Sem pés nem cabeça
O Partido Popular Monárquico ter um "presidente".
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O Partido Popular Monárquico ter um "presidente".
Quando me perguntam se sou republicano ou monárquico, costumo responder: sou republinárquico, por vezes monarquicano.
Por outras palavras: a questão da forma do Estado não se colocou às pessoas da minha geração. Colocou-se, isso sim, a questão do sistema político. E tanto há democracia em regimes monárquicos como em regimes republicanos. Mas não esqueçamos que quase todos os sistemas totalitários do século XX foram republicanos. Talvez não seja politicamente correcto sublinhar isto, mas é verdade.
Este pensamento acompanha o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana
Imaginemos que em 1908 não tinha havido um assassinato do rei; que, dois anos mais tarde, a esquerda lisboeta de então, golpista, e alguns conservadores equivocados, não se tinham achado com forças para derrubar o regime ou que, tentando-o, o Exército deitava os insurgentes para correr.
Não foi assim, claro, porque a motivação dos revoltosos era sustar a decadência do país e este, céptico ou alheado que estava, não teve força anímica para resistir – a monarquia não tinha amigos em quantidade suficiente.
Correu mal. O que veio a seguir foi um novo país no papel (a esquerda, então como agora, legisla que se farta) mas de progresso verdadeiro nicles enquanto a desordem nas ruas, a violência sectária, a instabilidade permanente e a participação na Grande Guerra criaram o pano de fundo para o advento da II República.
Salazar nunca resolveu o problema da sua sucessão, e muito menos favoreceu os seus apoiantes monárquicos porque a sua prioridade era manter-se a si e ao regime, donde o que lhe convinha era conservar acesas as esperanças da Restauração sem fazer absolutamente nada por ela.
A III República herdou da I o messianismo desenvolvimentista e progressista: agora é que vai ser. E como se define por ser em tudo o oposto do Estado Novo, e este o contraponto da balbúrdia de 1910 a 1926, a que pôs cobro, o regime actual acha-se, sobretudo à esquerda, herdeiro do progresso registado, segundo a lenda, a partir da queda da monarquia.
Claro que progressos, tanto legislativos como materiais, teriam sido possíveis sem mudança de regime; que esta não resolveu nenhum dos problemas do país e pelo contrário transformou-o num imenso manicómio autogestionário quando não foi a ditadura feroz de Afonso Costa (como se pode ver neste ensaio de Vasco Pulido Valente); e que é precisamente a memória histórica da inutilidade da mudança, e o tempo entretanto decorrido (mais de 100 anos), que fazem com que a restauração da monarquia pareça uma ideia romântica e irrealizável.
Só por estas duas razões? Creio que não. No último 5 de Outubro, naquelas comemorações ocas em que a classe política se celebra a si mesma enquanto o país boceja, entretive-me numa rede social, como é meu hábito, a abundar em considerações. E, numa discussão com uma amiga republicana, ela enterrou-me com uma resenha histórica sobre os fundamentos da instituição monárquica, não reconhecendo um novel que eu inventei para a ocasião. E, como citou Locke e outros autores, fosse eu menos vaidoso e desistia. Mas não, tenho mesmo a opinião que segue:
Como o sentimento anti-monárquico assenta na ideia de que a herança de um lugar relevante na vida colectiva fere o princípio da igualdade cidadã, e como eu entendo que o princípio da igualdade, nesta e noutras instâncias, não tem (e é inconveniente que tenha) um valor absoluto, tencionaria tentar demonstrar o ponto se estivesse disposto a reflectir e a argumentar. Prefiro guardar as energias, porém, para coisas mais amenas e terrenas e faço votos para que Marcelo consiga inexistir na cerimónia, por exemplo.
As monarquias constitucionais (e outras não são admissíveis no Ocidente) não contendem com a igualdade dos cidadãos perante a lei: o Chefe de Estado e outros políticos, por exemplo deputados, têm regimes legais diferentes do cidadão comum, dada a especificidade das suas funções. E que o princípio de que o Presidente, uma vez eleito, o é de todos os Portugueses e não apenas dos que o elegeram, cabe melhor a um tipo do qual conhecemos a família e a ascendência do que a um entertainer qualquer que caiu no goto do eleitorado, parece também bastante evidente. De modo que de igualdade estamos conversados, excepto pelo facto de que um chegou lá por consentimento expresso dos eleitores a quem vendeu o seu peixe e outro chegaria por ser filho, neto, bisneto e por aí fora de quem é. O qual peixe continuaria porém a ser vendido por quem realmente detém poderes executivos, como é necessário em democracias. Para quem ache que somos elos de uma corrente, isto é, o país é feito dos vivos e dos nossos mortos, e que não há melhor bandeira que uma de carne e osso, um rei parece talvez escolha mais assisada.
