para contribuir para a tomada de consciência de uma forma extrema de desrespeito que dificilmente pode ser ‘compreendida’ sem invocar a impunidade do funcionário que, investido de um poder de Estado, não presta verdadeiramente contas a ninguém”.

Se exigisse desculpas, não duvido que o director do estabelecimento as prestasse – a falecida não era uma pessoa qualquer. E acredito que não era impossível que, se houvesse um regulamento qualquer para garantir que estas coisas não sucedem, mandaria “abrir um inquérito”.

Do resultado do inquérito, que de todo o modo levaria um ror de tempo, ninguém  ouviria falar; se concluísse pela culpa de alguém a sanção seria levíssima, senão o director teria os sindicatos à perna, e por certo quereria preservar um bom ambiente de trabalho; e se não existisse regulamento nenhum, ou o homem encarregava alguém de fazer uma moxinifada que ninguém iria ler e menos ainda cumprir ou faria uma circular para os destinatários encolherem os ombros e o autor ficar com a satisfação do dever cumprido.

Gente profunda dirá que isto é um problema cultural. Mas não é, por ser um de impunidade. A mesma impunidade e o mesmo desprezo com que a sinistra figura do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais declarava há dias, sob pressão da Provedoria do Cidadão, que “não deixa de haver preocupação de conjugar o fim da suspensão do processo executivo comum com este entendimento, de forma a salvaguardar os interesses do Estado”, isto para justificar a falta de cumprimento da lei por parte do departamento do qual é Inquisidor-geral.

Claro que este enxerto da prepotência inquisitorial fiscal, comparando-a com uma história triste, que merece respeito, não será propriamente muito elegante da minha parte. Mas elegância não é exactamente a minha qualidade mais saliente num longo rosário delas; paciência e contenção também não – só contaria a história no Facebook depois de, não obtendo satisfação, ter tratado a direcção do Instituto de Medicina Legal, não com os sarcasmos de que se queixava a Joana Lopes, mas abaixo de cão.

Mortais, como todos nós

Pedro Correia, 13.04.19

Quando eu era miúdo, o festival RTP da canção fazia parar o País. As pessoas vibravam tanto ou mais com as cantigas do que com o futebol durante aquelas semanas que rodeavam o sarau musical, antes e depois de ter ocorrido.

Assim sucedeu durante muitos anos. Eram outros tempos, era outro país. Embora a belíssima canção de Luísa Sobral que o irmão Salvador tão bem interpretou em 2017, cativando a Europa ao ponto de ter posto milhões de pessoas a cantar em português, com o inédito triunfo na Eurovisão, tenha reaproximado as gerações mais jovens deste concurso. Mas a xaropada que apresentámos há um ano, na estreia de Lisboa como palco do eurofestival, indiciou que Amar Pelos Dois fora algo tão imprevisto como irrepetível.

É justo salientar que nos tempos anteriores, ainda com a RTP a preto e branco, nasceram neste mesmo certame belíssimas canções que deixaram de ser exclusivo dos seus intérpretes originais para se integrarem no património musical português. Canções como Sol de Inverno, Flor Sem Tempo, Cavalo à Solta, No Teu Poema, só para anotar as primeiras que recordo. Além de outras, que por algum motivo guardei numa gaveta grata da memória mais remota, como O Barquinho da Esperança, escrita por Pedro Ayres Magalhães e Miguel Esteves Cardoso para as inesquecíveis Doce - só agora voltei a ouvi-la, 35 anos depois, e não resisto a trazê-la aqui, lembrando sempre com ternura a Fátima Padinha, que conheci em adolescente. O pai dela, Joaquim Padinha, foi um dos maiores amigos do meu pai.

 

 

Quando eu era miúdo, por algum motivo, acreditava que os vencedores do festival RTP estavam tocados pelo dom da imortalidade. E fiz-me adulto com esta mesma convicção enraizada - resquício do imaginário infantil que só terminou de vez no dia em que, estando eu a fechar a primeira página de um jornal em Macau, onde então vivia, lá inseri a notícia da morte de Carlos Paião, um desses vencedores. O primeiro a ficar pelo caminho.

Lembrei-me de tudo isto ontem, ao saber da morte de Dina, também galardoada do festival, falecida após longo combate contra uma implacável doença. No ano passado tinham desaparecido duas outras ex-triunfadoras do festival: Madalena Iglésias e Maria Guinot.

Simples mortais, afinal - da mesma condição que tu e eu. Como cantava a Fá, com aquela bela voz que ainda me emociona, «por cada gota que cai no mar / há uma outra que sobe ao céu».

