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Delito de Opinião

Desjustiça

José Meireles Graça, 16.07.24

Rui Ramos, que leio com gosto e proveito há anos, Alberto Gonçalves, a pena mais ácida e certeira do espaço da opinião, Henrique Pereira dos Santos, uma brilhante e saudavelmente desalinhada cabeça relativamente pouco conhecida, muitos outros ainda, até o patrão do meu blogue e vários das melhores proveniências, todos pertencentes a uma direita latamente entendida, aplaudem com entusiasmo o Ministério Público e a sua actividade. A qual tem amarrado o Poder ao pelourinho da execração pública, arrastando reputações na lama anos a fio para desembocar em ausência de julgamentos, absolvições por falta de provas, suspeitas que não se materializam em acusações, prisões preventivas que não são convalidadas e prazos delas, quanto aos dois dias iniciais, com completo desprezo da lei que os impõe, espectáculos pirotécnicos de buscas domiciliárias com dezenas ou centenas de polícias e magistrados, confisco de computadores e desparrame de notícias na comunicação social, e toda uma parafernália de gesticulações justiceiras que os jornalistas noticiam com diligência e o público devora com deleite.

Já quem torce o nariz a este passear de políticos de sambenito pela praça pública costuma ser de esquerda.

A primeira explicação para estas deprimências mora aqui: a maioria dos potenciais criminosos são de esquerda porque tem sido ela a deter o poder, e portanto os casos de corrupção afectam-na porque só quem pode dá a licença, o alvará, a concessão, o subsídio, o emprego, a adjudicação, o perdão fiscal, o favorzinho ou zão e as outras trinta mil maneiras de lesar a comunidade a benefício de amigos do responsável ou da Situação.

Mora aqui mas moraria noutras paragens se o poder fosse encarnado por outros porque o grande motor da corrupção é o dinheiro que escorre da UE, dos impostos e da permanência do Estado em todas as esquinas da vida económica, não a personalidade concreta destes fulanos de agora. Poderiam ser outros, nomeadamente do PSD, se este tivesse estado, como o PS, acampado tanto tempo nos corredores do Estado. Descontado o caso de Sócrates, que se distingue pela sua desmesura, o resto não seria porventura muito diferente.

Esta constatação não aflige estes preclaros porque decerto dirão que nada permite supor que, nessa hipótese, teriam posições, simpatias e pontos de vista diferentes dos que têm agora.

Faço-lhes a justiça de imaginar que assim seria. Mas acontece que, na esgrima em torno deste assunto, já se vem dizendo (a PGR disse-o, na sua desastrosa entrevista – desastrosa e não desastrada porque nela faz transparecer com sobranceria e convicção o seu entendimento do múnus da magistratura que (não) dirige, que é o de uma casta imarcescível, inescrutável, irresponsável e inimputável) que há uma campanha orquestrada contra o MP e, presume-se, em defesa da impunidade dos crimes de políticos.

É neste ponto que começa a burra a pastar nas couves porque, ahem, aqueles 50 originais assinantes do Manifesto não me convidaram para me associar, decerto por me escassear a notoriedade que a eles sobra. Mas como o assinaria sem hesitar faço também parte, potencialmente, de uma “campanha orquestrada”, ao menos na qualidade de ingénuo porque não vejo a cabala que a Senhora Procuradora-Geral vê.

Se fosse só eu… mas o velho senador António Barreto, um ou outro prócere com sólidas credenciais de direita (como Diogo Feio ou Francisco Rodrigues dos Santos), personalidades com públicas virtus e auctoritas como Fernando Negrão ou Leonor Beleza, e dúzias de advogados (entretanto, o Manifesto dobrou de subscritores e só não cresce mais porque os promotores devem achar, com razão, que já chega) infirmam a tese peregrina de que de um lado estão denodados servidores da Justiça e de outras grandiloquências; e do outro uma gente suspeita movida a motivos obscuros ou nem por isso: amigos da corrupção, em suma.