Os monárquicos costumam usar muitos mais argumentos, que não vou repetir, entre outras razões porque a ideia da restauração não me parece, no actual momento histórico, que seja popular: daí não viria o aumento do salário mínimo ou uma melhor ordenha do úbere europeu, por exemplo.
Sucede porém que dois acontecimentos recentes me levam a pensar que as coisas são como são até ao dia em que passam a ser de outra maneira: um foi a Jornada Mundial da Juventude; e o outro o casamento da Infanta.
No primeiro a Igreja Católica, acantonada no papel de uma ONG estimável a quem ninguém liga nenhuma, mostrou que está bem viva, e precisamente naquele sector da população que tem mais futuro, isto é, os jovens; e no segundo que à família real (ducal, se quisermos ser rigorosos) faltou a pompa das casas reinantes. Mas: isto terá, além de se tratar apenas do casamento da filha de um pretendente, explicado algumas ausências difíceis de compreender, caso das casas reinantes em Espanha e Reino Unido; e o que faltou em aparato sobrou em autenticidade, dignidade, trabalho desinteressado e genuína alegria. Esteve bonita a festa, pá, a mesma, e outra, juventude, deve ter notado.
Os dois eventos têm a liga-los a tradição, cuja morte, como a de Mark Twain, talvez tenha sido declarada prematuramente.
Católico é improvável que venha a ser. Monárquico já fui menos.
Foto: Reuters
Os tudólogos tugas garantiam que ele seria um Rei impopular. Percebem pouco ou nada do que falam. Um ano depois de subir ao trono britânico, Carlos III regista elevada taxa de aprovação dos súbditos: 59% consideram que tem feito bom trabalho - enquanto apenas 17% pensa o contrário. E não era fácil substituir a mãe, Isabel II, que usufruiu sempre de imenso prestígio durante 70 anos de reinado.
Questiono-me quantos titulares de repúblicas europeias poderão gabar-se de números semelhantes. Estes foram recolhidos numa sondagem YouGov agora divulgada em Londres.
No mesmo inquérito, 62% dos britânicos consultados mantêm preferência pela monarquia como sistema político, enquanto apenas 26% optariam por um chefe do Estado eleito. Diferença considerável. Daria motivo de reflexão aos tais tudólogos. Se eles soubessem reflectir em vez de se limitarem a debitar palavras para encher chouriços nos canais de televisão.
Ao longo de 770 anos da monarquia portuguesa, houve apenas 16 nomes no cargo supremo do Estado – 15 masculinos e um feminino.
Concretamente, sentaram-se no trono seis reis de nome Afonso, outros seis de nome João e cinco reis chamados Pedro. Nomes de monarcas foram também Sancho (dois reis), Dinis (um), Fernando (dois), Duarte (um), Manuel (dois), Henrique (um), Sebastião (um), Filipe (três), José (um), Miguel (um), Luís (um) e Carlos (um). Além de duas rainhas chamadas Maria, que ascenderam ao trono por morte ou abdicação de seus pais, D. José e D. Pedro IV.
A implantação da república, há cem anos, permitiu elevar à chefia do Estado alguns nomes próprios que seriam inimagináveis num monarca. Só a república nos deu Teófilos, Sidónios, Bernardinos, Óscares, Higinos e Américos. Só em república alguém chamado Aníbal atingiu o cume da pirâmide do Estado. E o mesmo pode dizer-se de Marcelo, que nunca foi nome de rei.
Mas o nome mais republicano, aparentemente, é António – único com que foram baptizados presidentes dos três ciclos republicanos ao longo deste quase século. Na I República houve António José de Almeida (1919-23), único presidente que completou o seu mandato durante os anos inaugurais do regime. No Estado Novo, pontificou o presidente António Óscar Fragoso Carmona (1926-51), o de mais longo mandato durante a ditadura. E no regime subsequente ao 25 de Abril de 1974 já vamos em três chefes do Estado com esse nome: António Sebastião Ribeiro de Spínola (1974), António dos Santos Ramalho Eanes (1976-86) e Aníbal António Cavaco Silva (2006-2016).
