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Delito de Opinião

Covide

José Meireles Graça, 01.12.22

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(Fotografia de Telmo Azevedo Fernandes)

O Minho seria bonito se nele não houvesse construções. Mas há, por todo o lado, e quem o sobrevoar a olhar para o chão vai descobrir que o casario está em grande parte disperso, raros sendo comparativamente os descampados. As casas tradicionais, que já quase não há, eram pobres (quando não miseráveis) e desconfortáveis, e as casas das pessoas de posses, que eram poucas, ou desapareceram, ou estão em ruínas, ou foram recuperadas com o gosto que há, que é o gosto que não há.

Houve um tempo em que os emigrantes de torna-viagem faziam umas misturadas ingénuas e pavorosas entre o que julgavam moderno e o que tinham visto nos países onde angariaram os meios para ter a casa dos sonhos no terrunho em que nasceram, e quem se ocupava do risco das maisons eram uns desenhadores habilidosos que serviam de arquitectos. A construção era (como ainda hoje) feita muitas vezes com materiais baratos, isolamentos deficientes e organização do espaço absurda. Mesmo que houvesse terreno para a horta, esta ficava atrás e não à frente da casa porque o emigrante queria compreensivelmente afirmar o seu sucesso: a casa era para ser vista, e fundi-la com a paisagem seria um desiderato incompreensível.

Nem todos os materiais são maus. Na região há abundância de granito, e dele se fez um considerável consumo. Que porém não será suficiente para evitar que em devido tempo a maior parte destas construções fique em ruínas porque os descendentes de quem as fez não se ocuparão de as conservar – não gostam do que gostavam os seus pais e avós  e ademais fixaram-se em cidades, cá ou no estrangeiro.

Não sei dizer se a morte do campo nos formatos tradicionais é uma coisa boa ou má, e também não sei, porque o futuro é uma incógnita, se não haverá, num dia longínquo, um retorno a vidas mais próximas da terra e menos dos vizinhos por cima e por baixo.

O que sei é que a ingenuidade dos meus conterrâneos que deram à sola à procura do futuro melhor que encontraram, e que acima com sobranceria verbero, compara bem com a minha própria: julguei que quando os desenhadores jeitosos que tinham bons contactos nas Câmaras fossem substituídos por arquitectos, como hoje acontece, as coisas melhorariam. Que nada, onde dantes havia ingenuidade agora há pretensão, e ao orgulho do proprietário somou-se o do autor do projecto, que agride geralmente a paisagem e o passante no esforço de copiar luminárias como Souto Moura. Nada de grave, todavia: em devido tempo todo este lixo virá abaixo.

E a que vem este paleio? Sucede que hoje fui almoçar a um lugar improvavelmente chamado Covide, no concelho de Terras de Bouro, e segui por estradas secundárias.

O restaurante tinha um nome apelativo (Cantinho do Antigamente) e, salvo a carta dos vinhos (que era medíocre, segundo um camarada comensal que sabe dessa poda), oferecia cabrito, pataniscas, mais não sei quê e postas de carne. Servi-me de uma gigantesca posta de cachena, que julguei não ir liquidar inteiramente mas que aviei por completo, salvo por uns bocados que fui dando ao gato, que hipocritamente fingiu simpatizar comigo enquanto esperava pelas repetições, que foram muitas (cabia aqui uma judiciosa comparação com as relações entre Portugal e as instâncias europeias, mas o assunto cai fora do escopo deste artigo, que aliás não sei bem qual é).

Ao acompanhamento, um arroz de feijão vermelho e verduras que se apresentou com pundonor e não desmereceu, dei um considerável desbaste; e à sobremesa um humilde mas canónico leite-creme queimado coroou com estilo este mergulho no Minho profundo e serrano.

O preço? 23 euros por cabeça, incluindo cafés e duas garrafas de um maduro razoável, para seis pessoas.

De modo que não sei que diga: Olho para a província em que nasci e vivo com frequente desconsolo; e de vez em quando reconcilio-me, como hoje.

Lugares verdadeiramente históricos

João Pedro Pimenta, 02.09.20

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Os lugares e monumentos, testemunhas do passado e da História, moldaram o povo que somos hoje.