O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público veio entretanto, também ele, apresentar um Manifesto, que não encontrei senão no site respectivo, naturalmente apenas acessível a sócios e que portanto não li, mas do qual aparecem extractos na imprensa (por exemplo, aqui e aqui). É extraordinário, para dizer o menos, desde logo porque não cabe a um sindicato pronunciar-se sobre assuntos de Justiça, direitos e obrigações dos cidadãos nas suas relações com ela, extensão do conceito de autonomia do MP (que confunde com a dos magistrados, como se uma implicasse necessariamente a outra), e tudo num tom de “nós”, exornados das maiores qualidades ao serviço dos superiores interesses da Nação, e “eles”, aquela malta que, presume-se, quer é ter mão livre para tripudiar em cima do interesse público. Também aparecem, ao que percebi, censuras sobre condições de trabalho, falta de meios e quadros, e bem neste ponto porque só estes assuntos é que cabem na esfera das competências sindicais. Porque, a entender-se que sim senhor, falam do que lhes apeteça, a magistratura do Ministério Público arroga-se o direito de condicionar a AR, e o poder executivo, na feitura das leis.

Influenciar a AR e o Governo é o que querem os assinantes do Manifesto dos 50 – um direito deles e que terá muito, pouco, ou nenhum acolhimento, consoante o jogo político, tributário da opinião pública.  Todavia, os magistrados detêm poderes, que exercem diariamente, e que não têm apenas a força de opiniões. É a isto que eu chamo condicionamento, corporativo dado o número de subscritores (mais de 800, parece, isto é, quase metade), e tacho de ingénuo quem assim não o queira entender.

Temos então que para prevenir a corrupção a escolha seria entre extensos poderes do MP (e que já deram, e darão, lugar a aberrações, abusos e consequências nefastas muito maiores do que o mal concreto que se pretendia combater) e a impunidade.

Também que todos os magistrados são competentes, isentos, nomeadamente de paixões políticas, contidos, e lídimos intérpretes das leis que lhes compete aplicar; e que os poderes que detêm já são suficientemente sindicados, nomeadamente por certas decisões (validação de prisões preventivas ou de escutas, p. ex.) terem a cobertura de juízes de instrução, além das classificações de serviço.

E ainda que é melhor, na dúvida, escutar telefonicamente quem tenha fumos de desonesto, com base em denúncias mesmo que inconsistentes, prender quem pareça ter posto o pé em ramo verde, executar vastas operações com impressionantes meios para a opinião pública se regalar com o espectáculo, investigar sem nenhum cuidado de segredo, e menos ainda discrição, e arrastar interminavelmente os pés em processos em que a populaça exerce o seu indeclinável direito de achar que onde há fumo há fogo e que portanto “eles” têm o que merecem.

A mim parece que, como os pais da Constituição americana sabiamente intuiram, deve-se desconfiar dos poderes, que por isso se devem equilibrar, de pessoas e instituições; que em todas as ditaduras, mas também incidentalmente nas democracias, os abusos cometem-se sempre em nome de um bem maior (a Nação, a raça, a opinião pública, p. ex.); e que o conjunto de regras processuais e penais para garantir que ninguém seja preso injustamente nem vilmente tratado implica o preço de alguns criminosos escaparem, mas a essa imperfeição chamamos Estado de Direito.

Isto. E que há um ausente nesta querela, que é o anónimo que nas rodas da vida pode tropeçar no MP. O qual, se puder abusar do grande, abusa com mais liberdade e facilidade do pequeno. Quantos são esses? Não se sabe, tudo nesta matéria está envolto em ausência de informação e de estatísticas, que não se fazem para a vida das cortes celestiais.