Curiosamente, sendo António um nome tão português, nunca houve um rei António, legalmente reconhecido como tal, embora D. António, prior do Crato, tenha chegado a ser proclamado monarca em 1580 por sectores do povo, inconformados – ao contrário das supostas elites – com a anexação a Espanha. Já Manuel é um nome comum a reis e presidentes: o primeiro Chefe do Estado em república foi Manuel de Arriaga (1911-15), o último da I República foi Manuel Teixeira Gomes (1923-25). E também tinha esse nome o primeiro líder do regime ditatorial – o marechal Manuel Gomes da Costa (1926).
Nenhum presidente português terá sofrido tanto no exercício do mandato como o almirante João de Canto e Castro. Não só porque ascendeu ao poder quando era ministro da Marinha, na sequência da trágica morte de Sidónio Pais, baleado na estação do Rossio, em Dezembro de 1918, mas também porque era monárquico. E viu-se forçado a reprimir a revolta monárquica de Janeiro de 1919, restabelecendo a legalidade republicana contra as suas convicções mais íntimas. O seu mandato durou dez meses. Morreu 15 anos depois, totalmente retirado da vida política.
No século XIV, Portugal esteve quase a ter uma rainha chamada Beatriz: era a filha única do rei D. Fernando, falecido em 1383. Mas as cortes de Coimbra negaram-lhe essa pretensão, entregando a coroa a uma nova dinastia, protagonizada pelo Mestre de Aviz, D. João I. Outros príncipes reais faleceram antes de chegar a reis: D. Afonso (seria o VI), filho de D. João II, em 1491; D. Teodósio, primogénito de D. João IV, em 1653; D. José (seria o II), filho de D. Maria I, em 1788; e D. Luís Filipe, filho de D. Carlos, em 1908.
Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1915), Bernardino Luís Machado Guimarães (1915-17; 1925-26), Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (1917-18), José Mendes Cabeçadas Júnior (1926), Francisco Higino Craveiro Lopes (1951-58), Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1958-74), Francisco da Costa Gomes (1974-76), Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1986-96) e Jorge Fernando Branco de Sampaio (1996-2006) foram os outros chefes do Estado republicanos, Acrescidos do actual titular, Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, cujo mandato teve início em 2016.
Nenhum Sancho, nenhum Dinis, nenhum Duarte. Nem Henrique, Filipe, Miguel ou Carlos. E sobretudo nem vestígio de Maria: até hoje não houve nenhuma mulher na chefia do Estado republicano.
Neste ponto a monarquia estava mais avançada.
Um príncipe decidiu ("deu-lhe para...") reencarnar um seu pouco fiável antepassado e nisso casou com uma actriz estrangeira de terceira ordem, uma "corista de Paris" teria dito no seu tempo o velho Eduardo VII, o do nosso Parque, que sabia bem desse assunto... O "contexto" é quase tudo, os tempos mudam, as (muitas) décadas passam, e nisso as consciências e as barreiras sociais - mas ainda assim não é só isso que aparta este caso de um já nada recente casamento entre um obscuro príncipe de um minúsculo grão-ducado, mero paraíso fiscal feito recanto de veraneio e casinos, com a estrela de aspecto mais angélico de Hollywood, oriunda de família abonada e conservadora... E os locais, o tal "contexto", não são todos iguais, e como tal isto não tem o mesmo impacto simbólico de uma matrona viúva de uma silenciosa monarquia burguesa escandinava se casar agora com um gabiru norte-americano, de profissão xamã e o qual se diz reencarnação de príncipes africanos seus antepassados, um típico vetusto delírio new age...
Pois tudo isto se passou na monarquia europeia mais hierática - apesar do seu "compromisso histórico" com a pujante imprensa mundana, gerido com sábio, ainda que por vezes falho, músculo -, onde reinava a monarca mais prestigiada e porventura, até independentemente dos seus méritos pessoais, a chefe de Estado mais reverenciada do mundo. Tudo isto onde se amontoam os restos, até algo putrefactos, do maior império do mundo. Ou seja, não haveria melhor contexto para a sofreguidão mediática, ansiosa da (re)emergência de uns "príncipes dos povos", ainda por cima condimentados pelo picante "multicultural"...
A rota que seguiriam era óbvia - até para um desatento republicano meridional. O gemebundo casal encetou o destrunfar alheio com a ansiada "Carta Racial", valiosíssima nos tempos que correm, e nisso teve imediato sucesso - tanto que até lá da Casa Branca Biden fez constar o seu apoio por "tamanha coragem"... Os britânicos, e sua realeza, metidos na armada Brexit e na esperança de serem o mais dilecto aliado (ou mesmo qual o 51º membro), aguentaram o despautério do pós-Trump, assim em afronta alheada das relações internacionais.