Um actor imortalizado pelo Youtube

João Pedro Pimenta, 17.02.19

Morreu Bruno Ganz, actor suíço com larga filmografia, que incluiu passagens por Portugal (protagonizou A Cidade Branca, de Alain Tanner) e pelo cinema americano, e sobretudo com alguns dos maiores cineastas alemães, como Werner Herzog e sobretudo Wim Wenders. Curiosamente, os seus dois papéis mais memoráveis tinham a sua acção em Berlim. Num era um anjo apaixonado (As Asas do Desejo, de Wenders); noutro, um "demónio" tresloucado (Das Untergang - A Queda). E é sem dúvida mais por este último que será recordado, pela cena que se tornou num fenómeno do Youtube: um ditador acossado, enraivecido e ignorando a sua real situação, cujas reacções dão para todo o tipo de legendas. Aqui está um bom exemplo, com Sócrates e as principais figuras políticas portuguesas à mistura.

E no entanto, Ganz merece ser recordado por bem mais coisas. Como o anjo que vela sobre os telhados de Berlim, e que revela sentimentos mais próprios dos mortais.

 

Até já

Sérgio de Almeida Correia, 01.12.17

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 (créditos: Raquel Wise)

 

Um após outro. Este ano tem sido assim. Vendo-os partir.

Foi assim com o Rui, com o Luís, com o Pedro, agora com o Zé Pedro, que não sendo meu amigo era amigo do Paulo e por isso também meu amigo.

Nós sabemos que ela anda por aí, que está sempre presente, mesmo nas manhãs mais cristalinas quando os primeiros raios cortam o azul penetrante do céu. Rondando como uma repugnante e irritante varejeira que, por vezes, atordoada pelo jornal se esconde para logo de seguida reaparecer e nos irritar. Ou entrando pé ante pé, como se fosse uma fada, sem que nada nem ninguém se aperceba da sua presença, impondo-se de repente, sem aviso prévio, destroçando sonhos, corações, vidas. Muitas.

Ultimamente tem-se feito sentir com mais intensidade e cada vez mais perto de mim. Todas as esperanças depositadas num brinde de ano novo vão-se esvaindo com o correr dos meses, à medida que o ciclo se fecha e, impotente, vejo este carrossel que sem parar, em cada volta que dá, vai ficando mais vazio, até ficar quase sem ninguém, mas continuando a rodar, rodando, embalado por aquela música monótona e repetitiva que não pára e pelas luzes que não se apagam depois de todos partirem.

O mais estranho de tudo isto é que tudo se passa cada vez mais perto de mim. Com quem de um modo ou de outro me acompanhou ao longo de décadas, e que ao seu jeito ajudou a moldar a minha forma de ver o mundo. Mas também com quem fazendo parte de nós à distância foi comigo comunicando até ao fim, deixando aquele rastilho que me acaricia todas as manhãs e me faz sentir que vale a pena, que vale sempre a pena ser um homem livre. 

Uma palavra, um gesto, um sorriso, sempre um estímulo e uma dignidade imensa na forma como iam acomodando os dias à sua dor, no seu combate, na sua liberdade, sem esmorecer, sublinhando aquilo que de mais belo existe na simplicidade de um olhar, na cumplicidade de um cumprimento, na ternura de um aceno.

E, é claro, com aquele "pouco de fé" que nunca fez mal a ninguém e se torna imenso quando o dia chega ao fim e se sabe que há mais uma noite esquinada para dobrar. Ainda que não raro saibamos que não somos únicos porque somos todos feitos da mesma massa e da mesma matéria, e que de cada vez que olhamos o céu e vemos os sonhos partirem irremediáveis a nossa raiva é igual, e se despeja sabendo que o sol voltará a brilhar.

Quem faz a estrada acaba sempre por conhecer o caminho. E sabe que é por ali que se deve seguir, com energia, com convicção, com carácter, sem olhar para trás, mantendo a constância e o ritmo. Com ternura, sem pieguices. Porque tudo valeu a pena. E nunca foi de mais.