Finalmente, aqueles preclaros são muito pouco ambiciosos, inconscientes dos valores em presença e, ouso dizer, pouco imaginativos. Porque se o necessário combate à corrupção precisa de atropelos será porque se contentam com pouco e tomam como natural que o apelo da vida pública só se exerça junto de quem está disposto a correr o risco de ser enxovalhado, de organização e métodos não percebem muito e acham que não é possível fazer melhor.

Eu não acho nada disso.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 23.05.24

«O eixo do bem, digamos assim, que se reuniu em torno do manifesto dos 50 e pretende reformas legislativas que mudem o Ministério Público, representa a mais acabada vitória de Sócrates sobre a justiça e os seus agentes, sobretudo magistrados e polícias. (...) A velha máxima de Sócrates, partir a espinha ao Ministério Público, é apadrinhada por um vasto conjunto de notáveis. (...) Sócrates está agora acompanhado por gente que não quer uma mudança positiva, um aperfeiçoamento do Ministério Público. Trata-se, isso sim, de gente que se colocou ao serviço de uma velha ofensiva contra o poder judicial, que se materializa em três frentes: a submissão das magistraturas ao poder político através de mudanças de composição nos conselhos superiores; a perversão da investigação criminal através do controlo hierárquico sobre a abertura de inquéritos e realização de diligências; a drástica diminuição da possibilidade de ver sentenças da primeira instância materializadas em considerações definitivas. O que eles querem é claro: uma alteração radical do equilíbrio e da arquitectura de poderes fixados na Constituição de 1976 e em algumas revisões posteriores. Sócrates ganhou e por goleada.»

Eduardo Dâmaso, na Sábado

O dramalhão patético

José Meireles Graça, 13.11.23

Sobre o caso do mês e talvez deste ano e do próximo faço umas reflexões colocando-me deliberadamente à margem da alegria das hostes anti-costistas, e da tristeza das viúvas socialistas, que trocaram posições desde que se conheceu hoje de tarde a decisão do Juiz de Instrução, que não prendeu ninguém nem comprou boa parte das teses exaltadas do Ministério Público. O texto é, para os meus hábitos, extenso, e como há matérias de índole jurídica sugiro aos especialistas do ramo que não me venham torrar a paciência com alguma falta de rigor hermenêutico, ou inexactidão descritiva, ou qualquer outra das maravalhas que os juristas costumam usar para excluir os leigos de considerações sobre a sua especialidade.

A floresta jurídico-penal procura, com respeito da consciência social que considera como ilícitos certos actos e comportamentos, casar a probabilidade da prática de crimes com os direitos dos suspeitos e arguidos deles.

Uns valorizam mais a probabilidade daquela prática, e por isso ligam muito a indícios e raciocínios neles fundados e menos a provas; e outros muito a provas e pouco a suspeitas. Os primeiros entendem que o risco de condenar inocentes deve ceder o passo ao de culpados à solta; e os segundos ao contrário, isto é, não se incomodam que não haja sanções para quem, segundo a nossa experiência de vida, é provavelmente um patife, mas sobre cuja culpabilidade não foi possível reunir provas concludentes.

O nosso ordenamento jurídico pende, como na generalidade do Ocidente, para a segunda; a clientela ordinária dos cafés, os choferes de táxi e certos partidos políticos para a primeira; e a parte politizada da opinião pública para uma ou outra consoante quem esteja em palpos de aranha.

Não é um acaso que as garantias de defesa e certeza jurídica sejam o culminar de um longo processo iniciado, no que toca à certeza, se não estou engando, com o código de Hammurabi, e, no que toca ao resto, num calvário que a História do Direito descreve. A isto se chama civilização e quem precisar que se lhe o explique não está em condições de entender a explicação.

Assim tão simples? Não. Na prática raramente as coisas são tão nítidas, e não o são também no espírito dos magistrados, que são pessoas como as outras.

Pessoas como as outras? Quer isso dizer que, tendo a maior parte de nós um pequeno ditador dentro de si que só espera a oportunidade ou as condições para impor aos outros as suas convicções, crenças, manias, regras de comportamento e mundividências, aqueles também são assim?