Entretanto o jogo suspendeu-se um pouco, dada a morte da célebre avó das vítimas. Agora, para gáudio mundial, reiniciou-se o cartear. Em momento a solo o candidato a "príncipe do povo mundial" enceta a jogatana anunciando-se "caçador de afegãos", movimento algo paradoxal que até aos activistas apoiantes confundiu. Ao qual se segue uma panóplia de apostas cujos cabeçalhos fazem os referidos apoiantes duvidar da sua pertinência estratégica. Nem mesmo Biden lhe acorre. E em torno da mesa de jogo sussurra-se "mais valia ter insistido na carta racial", um "valor seguro"...
Enfim, qual será o próximo, e terceiro, passo? Na sala já correm as apostas...
Morreu Isabel, que encarnava o que de melhor tem o Reino Unido. Não porque tivesse escrito como Shakespeare, ou brilhado na ciência como Isaac Newton, ou composto como Haendel (cidadão importado, é verdade), ou sido sequer uma actriz como Vanessa Redgrave ou uma estrela pop como um dos Beatles.
Não escreveu, não compôs, não filosofou, não foi reformadora social nem descobriu nem inventou. E todavia sentimos a sua morte como uma perda e o seu tempo, já, com saudade.
Foi, com inalterável serenidade, o topo de um conjunto de instituições que garantem que o Reino Unido, que já foi um grande império mas agora não é, que já foi o país mais desenvolvido mas, nisto e naquilo, foi ultrapassado, que já teve, por exemplo, dos melhores automóveis, cujas marcas e carácter são agora estrangeiros, e que nos domínios em que está no pódio tem numerosa, e combativa, companhia – continua a ser um exemplo de sociedade que não quer copiar ninguém, quando de todos os lados lhe invejam e respeitam as instituições.
A democracia, primeiro, que como nasceu de uma longa consolidação, e não de revoluções nem golpes de Estado, se lhe incrustou como fazendo parte do código genético; o Estado de Direito, tão enraizado que dispensa uma Constituição formal; e o filho rebelde que se separou por obra e graça de pais fundadores que, quando deixaram de ser britânicos, não deixaram de o ser culturalmente, para criar a superpotência que marcou o séc. XX, e através dela o resto do mundo, mais para o bem do que para o mal: são exemplos das boas razões pelas quais o Reino Unido conta.
Foram quem mais tenazmente se opôs à hegemonia nazi; e que, desconfiados da supraestrutura burocrática, enxerida, inimiga das diferenças nacionais e fatal e tendencialmente antidemocrática que é a União Europeia, bateram com a porta. Há mais povos que tivessem farejado a rasoira anti-pátrias e a terraplanagem europeísta das diferenças? Não há, e foi in extremis, que as novas gerações, lá como em boa parte das democracias do continente, parecem acreditar que a história contemporânea se deve basear na ignorância da pregressa, na obliteração de todas as tradições e na entrega do poder a técnicos que ninguém elegeu.
A instituição monárquica britânica é o símbolo e garante de muitas coisas, das quais a principal é a continuidade, para usar a palavra que todos os encómios de circunstância usam, et pour cause. E Isabel interpretou tão inexcedivelmente o seu múnus que não é apenas na Inglaterra, na Escócia, no País de Gales, na Irlanda do Norte e nos países da Commonwealth que por estes dias se lhe prestam homenagens sentidas.
E então, nós por cá temos alguma coisa a aprender com a carreira e a morte desta santa civil?
Algumas coisas ocorrem. Muitos dos nossos bisavós, sobretudo lisboetas, instituíram a República porque, para o país decadente se desenvolver, era, acreditavam, preciso mudar o regime. Não apenas a decadência não se reverteu como o que tivemos foi a balbúrdia da I República, a que Salazar pôs cobro. Este cultivou sempre cuidadosamente relações com monárquicos e republicanos, sem jamais confessar as suas simpatias porque a escolha, qualquer que fosse, se definitiva, era divisiva e portanto não consolidava o poder do Estado Novo.
