Desjustiça
Rui Ramos, que leio com gosto e proveito há anos, Alberto Gonçalves, a pena mais ácida e certeira do espaço da opinião, Henrique Pereira dos Santos, uma brilhante e saudavelmente desalinhada cabeça relativamente pouco conhecida, muitos outros ainda, até o patrão do meu blogue e vários das melhores proveniências, todos pertencentes a uma direita latamente entendida, aplaudem com entusiasmo o Ministério Público e a sua actividade. A qual tem amarrado o Poder ao pelourinho da execração pública, arrastando reputações na lama anos a fio para desembocar em ausência de julgamentos, absolvições por falta de provas, suspeitas que não se materializam em acusações, prisões preventivas que não são convalidadas e prazos delas, quanto aos dois dias iniciais, com completo desprezo da lei que os impõe, espectáculos pirotécnicos de buscas domiciliárias com dezenas ou centenas de polícias e magistrados, confisco de computadores e desparrame de notícias na comunicação social, e toda uma parafernália de gesticulações justiceiras que os jornalistas noticiam com diligência e o público devora com deleite.
Já quem torce o nariz a este passear de políticos de sambenito pela praça pública costuma ser de esquerda.
A primeira explicação para estas deprimências mora aqui: a maioria dos potenciais criminosos são de esquerda porque tem sido ela a deter o poder, e portanto os casos de corrupção afectam-na porque só quem pode dá a licença, o alvará, a concessão, o subsídio, o emprego, a adjudicação, o perdão fiscal, o favorzinho ou zão e as outras trinta mil maneiras de lesar a comunidade a benefício de amigos do responsável ou da Situação.
Mora aqui mas moraria noutras paragens se o poder fosse encarnado por outros porque o grande motor da corrupção é o dinheiro que escorre da UE, dos impostos e da permanência do Estado em todas as esquinas da vida económica, não a personalidade concreta destes fulanos de agora. Poderiam ser outros, nomeadamente do PSD, se este tivesse estado, como o PS, acampado tanto tempo nos corredores do Estado. Descontado o caso de Sócrates, que se distingue pela sua desmesura, o resto não seria porventura muito diferente.
Esta constatação não aflige estes preclaros porque decerto dirão que nada permite supor que, nessa hipótese, teriam posições, simpatias e pontos de vista diferentes dos que têm agora.
Faço-lhes a justiça de imaginar que assim seria. Mas acontece que, na esgrima em torno deste assunto, já se vem dizendo (a PGR disse-o, na sua desastrosa entrevista – desastrosa e não desastrada porque nela faz transparecer com sobranceria e convicção o seu entendimento do múnus da magistratura que (não) dirige, que é o de uma casta imarcescível, inescrutável, irresponsável e inimputável) que há uma campanha orquestrada contra o MP e, presume-se, em defesa da impunidade dos crimes de políticos.
É neste ponto que começa a burra a pastar nas couves porque, ahem, aqueles 50 originais assinantes do Manifesto não me convidaram para me associar, decerto por me escassear a notoriedade que a eles sobra. Mas como o assinaria sem hesitar faço também parte, potencialmente, de uma “campanha orquestrada”, ao menos na qualidade de ingénuo porque não vejo a cabala que a Senhora Procuradora-Geral vê.
Se fosse só eu… mas o velho senador António Barreto, um ou outro prócere com sólidas credenciais de direita (como Diogo Feio ou Francisco Rodrigues dos Santos), personalidades com públicas virtus e auctoritas como Fernando Negrão ou Leonor Beleza, e dúzias de advogados (entretanto, o Manifesto dobrou de subscritores e só não cresce mais porque os promotores devem achar, com razão, que já chega) infirmam a tese peregrina de que de um lado estão denodados servidores da Justiça e de outras grandiloquências; e do outro uma gente suspeita movida a motivos obscuros ou nem por isso: amigos da corrupção, em suma.