São, nunca se inventou um sistema que garantisse que o acesso à condição de magistrado estivesse reservado a sábios com um par de asas nas costas. E como tal invenção não é possível foi-se criando um corpo extenso de regras e garantias imperativas que tentam realizar a administração da Justiça dentro dos parâmetros que o legislador, e a civilização, estabeleceram.

O conhecimento dessas regras, e dos valores que servem, chama-se consciência jurídica, e dela são depositários os juristas.

Aquela consciência, a imparcialidade (por ausência de interesse pessoal no desenlace dos casos), a independência face a poderes, incluindo o da opinião pública, a irresponsabilidade, isto é, o não poder sofrer sanções pelas decisões, a opinião dos pares, e a revisão por instâncias superiores, são o que garante que os juízes não estão ali para conformar o mundo da forma que cada um deles estimaria desejável.

Coisa de humanos, por isso imperfeita. Mas que, entre nós, funciona: as acusações da outra variedade de magistrados, os do MP, frequentemente caem em julgamento, e às vezes logo na instrução.

É aqui, nesta outra variedade, que temos a burra nas couves. Porque enquanto os juízes são passivos, isto é, julgam e têm de julgar solitariamente o que lhes é distribuído, os magistrados do MP não são: superintendem na investigação e decidem propor ou não acusações e medidas de coacção. Isso faz com que, noutros países, a sua acção não seja independente, antes sujeita a uma hierarquia cujo topo último é o Governo, por se achar que se a separação de poderes implica a independência dos juízes, essencial num Estado de Direito, a actividade do MP é caracteristicamente secreta e a acção penal pertence ao poder executivo.

Semelhante arranjo, se importado para Portugal, daria como fatal resultado a roda livre da corrupção porque estaria a raposa de guarda ao galinheiro. É que a nossa tradição cultural é a de olhar com complacência a corrupção, ainda que também com vingativo desprezo os que são apanhados. Disto é prova a tranquila eleição de plausíveis corruptos e a consagração da expressão “rouba mas faz”, mas também a grande satisfação quando alguém aparece oficialmente como indiciado ou acusado, caso em que de imediato se reclama seja trancafiado, atirando fora a chave, e se aplaudam magistrados justiceiros e ferrabrases como o celebrado Alexandre.

A figura do juiz de instrução foi a solução encontrada para casar a protecção dos direitos de investigados, indiciados, acusados ou o que seja, isto é, quem é incomodado na sua vida com intromissões, diligências, limitações e miuçalhas policiais, eventualmente prisão, com as necessidades de investigação.

É uma figura equívoca: Nem é bem um juiz (não julga nem condena com o mesmo formalismo de um verdadeiro julgamento), nem é um polícia, nem superintende na investigação, nem goza do mesmo respeito da opinião pública pelo tribunal, que o vê como fazendo parte do aparelho que acusa as pessoas e não do que as pode absolver.

Mesmo assim, e porque não existem sistemas perfeitos, este poderia continuar se funcionasse. Mas a presente hecatombe, que derrubou o Governo e antecipou eleições, mostra que não pode porque, ainda antes de qualquer decisão, já estão na praça pública reputações destruídas que dificilmente serão reparadas e já, num sentido ou noutro, a disputa eleitoral ficou inquinada.

Sejamos claros: O PS criou um emaranhado tal de leis, serviços públicos, autoridades e poderes, que o tipo de investimento objecto destas convulsões (um mega-centro de dados de não sei quê, para já; umas trapalhadas sobre lítio e hidrogénio a seguir) nunca seria possível sem facilitações, arredondar de cantos, atropelos sortidos e oleamentos vários. É aqui que entram os advogados de negócios, os conhecidos e amigos, os almoços, os telefonemas, as legislações apressadas e toda a parafernália de historietas que compõem este mega-escândalo, para já, de pacotilha.