Houve países que se desenvolveram conservando a monarquia e outros liquidando-a; há monarquias em países desenvolvidíssimos, como os nórdicos, e em outros relativamente atrasados, como a Tailândia; e a Espanha, que tem muitos problemas, não teria certamente menos se, em vez de Filipe VI, se desse à maçada de eleger já não digo um Marcelo (personagem que, para felicidade dos locais, não deve existir) mas um político sénior qualquer. Donde, se a lógica não for uma batata, o regime por si não garante nada, excepto, se for monárquico, uma visibilidade acrescida porque a atracção que uma tal instituição pode exercer só funciona para o exterior se se basear numa tradição histórica, tanto mais respeitável quanto mais antiga – o que significa que uns podem e outros não.
Nós poderíamos. Mas as raras sondagens sobre o assunto parecem indicar que em Portugal o sentimento antimonárquico está fortemente enraizado. Não pode ser pelo amor às realizações da República que, se garantem alguma coisa, é a nossa teimosa manutenção na cauda do desenvolvimento; nem pela aversão à personalidade concreta do putativo rei, que pouca gente conhece; nem pela necessidade de unidade, que a que existe é suficiente, ou reforço da nossa identidade, que temos de sobra; nem pela sombra que a instituição poderia fazer às ambições políticas – a presidência da República nem está ao alcance nem é sequer particularmente atraente para a maior parte dos políticos, nem é um lugar de poderes exaltantes para quem se imagine com vocação de grande reformador.
Então – porquê? A chave entendo que está no igualitarismo que mais de quatro décadas de propaganda instilaram no eleitorado: há pobres porque há ricos, a demolição dos segundos é necessária para avançamento dos primeiros, a desigualdade originada pelas diferenças de meios ao nascimento é em si uma clamorosa injustiça e que é lá isso de um tipo que manda em nós porque é filho, neto e tetraneto de outros que se repoltrearam em sedas e que se distinguiam por grandes bigodes e por gostarem de touradas, sem todavia serem pegadores? Não pode ser.
Claro está que não poucos pais se esforçam e fazem sem reclamar tremendos sacrifícios para que os filhos não apenas tenham uma vida melhor do que a deles mas também do que as dos que não fizeram sacrifício nenhum, mas isso, acha o cidadão, é se não der muito nas vistas. Que se o camarada tiver feito fortuna tem garantido o Inferno, para começo de conversa, e os descendentes a AT, como é de justiça e os partidos de esquerda defendem com os dedos justiceiros frementes de indignação virtuosa.
O princípio monárquico é um de desigualdade consagrada nas leis e nos costumes, donde as pessoas de esquerda não o podem, geralmente, subscrever senão quando não tenham outro remédio, como já sucedeu com primeiros-ministros do Reino Unido como, parece, Harold Wilson, a tomar como verdadeira a alegação que disso se fez no The Crown.
Claro que do ponto de vista prático a instituição resulta provavelmente mais barata para o erário público do que a presidencial, e que necessidades de afirmação e notoriedade, somadas à relativa independência da opinião pública, levam ao cultivo de actividades mais ligadas a tradições que precisam de amparo e menos à popularidade popularucha. E a prova de que a colectividade carece, no nosso como em todos os países, de pompa e circunstância, é que as instituições republicanas não a dispensam, normalmente macaqueando formas que, no caso delas, revestem uma substância vazia.
Há, é claro, mais razões para o republicanismo, sobretudo no contexto de limitação de mandatos, que limita o aparecimento de vícios de poder, desde logo a corrupção, como na frase dos políticos e das fraldas, atribuída a Eça. Pode porém dizer-se que monarcas ou membros de famílias reais são mais corruptos do que presidentes e suas entourages? Pode – se se estiver de má-fé.
A tradição é a democracia dos mortos, como disse um amigo meu devoto de Chesterton e que, tal como eu, não é um militante monárquico. Conhece o país e os nossos conterrâneos, sabe do que a casa gasta e está certo de que o regresso à monarquia não resolveria por si o nosso principal problema, tal como o seu abandono não resolveu.
Numa prece assumidamente de gosto duvidoso, que publiquei no Facebook no dia da morte, disse: Ó deuses, fazei com que Marcelo não diga nada. Isabel merece respeito.
Marcelo já disse, caracteristicamente, as banalidades que achou adequadas, nas quais, a propósito de Isabel, aproveitou para falar de sua exaltante pessoa e, como de costume, dos triunfos que acha ornam a massa que o aplaude.
Isabel merece respeito. E os britânicos, por estes dias, também, além de inveja. Porque conservam a sua herança – nós não.
Uma vez e outra e outra vejo repetida a estafada expressão "ética republicana". Que nunca me pareceu fazer sentido.