O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público veio entretanto, também ele, apresentar um Manifesto, que não encontrei senão no site respectivo, naturalmente apenas acessível a sócios e que portanto não li, mas do qual aparecem extractos na imprensa (por exemplo, aqui e aqui). É extraordinário, para dizer o menos, desde logo porque não cabe a um sindicato pronunciar-se sobre assuntos de Justiça, direitos e obrigações dos cidadãos nas suas relações com ela, extensão do conceito de autonomia do MP (que confunde com a dos magistrados, como se uma implicasse necessariamente a outra), e tudo num tom de “nós”, exornados das maiores qualidades ao serviço dos superiores interesses da Nação, e “eles”, aquela malta que, presume-se, quer é ter mão livre para tripudiar em cima do interesse público. Também aparecem, ao que percebi, censuras sobre condições de trabalho, falta de meios e quadros, e bem neste ponto porque só estes assuntos é que cabem na esfera das competências sindicais. Porque, a entender-se que sim senhor, falam do que lhes apeteça, a magistratura do Ministério Público arroga-se o direito de condicionar a AR, e o poder executivo, na feitura das leis.
Influenciar a AR e o Governo é o que querem os assinantes do Manifesto dos 50 – um direito deles e que terá muito, pouco, ou nenhum acolhimento, consoante o jogo político, tributário da opinião pública. Todavia, os magistrados detêm poderes, que exercem diariamente, e que não têm apenas a força de opiniões. É a isto que eu chamo condicionamento, corporativo dado o número de subscritores (mais de 800, parece, isto é, quase metade), e tacho de ingénuo quem assim não o queira entender.
Temos então que para prevenir a corrupção a escolha seria entre extensos poderes do MP (e que já deram, e darão, lugar a aberrações, abusos e consequências nefastas muito maiores do que o mal concreto que se pretendia combater) e a impunidade.
Também que todos os magistrados são competentes, isentos, nomeadamente de paixões políticas, contidos, e lídimos intérpretes das leis que lhes compete aplicar; e que os poderes que detêm já são suficientemente sindicados, nomeadamente por certas decisões (validação de prisões preventivas ou de escutas, p. ex.) terem a cobertura de juízes de instrução, além das classificações de serviço.
E ainda que é melhor, na dúvida, escutar telefonicamente quem tenha fumos de desonesto, com base em denúncias mesmo que inconsistentes, prender quem pareça ter posto o pé em ramo verde, executar vastas operações com impressionantes meios para a opinião pública se regalar com o espectáculo, investigar sem nenhum cuidado de segredo, e menos ainda discrição, e arrastar interminavelmente os pés em processos em que a populaça exerce o seu indeclinável direito de achar que onde há fumo há fogo e que portanto “eles” têm o que merecem.
A mim parece que, como os pais da Constituição americana sabiamente intuiram, deve-se desconfiar dos poderes, que por isso se devem equilibrar, de pessoas e instituições; que em todas as ditaduras, mas também incidentalmente nas democracias, os abusos cometem-se sempre em nome de um bem maior (a Nação, a raça, a opinião pública, p. ex.); e que o conjunto de regras processuais e penais para garantir que ninguém seja preso injustamente nem vilmente tratado implica o preço de alguns criminosos escaparem, mas a essa imperfeição chamamos Estado de Direito.
Isto. E que há um ausente nesta querela, que é o anónimo que nas rodas da vida pode tropeçar no MP. O qual, se puder abusar do grande, abusa com mais liberdade e facilidade do pequeno. Quantos são esses? Não se sabe, tudo nesta matéria está envolto em ausência de informação e de estatísticas, que não se fazem para a vida das cortes celestiais.
Finalmente, aqueles preclaros são muito pouco ambiciosos, inconscientes dos valores em presença e, ouso dizer, pouco imaginativos. Porque se o necessário combate à corrupção precisa de atropelos será porque se contentam com pouco e tomam como natural que o apelo da vida pública só se exerça junto de quem está disposto a correr o risco de ser enxovalhado, de organização e métodos não percebem muito e acham que não é possível fazer melhor.
Eu não acho nada disso.