Falo, como já certamente repararam, daquele casarão amarelo torrado à esquerda. Ali começou Jorge Mendes a sua carreira de agente futebolístico, quando, ao explorar a discoteca Alfândega, conheceu o jovem guarda-redes Nuno Espírito Santo, que, entre investidas nos bares da Rua Direita e farto dos humores de Pimenta Machado, queria mudar de ares. Mendes tratou de tudo, levou-o num processo turbulento de Guimarães para o Deportivo da Corunha e mais tarde para o Porto, e ainda hoje Nuno, agora treinador do Wolverhampton, é representado por ele. Não fosse esse encontro e as carreiras de Cristiano Ronaldo, Mourinho, Di Maria, James Rodriguez e tantos outros seriam provavelmente diferentes.

Já agora, na casa em ruínas à esquerda, em baixo, nasceu o "Presidente-Rei" Sidónio Paes, uma das figuras mais marcantes da 1ª república. Deixou como legado à terra que o viu nascer um bolo de amêndoa e ovos que é altamente aconselhável.

Não interessa nada, mas a meio, entre a Rua Direita, a torre do relógio e a muralha em frente ao rio vemos a matriz de Caminha, do séc. XV, um dos mais belos edifícios religiosos em Portugal, com o seu exterior gótico e, dentro, um tecto de madeira em estilo mudéjar, com inúmeros motivos marinhos.

Reencontro em Vilar de Mouros

João Pedro Pimenta, 07.09.17

Este é o momento de um reencontro. Os dois vultos em destaque no palco são Jim Reid, vocalista dos Jesus and Mary Chain (o seu irmão William está atrás, na guitarra), e Bobby Gillespie, lí­der dos Primal Scream. Os dois grupos são originários de Glasgow, surgiram em meados dos anos oitenta e marcaram a cena musical no fim dessa década e no início da seguinte (é sabido que os Mary Chain influenciaram os Pixies e mesmo os Nirvana). Mas antes de se virar para o microfone, Gillespie tocou bateria no grupo dos irmãos Reid. Há dias, em Vilar de Mouros, deu-se o feliz reencontro. Embora já tivesse sido anunciado, houve largos aplausos quando antigo baterista entrou em palco para dar início à  emblemática Just Like Honey, do primeiro disco da banda, Psychocandy, onde ainda participou, e que teve um suplemento de popularidade quando Sophia Coppola se lembrou de a escolher para temo de fecho de Lost in Translation.

 

Pelo que percebi, Gillespie não saiu em conflito do seu antigo grupo, mas não voltou a colaborar com eles, pelo menos desta forma tão exposta. Não encontrei sinais de outro concerto em que se tivessem voltado a juntar. O acaso, ou a vontade dos organizadores, permitiu que tocassem no mesmo dia e no mesmo local. E em Vilar de Mouros, os Jesus and Mary Chain voltaram à  formação inicial dos anos oitenta, com emoção e nostalgia à mistura. Só mesmo num ambiente como o da aldeia minhota, no decano dos festivais portugueses "de Verão", é que tal coisa poderia acontecer. E o público, que não era constituído exactamente por campistas adolescentes, agradeceu.

 

Reviver o passado em Caminha

Pedro Correia, 15.06.17

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Devido à profissão dos meus pais, ambos professores, passei a infância a saltitar de terra em terra. Quando fiz 12 anos vivia já na oitava casa onde morei, em cinco terras muito diferentes.

Na altura, como julgo ser normal acontecer com qualquer miúdo nas mesmas circunstâncias, isso entristecia-me. Porque me sentia incapaz de cultivar amizades de infância que perdurassem para a vida. Hoje, pelo contrário, considero que esta constante itinerância produziu efeitos muito mais positivos do que negativos. Graças a ela, posso gabar-me de ter várias terras em vez de uma só.

 

Há quem não valorize isto, mas eu gosto de sentir que fui dispersando raízes por diversos quadrantes a que de algum modo posso chamar meus. Mesmo quando estou muitos anos sem visitá-los. Tem-me acontecido por estes dias, aproveitando as férias de Junho. Passei toda a semana anterior numa das minhas terras adoptivas: Tavira, que frequento com raras intermitências desde há vinte anos.

De um dia para o outro, no entanto, decidi rumar do extremo sudeste ao extremo noroeste do País. Confirmando que bastam oito horas para atravessarmos Portugal de lés a lés. E cá estou em Caminha, onde não pousava há três décadas. Não por falta de vontade mas por falta de oportunidade.

 

Ainda bem que voltei. Porque esta é uma das paisagens da minha infância. Vivi três anos em Viana do Castelo e fazíamos praia um pouco onde calhava, ao longo da estrada nacional 13: Carreço, Afife, Vila Praia de Âncora. Há poucas horas passei defronte da antiga Pensão Meira, hoje um orgulhoso hotel de Âncora, onde a família se alojava durante parte da estação estival.