Ética é um conceito absoluto, não relativo. E os parâmetros éticos - como o mandamento "Não matarás" ou o imperativo categórico, de Kant - estão acima de regimes políticos, conjunturais por natureza.
Há sistemas políticos excelentes e péssimos. Mas não existe boa ou má ética. Neste contexto, é sempre oportuno recorrer à dicotomia estabelecida por David Runciman, com a sua questão já clássica: preferíamos viver na monárquica Dinamarca ou na republicana Síria?
A pergunta tem muito de retórico pois a resposta de cada um está conhecida de antemão. E ajuda a confirmar esta evidência, para mim inequívoca: ética é um daqueles substantivos que não necessitam de ser adjectivados. Quando lhe juntamos um qualificativo já estamos a desgraduá-lo.
A propósito da efeméride de ontem, quando me perguntam se sou republicano ou monárquico, costumo responder: sou republinárquico, por vezes monarquicano.
Por outras palavras: a questão da forma do Estado não se colocou às pessoas da minha geração. Colocou-se, isso sim, a questão do sistema político. E tanto há democracia em regimes monárquicos como em regimes republicanos. Mas não esqueçamos que quase todos os sistemas totalitários do século XX foram republicanos. Talvez não seja politicamente correcto sublinhar isto, mas é verdade.
Juan Carlos em 1975 com o filho, o actual Rei
Dizem-me que alguns dos mais estridentes defensores de José Sócrates no espaço mediático, que nunca cessaram de proclamar a presunção de inocência do antigo primeiro-ministro, encontram-se agora entre os que negam esse mesmo direito constitucional ao Rei emérito de Espanha.
Tomam as imputações feitas ao pai do actual monarca por uma notória trampolineira social como se fossem verdades absolutas, jamais as questionando, e apressam-se a condená-lo na praça pública.
Negando a Juan Carlos o que sempre reclamaram para Sócrates.
Duplicidade de critério, dupla moral - admitindo que existe alguma. Dois pesos e duas medidas. Para esta gente, a presunção da inocência cai à medida das conveniências políticas do momento e da trincheira em que se instalam.
Gostem ou não gostem, o emérito não foi constituído arguido, sobre ele não pesa qualquer acusação, tem todo o direito de se deslocar para onde entender e de fixar residência sabe-se lá onde.
Algumas carpideiras poderão acusá-lo de ser mulherengo e trair os votos de fidelidade conjugal feitos à Rainha Sofia, sua legítima mulher desde 1962.
Convenhamos que é uma crítica repassada de moralismo passadista, além de uma invasão da esfera íntima do cidadão Borbón. Aliás também aqui sujeita a duplo critério analítico: não me recordo de ouvir os queixumes destas beatas quando o antigo Presidente francês François Mitterrand foi a enterrar na presença simultânea da esposa, da amante e da filha adolescente nascida fora do longo e aparentemente feliz enlace conjugal com Danielle Mitterrand.
Sobra a questão do regime.
A esquerda radical, aliada aos separatistas catalães, pretende transformar um suposto caso de ilícito penal e tributário associado ao pai de Filipe VI em pretexto para proclamar a república. Parece-me algo tão absurdo como se os norte-americanos tivessem aproveitado em 1974 o caso Watergate, que levou à demissão de Richard Nixon, para iniciarem uma acalorada discussão em torno da forma de Estado, admitindo a instauração da monarquia nos EUA.
Acresce que a república esteve sempre associada ao pior da vida política espanhola nos dois curtos períodos em que vigorou, acabando por morrer de implosão. Na primeira versão durou 22 meses, entre Fevereiro de 1873 e Dezembro de 1874. Na segunda, decorreu entre Abril de 1931 e Março de 1939, embora sobre a totalidade do território espanhol só até Julho de 1936, quando eclodiu a guerra civil, que partiu o país ao meio.
Não deixou saudades em qualquer dos casos.
Tenho idade suficiente para me recordar da transição espanhola para a democracia em 1975 e da forma como Franco, profundamente monárquico, conseguiu impor um sucessor oriundo da família real, que pessoalmente preparou para lhe suceder. Na altura ninguém dava nada por esse rei, que na prática usurpava, contra as regras monárquicas, o direito que o seu pai tinha de suceder no trono espanhol. Precisamente por esse motivo, era chamado ironicamente de D. Juan Carlos, o Breve, por se considerar que só tinha chegado ao trono pela mão de Franco, e que a transição democrática acabaria rapidamente por levar Espanha a ser uma república.
