Há uns meses, andava eu pelo Porto, encontrei o 'Pensadora das Coisas Pensadas', da Agustina. Comprei-o, que ainda o não tinha, e abri uma página ao acaso, para nesse acaso me fixar na primeira frase que me surgisse. É um hábito antigo, este, o de abrir ao acaso os livros dos autores de que gosto muito, como que para receber uma inspiração, um conselho. Tiro uma fotografia, registo o dia, e procuro onde aplicar o ensinamento. Ontem dei pela fotografia que tirei ao 'Pensadora das Coisas Pensadas', num imprevisto exacto, oportuno: "O mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única. A harmonia depende possivelmente de que deveríamos impor menos as fórmulas de felicidade, que é bom senso de raros, e aceitar redimensionando-a pela responsabilidade própria, a incoerência de todos".
“Eu gosto que a escrita se dissipe, e volte texto” ficou-me como uma maldição, da primeira vez que li o Ardente Texto Joshua. Um texto que não se encontra na literatura, para além da minha capacidade de discernimento, que justifica a procura, como uma missão. Tudo o que tento é escrita, não volta. Não chego lá, não chegarei lá, e é essa a maldição.
Hoje fiquei sem uma amiga. Sem aviso, sem premonição, fiquei sem ela. E há um sentido inaugural nesta absoluta perda, a primeira que me chega sem cumprir qualquer lógica, consequência ou ordem natural; e que por isso me apanha à socapa, onde mais me dói. Hoje fiquei sem uma amiga. Não é este o momento para escrever, nem saberia o quê, que só me ocorre esta frase, uma e outra vez: hoje fiquei sem uma amiga. Mas não quero deixar passar o dia, quero marcá-lo. Da última vez, há poucos dias, falámos d’O Número dos Vivos, de que ambos gostámos muito. Abro a primeira página e encontro: “existira na bênção saudável e pesada que cobre as flores e os homens a quem o sol desperta e a noite faz horror”. Basta isto. Um beijinho muito grande, Catarina.
Lá de onde eu venho não há quem a não conheça, que tratamos por tu o que no frio encontra conforto para crescer. E de tal forma ali existe, ou persiste, que nunca imaginei que não fosse de conhecimento geral. Só me apercebi do segredo bem guardado quando, chegado a Lisboa para estudar, a não encontrei em lado nenhum. Já lá vão 20 anos e ainda recordo a peregrinação pelas mercearias. Não bastava que nenhuma a tivesse, nenhuma - ou ninguém, melhor dizendo -, sequer parecia saber de que falava eu quando perguntava pela cherovia. As coisas mudaram, bem se vê, e hoje a cherovia vai aparecendo, num ou outro supermercado, com um ou outro nome, que os há. Mas a noção de segredo, de uma coisa de covilhanenses, resiste, e ainda bem.
Pela manhã, marcava a mim próprio uma tarefa mínima de setecentas e cinquenta palavras do romance, e conseguia habitualmente por volta das onze horas ter umas mil. O poder da esperança é extraordinário; o romance, que se arrastara por todo o ano passado, aproximava-se do fim.
O Fim da Aventura, Graham Greene (Ed. Asa, Tradução de Jorge de Sena)
Há quem chegue ao calor antes de tempo, comportando-se como se as ameaças fossem já uma confirmação. Uma espécie de dança da chuva, mas ao contrário - uma dança da luz, feita de linho e pele e por vezes mar, que eu confundo com superstição.
Gostar muito de um escritor ainda vivo permite a expectativa, e sou dos que valoriza esse estado. Gostar muito de um escritor já desaparecido, sobretudo quando não foi assim tanto o que escreveu, encerra, de certa forma, o caso. Bem sei que as releituras oferecem algum espaço, todavia nada que possa comparar-se com a possibilidade de algo nos ser trazido como novidade. Mas de quando em vez descobrimos que o caso não está tão encerrado assim: Flannery, ela mesma, a ler-nos o 'A Good man is hard to find'.