Mas as minhas melhores memórias infantis de Verão são daqui, da foz do Rio Minho que tenho neste preciso momento defronte dos meus olhos. Do areal de Moledo, onde pela primeira vez vi pára-ventos, presença obrigatória nas praias minhotas batidas pela nortada. Das águas plácidas do rio, que frequentávamos quando o oceano ficava mais agitado. Da aprazível mata do Camarido, com o seu parque de campismo e os seus aromas a flores silvestres. Das caldeiradas em família no entretanto desaparecido Pirata, situado junto ao posto da velha Guarda Fiscal

 

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Regressei. E fiz bem. Calcorreando no presente os trilhos do passado quase como se não houvesse décadas de permeio. Eis-me de volta à marginal, que acompanha o vasto rio fronteiriço - semelhante aos cenários que transplantámos para todas as paragens onde deixámos marca, do Rio de Janeiro a Díli, de Luanda a Macau, de Goa a São Tomé.

A paisagem do passado ecoando no presente: a muralha seiscentista, a matriz, as tílias na praça central, a torre do relógio, o Coura desaguando no Minho, a silhueta tutelar da Serra d' Arga e a massa imponente do Monte de Santa Tecla, na Galiza, atraindo-nos para o outro lado da foz.

Sinto-me miúdo outra vez enquanto cruzo estas ruas. Quando cá vínhamos, abancávamos por vezes na Adega do Chico, típico restaurante familiar. Nunca mais soube dele até há dois dias, quando deparei com ele quase por acaso. Está praticamente na mesma: só deixou de haver serradura no chão, como era habitual nas adegas daquele tempo.

Até o prato mais emblemático ainda é o célebre bacalhau à Chico.

 

É o que peço, sentado na esplanada, enquanto escrevinho estas linhas, acompanhadas de goles de um fresquíssimo verde de Ponte de Lima - outra paisagem da minha infância que quero revisitar.

Cada vez mais me convenço que a felicidade em abstracto não passa de uma utopia: existem, isso sim, múltiplos momentos felizes.

Este é um deles. E há que aproveitá-los todos: cada qual é um pedaço de eternidade.

Vou à terra! Que quereis que traga?

Gui Abreu de Lima, 24.04.13

Desafiou-se a alma ao desapego, contando aliviar-se, coitada. De querer eternas as pessoas, imóveis as coisas e os lugares. A ilusão do sempre, a desilusão do fim. Mas nestas paragens, regala-se. Não há desapego com nexo, nem coisa que pese, e o que a comove, da alvorada à noitinha, é poder gozar todos os apegos. É um ror de lembranças, de expressões esquecidas, de um povo igual ao que a criou. E lides bonitas, vivas, terras milagrosas, águas que ainda correm, gente de empenhos e jeitos só seus. Regala-se, refaz-se, aqui, a alma.

 

Já vai longa a nossa história. Tu tens séculos para contar e eu décadas. Quando me acolheste era ainda uma menina. Vinha de outro hemisfério, de paisagens cheias de sonhos. Tomaste-lhe tu o lugar. Eras a terra prometida. A saída. O horizonte onde os dias haveriam de medrar. Que o passado, por amor à vida, passado era.
Em ti cresci o maior bocado de que tenho memória. E aprendi que embora aos homens fossem destinadas diferentes sortes, tu te davas de igual modo a todos eles. Nunca tiveste reservas, era essa a tua lei. Por isso depressa me apaixonei.
Foram anos e anos de repimpados banquetes, de apetitosas orgias debaixo desse teu céu. Nos invernos mais gelados, em infinitas Primaveras, a cada tórrido verão, que invariavelmente acabavas em cores de palha e com milhares, milhares de folhas pelo chão.