Essas previsões saíram furadas, no entanto, no dia 23 de Fevereiro de 1981, quando o Tenente-Coronel Tejero Molina à frente de um grupo de soldados invadiu o Parlamento, na data da tomada de posse do novo Governo, sequestrando ao mesmo tempo os governantes em funções e os que iriam ser empossados, gerando assim um vácuo governativo. Nessa altura, assisti em directo ao Rei a falar pela televisão, dizendo que tinha dado ordens aos Secretários e Subsecretários de Estado para assumirem o Governo e que tinha mandado o Exército combater os revoltosos. E na verdade tinha telefonado a todas as divisões do Exército para saber de que lado estavam, conseguindo os apoios necessários para parar o golpe de Estado.
Só que essa intervenção de Juan Carlos só foi possível devido à preparação que Franco lhe deu, pondo-o em contacto com os militares. Um Rei habitualmente não consegue parar um golpe de Estado, só lhe restando rezar para que os revoltosos não queiram terminar com a monarquia. Em Portugal, o Rei D. Luís foi incapaz de se opor aos sucessivos golpes de Estado do Marechal Saldanha, tendo imediatamente aceitado o governo que ele lhe propunha. A Rainha D. Maria Pia ficou tão espantada com a passividade do marido que disse na cara a Saldanha, que se ela fosse o Rei, mandá-lo-ia fuzilar imediatamente na praça pública, o que Saldanha educadamente retribuiu com uma vénia. Mas Juan Carlos era um Rei diferente dos outros, e podia combater uma revolta franquista, tendo por isso adquirido uma legitimidade especial em Espanha. Os espanhóis continuaram por isso a ser republicanos, mas transformaram-se em "juancarlistas".
Juan Carlos ficou por isso na história de Espanha, mas agora está a sair pela porta baixa. Efectuou uma estúpida caçada aos elefantes, numa época de crise financeira profunda, deixou que os escândalos atingissem a sua família e a si próprio, e depois abdicou no filho, adquirindo um estranho estatuto de "Rei emérito", quando o Rei é apenas um. Por sua vez o filho abandonou-o, chegando ao ponto de abdicar da herança do Pai, como se a sua legitimidade monárquica não residisse precisamente nessa herança.
Agora, o "Rei emérito" parte para o exílio, seguindo o exemplo de tantos outros Reis na era moderna, como o nosso D. Manuel II. Só que, como na altura lhe disse a Rainha D. Amélia, "do exílio não se regressa". Mais valia terem seguido o conselho que a Imperatriz Teodora, mulher do Imperador Justiniano, deu ao marido quando este também pretendeu fugir perante uma revolta, no seu longo reinado: "A púrpura (o manto dos imperadores) é uma linda mortalha". Já não se fazem monarcas como antigamente.
A última mulher que figurou na posição dominante da hierarquia do Estado português foi a Rainha D. Maria II, falecida em 1853.
Mais de cem anos de república, com a sua retórica igualitária, revelaram-se incapazes de gerar o que já havia ocorrido na nossa monarquia setecentista e oitocentista: uma mulher no principal plano de representação simbólica e no principal posto de responsabilidade política.
«Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir.»
Fernando Pessoa, À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais
A monarquia tem uma indiscutível vantagem comparativa sobre a república no imaginário popular. As meninas e os meninos - de todas as idades - ainda hoje sonham com príncipes e princesas. O regime republicano tentou reconverter símbolos monárquicos ao inventar conceitos como "primeira dama" ou "primeiro cavalheiro", com insucesso generalizado. E, já agora, experimentem dizer a alguém de quem gostam muito: "Tu és para mim como a filha do presidente da república." A reacção será gélida ou de escárnio, compreensivelmente.
Esta vantagem existe a outro nível: um rei ou uma rainha são conhecidos, urbi et orbi, só pelo nome próprio. Sem necessidade de apelidos "legitimadores". E, em regra, nome de rei nunca deixa de estar na moda através dos séculos. Basta lembrar os nossos: do Afonso ao Luís, do João ao Duarte, da Maria ao Manuel. Digo-vos eu, que sou Pedro Miguel (ambos nomes de reis).
Mais de cem anos de república deram-nos dezanove chefes do Estado. Mas apenas dois conhecidos pelo nome próprio: o primeiro foi Sidónio, que não por acaso Fernando Pessoa crismou de Presidente-Rei, brevíssimo líder tombado às balas de um assassino, decorrerão em Dezembro de 2018 cem anos exactos; o segundo é o actual inquilino do Palácio de Belém.