Pergunta-se: Quem quer licenciamentos para investimentos de muito menos impacto não encontra, com diferença de grau, a mesma parede burocrática e reguladora, o mesmo arrastar de pés, os mesmos decisores lerdos e inimputáveis, estúpidos uns, teimosos outros, a mesma legislação hiper-reguladora exigida por grupos de pressão ambientalista e engenheiros sociais sortidos?

Há nisto tudo uma justiça poética: O mesmo PS que, a golpes de Decreto-Lei e agências governamentais, quer fazer dos empresários uns santos woke, é apanhado quando decide, através dos seus dinâmicos ministros, dar uma de capitão da indústria fazendo “uma nova Autoeuropa”.

Autoeuropa? É boa, se fosse o PSD que estivesse há tanto tempo no Poder as coisas seriam, neste particular, muito diferentes? E a mesma satisfação impante que até hoje se notava nas minhas hostes porque nos tínhamos livrado (se tínhamos) finalmente de Costa não seria a que faria rejubilar a turba esquerdista se amarrado ao pelourinho estivesse uma qualquer nebulosa de próceres daquele partido?

Portugal é um país de tolerância tradicional para com a corrupção, disse acima; e de influência determinante do Estado na condução da economia. Estas duas coisas fazem com que casos como o que por estes dias anda vertido a conta-gotas para os jornais sejam uma fatalidade.

Pode-se acreditar, se se for ingénuo, que os valorosos esforços do MP acabarão por limpar da vida pública todos os miasmas. Mas não: os métodos de comunicação, e os processos, é que serão diferentes: no caso, menos chamadas telefónicas, mails e uotessápes, e mais encontros pessoais discretos e criação de agências específicas para determinado projecto, com poderes majestáticos.

Mesmo assim, se o problema fosse apenas o esgrimir contra moinhos de vento, valeria a pena: afinal, o combate ao crime é para o conter, não para acabar com ele porque isso não é possível. Sucede porém que não só o Ministério Público se tem revelado incapaz de desempenhar satisfatoriamente o seu papel (o caso Sócrates está aí para demonstrar que a criação de monstruosos monumentos acusatórios intratáveis constitui, na prática, denegação de justiça) como, desta vez, tudo leva a crer que deu, ainda mais do que anteriormente, um passo maior do que a perna. Como disse a uma pessoa amiga que me inquiriu:

A julgar pelo que se sabe, que há aqui? Uma floresta de dificuldades legais, administrativas e de multiplicidade de organismos, todos a arrastar os pés, que tornam impossível a realização de qualquer projecto desta natureza sem "agilizações". Que uma empresa contrate um advogado bem relacionado para olear as coisas, e que esse oleamento implique vários cortar de cantos e almoços pagos pela empresa (coisa a que os procuradores ligam aparentemente muita importância) é quase cómico. E um patético presidente da Câmara reclamou uns donativos insignificantes para instituições da terra, credo, e um possível apoio do PS para uma eleição, para pressionar uma vereadora recalcitrante. Crimes, tirando o dinheiro encontrado no gabinete do chefe de gabinete (que talvez tenha e talvez não tenha a ver com estas trapalhadas) e uns procedimentos suspeitos na redacção e publicação de diplomas ordenacionais e legais, não vejo sombra de nenhum. O MP provocou uma hecatombe que vai resultar em nada, se o que há é apenas o que aparece nos jornais e no comunicado da PGR. O pano de fundo disto é o Estado excessivamente regulador, os políticos que têm a mania que são empresários com o dinheiro do contribuinte e a Administração Pública lerda. Problemas de natureza política, que deveriam estar fora da alçada destes hiper-legalistas com mais poder do que o que usariam se tivessem consciência da sua ignorância do mundo real.

De modo que, quando assentar a poeira, algum mecanismo se terá de encontrar para excluir da arena política o Ministério Público, onde não tem de estar, sem com isso se correr o risco de que verdadeiros incidentes de corrupção (que, nesta fase, já caíram)  deixem de ser perseguidos e punidos.