A morte

Helena Sacadura Cabral, 24.11.17
 

Morreu hoje o Pedro Rolo Duarte. Era uma morte anunciada para quem, como eu, viveu há cinco anos, exactamente a sua história. 
Talvez por isso, o meu primeiro pensamento vá para a sua mãe, a quem a vida acaba de roubar o bem mais precioso e, só depois, para o filho. Para este, haverá sempre uma lógica temporal, que não existe no caso da sua avó. Nenhuma mãe deveria, alguma vez, passar por isto.
Finalmente, o meu pensamento vai para os amigos que sempre lhe serviram de esteio e jamais o abandonaram. E eram muitos. Muitos, mesmo!
Conheci o PRD há muitos anos quando, com o Miguel Esteves Cardoso, o meu saudoso MEC, faziam aquela inesquecível revista chamada KAPA. E era eu quem lhes tinha sempre de cortar os orçamentos. Não foi, assim, um primeiro encontro fácil dado que era olhada como aquela que lhes cerceava os sonhos. Havíamos de, aos poucos, ir resolvendo esses problemas já que, com o lançamento da minha FORTUNA, passei a ter mais projectos para gerir. Mas ele e eu  havíamos de nos cruzar noutros aventuras.
Depois, amigos comuns juntaram-nos na GRUPA, esse conjunto de gente de quem eu podia quase ser a "avozinha", mas que me tem dado muito bons momentos. Aí conheci um outro Pedro, que o tempo havia transformado e enriquecido. 
Era um homem livre, que dizia o que pensava, uma cabeça que não parava, um comunicador excelente, uma verdadeira força da natureza. Não conseguiu vencer essa besta que é o cancro. Mas julgo poder dizer que na batalha da vida, ela a dominou e terá sido um homem com muitos momentos felizes!

O trágico destino dos escritores

Pedro Correia, 13.04.17

Foi só há pouco tempo, ao ler um notável ensaio de William Styron intitulado Visível Escuridão (Darkness Visible, 1990) que me apercebi das estreitas relações entre a depressão e o ofício da escrita. É quase inacreditável o número de grandes autores que cometeram suicídio, no auge de uma grave depressão.
Styron fez uma lista, que está longe de ser exaustiva: Hart Crane, Virginia Woolf, Cesare Pavese, Romain Gary, Ernest Hemingway, Jack London, Sylvia Plath, Henri de Montherlant, John Berryman, Wiliam Inge, Paul Celan, Tadeusz Borowski, Anne Sexton, Serguei Essenin, Vladimir Maiakovski. E Stefan Zweig, Primo Levi, Emilio Salgari, Yasunari Kawabata, Arthur Koestler, Paul Nizan, Yukio Mishima, Sándor Márai, Reinaldo Arenas, David Foster Wallace – acrescento eu.
No caso português, poderíamos mencionar, por exemplo, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Mário de Sá Carneiro, Luís de Montalvor, Manuel Laranjeira, Trindade Coelho, Florbela Espanca, Miguel Rovisco.
Outros houve, outros há.
 
“Apesar do raio de alcance da depressão ser ecléctico, demonstrou-se de forma bastante convincente que os temperamentos artísticos (particularmente os poetas) são especialmente vulneráveis a este mal – que, nas suas manifestações clínicas mais graves, colhe mais de 20 por cento das suas vítimas através do suicídio”, escreve Styron nesta notável obra sobre uma das maiores doenças da nossa civilização (Visível Escuridão, com tradução portuguesa de Teresa Caria, foi editada pela Bertrand em 1991). O próprio Styron – galardoado com o Prémio Pulitzer e o American Book Award, universalmente aplaudido por romances como A Escolha de Sofia – sofreu de depressão. “Receamos a perda de tudo, de todos os próximos e dos amados. Há um medo agudo do abandono. Ficar sozinho em casa, mesmo só por um momento, provocava-me um pânico e uma trepidação estranhos”, recorda o escritor neste impressionante e dilacerante depoimento.
“Não mais palavras. Um acto. Não voltarei a escrever.” Com estas palavras, redigidas num bilhete que lhe serviu de testamento, Pavese despediu-se da arte e da vida. O que levará um grande autor ao desespero? Quem de nós conhece devidamente os abismos da existência humana?
 
Texto reeditado e ampliado

Toda as mortes são prematuras

Pedro Correia, 26.12.16

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 Montgomery Clift e Marilyn Monroe em 'The Misfits'

 

Há frases que fixamos para sempre. Lembro-me de, em miúdo, ter ouvido o meu avô materno dizer que todas as mortes antes dos 75 anos eram "prematuras". Tomei nota da palavra, que não esqueci. E daquela espécie de desejo implícito contido naquela frase. Desejo cumprido, pois o meu avô morreu com 76 anos.