Marcelo, apenas Marcelo. Para sempre Marcelo: assim falarão dele os futuros manuais de História.
Entrou ontem no terceiro ano do seu mandato. Que tem sido um mandato feliz, sempre próximo do comum dos portugueses, que o distinguem com a mais franca e calorosa das homenagens, tratando-o pelo primeiro nome.
Em nada diferente dos nossos reis de melhor memória.
Ainda no especial da Sábado sobre ideias de futuro, D. Duarte de Bragança afirma que "em Portugal trabalhar muito é quase mal visto". Felizmente, o Herdeiro da Casa Real tem sabido resguardar-se.
GONÇALO RIBEIRO TELLES
Público, 28 de Outubro de 2007
«O meu desejo é que se implante a monarquia em Portugal para podermos voltar a viver em democracia.»
Ao longo de 770 anos da monarquia portuguesa, houve apenas 16 nomes no cargo supremo do Estado – 15 masculinos e um feminino. Concretamente, sentaram-se no trono seis reis de nome Afonso, outros seis de nome João e cinco reis chamados Pedro. Nomes de monarcas foram também Sancho (dois reis), Dinis (um), Fernando (dois), Duarte (um), Manuel (dois), Henrique (um), Sebastião (um), Filipe (três), José (um), Miguel (um), Luís (um) e Carlos (um). Além de duas rainhas chamadas Maria, que ascenderam ao trono por morte ou abdicação de seus pais, D. José e D. Pedro IV.
O Podemos pode conseguir hoje um bom resultado nas eleições em Espanha. A ascensão deste e de outros populismos fez-me recordar um episódio célebre protagonizado por Juan Carlos I e por Pilar Rahola.
Em 1996, Pilar Rahola foi eleita deputada. Era a cabeça de lista do partido Esquerra Republicana da Catalunha. Como sempre acontece após um acto eleitoral, foi chamada a audiência com o Rei para que este cumprisse o preceito de ouvir todos os partidos antes de indigitar o vencedor daquelas eleições, o Partido Popular. A señorita Rahola decidiu que ia dirigir-se ao monarca tratando-o como “cidadão Bourbón” e que levaria no peito um pin do seu partido, cuja imagem principal era a bandeira republicana. Para além de quebrar o protocolo de Estado na forma como se dirigiria à instituição real, esperava Pilar Rahola que a bandeira republicana surtisse em Juan Carlos I o efeito que o alho provoca nos vampiros. Seria a bandeira a provocar em Juan Carlos de Bourbón a explosão de fúria que poria fim à audiência e que permitiria à deputada sair vitoriosa. Em suma, uma manifestação de infantilismo provocatório, comum aos radicais (à esquerda e à direita) que são obrigados a viver em democracia. E claro, como a provocação era inconsequente – pois dela nada resultaria –, a deputada comunicou com alarde à imprensa o seu propósito antes de entrar na audiência. Sem publicidade, a bravata era uma perda de tempo.
Segundo relatos, Pilar Rahola, ao deparar-se com Juan Carlos I, disse: “Cidadão Bourbón, compreenda que sou republicana e que tudo farei para deixá-lo sem trabalho”. Não atribuindo qualquer importância à ousadia no trato, o Rei respondeu com a sua bonomia lendária: “E eu farei o meu melhor para que não mo tires”. É então quando o Rei repara na bandeira republicana ao peito da deputada. Aproxima-se dela, pede licença, estende as mãos e ajeita-lhe o pin. “A bandeira estava torta, senhora deputada”. Desta vez, coube ao Rei dizer que o populismo ia nu.
A deputada republicana não percebeu que ao desrespeitar o protocolo de Estado não estava a desrespeitar o Rei, mas sim as instituições escolhidas pelos espanhóis na Constituição de 1978. Mas mais importante, o Rei demonstrou que a grandeza das instituições e o respeito pelo modus vivendi constitucional não requerem grandes gestos nem grandes proclamações. Bastou pôr em evidência a debilidade do espectáculo.
Ao que parece, Juan Carlos abdicou da Coroa mas manteve a Corinna.
Um velhote putanheiro que na adolescência matou o irmão com um tiro acidental de caçadeira, uma nora anoréctica, um herdeiro que dá tiros nos pés, uma infanta tonta e outra destronada enquanto o marido é julgado por trafulhice. Não é uma série de ficção sobre o quotidiano de uma família inglesa de subúrbio. É a família real espanhola.