A quadratura do círculo? Se para isso contarmos apenas com magistrados, advogados, juristas, funcionários judiciais e sindicalistas, impossível. Que todas as reformas foram feitas por esses especialistas, dada a complexidade e hermeticidade do assunto, e falharam. Falharam, com perdão da imagem, porque não é razoável contar apenas com os porcos para reformar o chiqueiro. Sempre faltou senso, conhecimentos de organização e métodos, distância e ausência de interesses corporativos. De modo que é a vez de, por exemplo, economistas, pessoas que por não terem o halo conferido pela missão de julgar os outros são mais humildes, têm alguns conhecimentos de gestão, não têm a cabeça formatada em juridicidades ocas, conhecem as quatro operações aritméticas e têm noção dos métodos para atingir certos fins, estão particularmente vocacionadas para este efeito, regulando, por exemplo, a prática do lobismo e remetendo os juristas para o papel adjuvante de conselheiros, não decisores de reformas.

O que não é razoável é consentir, porque desta vez as vítimas são os outros, ou aqueles, que a carreira política venha a ser apenas uma coutada dos que estão dispostos a, com imprudência e azar, correr o risco de ver a vida destruída se não conseguirem provar a um magistrado que têm um par de asas nas costas.

Mais um processo?

João Carvalho, 10.02.11

«Compreendo que haja, num Estado de Direito, esta espécie de parceria entre a Justiça e a comunicação social» — disse Armando Vara na qualidade de arguido no processo "Face Oculta". «A parte má é que há um linchamento na praça pública, porque uma parte vai deixando sair peças ao longo do tempo de forma a criar na opinião pública um culpado e as defesas não têm os mesmos meios.» E ainda acrescentou: «a mediatização do processo tem sido milimetricamente comandada pela acusação» e é «óbvio» que o acusador, o Ministério Público, está «obcecado pelo primeiro-ministro».

Com esta denúncia sobre o comportamento do MP feita publicamente, Vara candidata-se a mais um processo. Ou não?

Só agora?

Sérgio de Almeida Correia, 04.08.10

Dizer nesta altura que tem os poderes da Rainha de Inglaterra não abona nada a seu favor. Quando muito será mais uma evidência sobre a necessidade de extinção da corporação que dirige e da sua premente substituição por uma nova que exerça de facto e de direito os poderes que a dele se mostrou incapaz de cumprir nas últimas três décadas.

Um desastre que demonstra bem o distanciamento da realidade em que vivem os seus membros.

Depois de eu próprio no exercício da profissão ter sido rocambolescamente acusado pelo MP num processo em que tive o apoio da Ordem e acabei absolvido, tendo sido o próprio MP o primeiro a pedir a minha absolvição, perdi todas as ilusões que ainda poderia ter quanto ao papel que alguns dos seus membros desempenham.

Se depois se vem a confirmar que, na prática, não existe qualquer hierarquia, nem disciplina, nem autoridade que se imponha em tempo útil onde ela deve ser exercida, de maneira a que os critérios sejam efectivamente de legalidade estrita e objectiva, e que tudo se resume seraficamente aos poderes de Sua Majestade, então o melhor mesmo é declarar a sua extinção com efeitos imediatos. O país só teria a ganhar. Não há espectáculos eternos. 

O problema, olhando para Cunha Rodrigues, para o senhor que lhe sucedeu e cujo nome lamentavelmente não me ocorre, e para o actual titular do cargo, não é de homens. Não é de nomes. Todos eles são excelentes pessoas e magistrados qualificadíssimos. Mas olhe-se para o sindicato, para os seus sindicalistas militantes, analisem-se as suas declarações públicas (basta ir ao respectivo site) e perceber-se-á o resto da história. O porquê das declarações. O problema é apenas de estatuto, de organização e de mentalidade. Tão simples quanto isso.