Ensinaste-me o teu cantar e os seus passinhos de dança. Que pujança! Mostraste a que cheiram as ervas daninhas, o valor de uma colheita, o sabor em que terminam as tuas vinhas. No som de várias enxadas a guiar os ribeirinhos, o rigor de cada trabalho, e a alegria dos domingos.
Eras uma vila airosa, onde todos se falavam. Na ponte, no rio, no largo, no chafariz, até na feira, ainda que aos gritos apregoasse uma tendeira, era esse o teu cariz. Não há pronúncia mais bela em todo o Vale do Lima e onde a língua portuguesa, mesmo em dorida expressão, teime entoar uma canção.
Hoje trazes novidades. Foste à cidade beber? Para mim ainda és a mesma, sempre, sempre o hás-de ser. A brisa fresca, a verdura insinuante, os campos até ao rio, montanhas até ao céu, a saia de florinhas, bordada a muros de pedra. Para mim, és sempre a mesma, desde aquele primeiro dia em que me deitaste a mão.
Já não tenho aquela força de te correr dia a fio, de subir a cada galha, de aguentar a geada, de amassar uma fornada. Resta-me, vila, olhar-te serenamente. Dizer para dentro de mim “soubesse as pândegas que já vivemos, esta gente...”. Agora é que sou fidalga. Repouso pelos relvados, à sombra dos castanheiros, em vez do vira, ouço fados.
Não estou diferente, não é. Sabes bem que quero é mimos. E quem melhor que tu, meu vale, para me curares a saudade e cuidares dos meus meninos? Mostra-lhes o que me ensinaste, sem que eu tenha de falar. Sopra-lhes tu aos ouvidos, reflecte nos seus peitos o que tens para lhes dar.
Que de ti se enamorem. Eles e todos os outros. Esses que por aqui vêm, sedentos de paraísos, procurando uma razão que lhes perfaça os sentidos. Isso para ti é fácil, não sabes tu outra coisa. Dá-lhes mais uma malguinha, serve-lhes o prato cheio, deixa-os debaixo da ramada encostados a um esteio. Uma coisa te garanto. Regressam agradecidos, esquecidos de todo o pranto.

 

Foto: Ricardo Polónio

 

Cale

Laura Ramos, 16.08.11

Na A1 em direcção ao Norte, rumo a esse trópico imaginário com nome alquímico: férias. Os preliminares enjoam-me. E o cansaço, este ano, devorou qualquer réstea de festa antecipada. -Quando conseguirei eu partir sem mais, de mãos a abanar, livres para agarrar tudo o que me espera? Excesso de bagagem. Malas mentais, a abarrotar de peso. Felizmente, neste percurso só há controladores de velocidade e flashes devassadores que disparam instantâneos sobre o meu carro, e os  de todos nós, os que desafiamos o limite estabelecido por decreto. Não há check-in nas autoestradas portuguesas (ai, se descobrem e se lembram, como se lembraram da via verde). Apesar de tudo, vou decidida mas de olho vivo em tudo e todos, não vá um doido quebrar o manual de sobrevivência do infractor, tacitamente aceite pelos viajantes do asfalto.
Saí pela fresca. A tardinha garante-me a paz de que preciso. Não gosto de calor e o ar condicionado faz-me mal. Prefiro a janela aberta, o vento na cara, a estrada razoavelmente livre e o Venham Mais Cinco em altos berros no leitor (ninguém ouve). Nas duas faixa S-N, o espectáculo de sempre: pesados a ultrapassar pesados, obrigando os ligeiros a travar, a bufar, a reduzir drasticamente a velocidade para que os tontos possam brincar impunemente. Passo o Porto, e o dédalo de entradas. Desta vez, nada com ele. Quero é a ponte do Freixo, a última cortada. A ver se não me engano na entrada para a A3 (eterna ratoeira para quem circula sempre pela esquerda).  Feito. A preceito. E então sim, suspiro, num arremedo de felicidade, porque me sinto a passar a barreira da atmosfera. Estou finalmente em terras do condado. Há lá força telúrica que se compare a isto... Começo a cantar alto e o parceiro do lado acorda, estremunhado (dorme sempre, num cumprimento à qualidade da minha navegação terrestre... gosto de pensar que é disso). Nomes deliciosos: Cruz. Celeirós. Um rio, Labriosque. Passos. Martim. Um pouco mais e pronto: eis-me chegada a estas paragens onde tudo é verde, tudo é granito escuro, a fazer brilhar hortênsias e glicínias, onde tudo é água e em suma, profusão. Agora, sim, apetece-me andar a 40. Quero sentir o cheiro forte a eucalipto, ouvir os cigarrais, gozar a noite fresca e perder-me a olhar o céu despudoradamente transparente, exibindo aquele disco branco, enorme, que me confirma a entrada num outro reino de grandezas. Essa lua diferente, imensa, nova-rica do espaço sideral, que teima em vir comigo estrada fora, até chegar ao portão verde da casa onde me aguardam.
Boa noite às coisas aqui em cima. Soou a minha hora!