Muito mais tarde, Jorge de Sena ensinou-me, seu modesto leitor, que "todas as mortes são prematuras". O ser humano é vocacionado para a vida eterna - e saber de antemão que não cumprirá este anseio do seu corpo e este desígnio do seu espírito constitui a chave para sempre indecifrável de todo o pensamento filosófico, que procura responder às mais simples e mais complexas questões.

Quem sou? Que faço aqui? Em que medida se cumpre um destino humano?

 

Por estes dias em que Mário Soares trava uma luta tenaz contra a morte ouço dizer que teve "uma vida bem vivida". Face ao critério do meu avô, há muito que o ex-Presidente superou a perspectiva de uma morte prematura. Mas deverei dizer que os seus 92 anos foram "bem vividos" se no mesmo dia em que ele se encontra em estado muito crítico num hospital me cruzo num dos estabelecimentos comerciais mais conhecidos de Lisboa com a actriz Carmen Dolores - igualmente com 92 anos, mas nascida sete meses antes de Soares - caminhando com sacos de compras, elegante, grácil, quase etérea, sem sequer o apoio de uma bengala?

Filmou com António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros e Jorge Brum do Canto, contracenou com António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho, João Villaret, figuras há muito inscritas no panteão do nosso teatro e do nosso cinema, e ei-la aqui, tal como nós, na idade do skype e do instagram. Teve um admirável percurso artístico, iniciado na remota década de 40. Mas por mais anos que permaneça connosco serão sempre escassos.

 

"Todos, homens e mulheres, estamos a morrer a cada momento que passa", dizia Marilyn Monroe no apogeu do seu talento e da sua beleza, interpretando-se de algum modo a si própria na última longa-metragem que acabou por rodar: The Misfits. Filme trágico e triste e assombrosamente belo, um dos filmes da minha vida

Cada existência é irrepetível e nuclear. Cada vida é um micrograma na poeira cósmica. Um sobressalto na nossa fisiologia, frágil como espiga ao vento, basta para sepultar toneladas de "certezas inabaláveis" que nos iludem na fatal transição entre os dois pontos extremos da nossa biografia - sempre imperfeita e fugaz, sempre situada aquém da insaciável espiral de todos os sonhos.

Cohen, a paz antes da partida

José António Abreu, 11.11.16

 

In his chair, Cohen waved away any sense of what might follow death. That was beyond understanding and language: “I don’t ask for information that I probably wouldn’t be able to process even if it were granted to me.” Persistence, living to the last, loose ends, work—that was the thing. A song from four years ago, “Going Home,” made clear his sense of limits: “He will speak these words of wisdom / Like a sage, a man of vision / Though he knows he’s really nothing / But the brief elaboration of a tube.”

The new record opens with the title track, “You Want It Darker,” and in the chorus, the singer declares:

Hineni Hineni

I’m ready my Lord.

Hineni is Hebrew for “Here I am,” Abraham’s answer to the summons of God to sacrifice his son Isaac; the song is clearly an announcement of readiness, a man at the end preparing for his service and devotion. Cohen asked Gideon Zelermyer, the cantor at Shaar Hashomayim, the synagogue of his youth in Montreal, to sing the backing vocals. And yet the man sitting in his medical chair was anything but haunted or defeated.

“I know there’s a spiritual aspect to everybody’s life, whether they want to cop to it or not,” Cohen said. “It’s there, you can feel it in people—there’s some recognition that there is a reality that they cannot penetrate but which influences their mood and activity. So that’s operating. That activity at certain points of your day or night insists on a certain kind of response. Sometimes it’s just like: ‘You are losing too much weight, Leonard. You’re dying, but you don’t have to coöperate enthusiastically with the process.’ Force yourself to have a sandwich.

“What I mean to say is that you hear the Bat Kol.” The divine voice. “You hear this other deep reality singing to you all the time, and much of the time you can’t decipher it. Even when I was healthy, I was sensitive to the process. At this stage of the game, I hear it saying, ‘Leonard, just get on with the things you have to do.’ It’s very compassionate at this stage. More than at any time of my life, I no longer have that voice that says, ‘You’re fucking up.’ That’s a tremendous blessing, really.” 

 

O final de um excelente perfil de Leonard Cohen, surgido na The New Yorker de 17 de Outubro. A juventude, Marianne, outras mulheres, Dylan, a enganadora simplicidade da música, os concertos ao vivo, as drogas, a transcendência, a ideia da morte. E, a propósito desta, faz-me uma certa impressão - fica sempre a ideia do vatícinio (sorry, IsabelPS) - ter referido há exactamente duas semanas que ele se declarara pronto para morrer.