A reaprendizagem da noção de começo, a que imprevistamente me dedico, fez-me procurar ‘O começo de um livro é precioso’, que comprei, aliás, num dia inicial. E dei-me conta que passaram já seis anos, mais precisamente seis anos e um mês, da morte da Maria Gabriela Llansol.
Dei-me conta assim, só assim, que nada houve, nem ninguém, que a tivesse trazido às páginas que lamentam a morte dos grandes (excepciono, claro, o Espaço Llansol). Não fará grande mal. Suspeito até que assim se faça melhor. E penso no ‘encontro inesperado do diverso’, que acaba por ser, destacando essas palavras do corpo que subtitulam, uma boa noção de turismo.
O tempo vai passando de tal forma que a noção de começo quase nos parece antiga e, de certa forma, desaprendida. Num tempo de começos, volto aqui.
O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo perseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a decisão de intimidade se pronuncie. Vou chamar-lhe fio ___ linha, confiança, crédito, tecido.
O começo de um livro é precioso, Maria Gabriela Llansol (Ilustrações Ilda David', Ed. Assírio & Alvim)
Filme de uma família, rodado em 1 de Dezembro de 1947, durante uma viagem à Serra da Estrela, e que me fez regressar às fotografias lá de casa, nas gavetas que só a minha avó abria, e que quase sempre tinham a Serra por cenário.
Não podemos controlar o que sentimos. Podemos treinar-nos na domesticação - nem sempre pelo medo - do que sentimos, e podemos até, com sorte e engenho, aclimatar-nos a um estado de constante alerta. Mas não vale a pena perder tempo em terrenos onde a liberdade ainda não existe e a derrota é certa. O que fazer desses sentimentos, como reagir ou dar-lhes seguimento, aí sim estamos no terreno da escolha. E é aí, só aí, onde a liberdade existe, que a moral começa e a confissão encontra justificação.
Lembro-me que quis calar a cidade e suspender os movimentos, fazer de tudo uma estátua. Havia um céu enorme, desmanchado em luz, que quis desligar. E não consegui esquecer os eléctricos que passavam, levando e trazendo pessoas com destino. Aparentemente o Mundo convivia bem com o mais trágico dos acontecimentos, abrindo a ferida, para usar um eufemismo. E fiquei a pensar na cobardia do Mundo perante a morte. Volto aqui sempre que me morre alguém e dou comigo a pedir desculpa por, também eu, participar dessa cobardia. À família e aos amigos do João, um enorme abraço.
Apenas no Natal me interrogo - com uma inveja para mim pouco compatível com o sentido e espírito de Natal - sobre a vida dos que lidam bem com a nostalgia.
Descubro que a morte não é, afinal, a única irreversibilidade que podemos conhecer. E há algo de muito forte e inaugural nesta descoberta. Como se só agora começasse a idade adulta. E talvez comece mesmo.
Uma grande decisão é sempre precedida, e detesto rimas mas tem de ser, de uma enorme solidão. Podemos partilhá-la, pedir ajuda para sobreviver-lhe ou até esconder-nos em quem mais nos protege. Mas a solidão está lá, naqueles instantes em que nos decidimos, a lembrar que somos quem, não o quê.
Gostar de alguém é também um exemplo de alteridade. Mas antes do outro, do que lhe queremos ou do que por ele estamos dispostos, está o bem que ele nos faz.
29 é o meu número. Faço anos a 29, o que ajuda muito, mas não é só por isso. O meu pai faz anos a 29. A minha mãe fazia anos a 29. Os meus pais casaram a 29. A minha irmã nasceu a 29. E isto, que já basta, pode não encerrar a coisa. Com tantos 29 por chegar, quase tantos como os meses que aí vêm, sei lá eu que outros motivos me esperam para continuar a ter o 29 como número.