O Estado vs a Vida, segundo Torga
Lembrei-me de um dos Novos Contos da Montanha de Miguel Torga, que fui reler.
Fala da vida em Fronteira, uma terra que apenas dava à sua gente a água da fonte. Tudo o resto vinha de Fuentes, em Espanha.
Ali a vida era vivida de noite a tentar escapar aos guardas, que, de espingarda em riste, guardavam o ribeiro como podiam. Os contrabandistas, por seu lado, com carga às costas, passavam o ribeiro como conseguiam.
“E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros – guardas e contrabandistas –, fala-se honradamente de melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.”
O conto não é extenso, fala dos aldeões, dos guardas do Estado, de disparos a matar e também de amor.
Mas foi esta dualidade que me prendeu a atenção. Trabalhar por conta do Estado, neste caso a matar, ou por conta da Vida, a tentar escapar.
Esta pequena história é uma metáfora da relação entre o Estado, que quer controlar a população, e os aldeões, que apenas desejam sobreviver.
O guarda Robalo, atraído para tais funções pela garantia de ordenado certo e a reforma por inteiro, sem disso dar conta vive dentro de uma bolha. E isso aumenta-lhe o empenho. Afirma que dispararia até contra a sua própria mãe, que fosse.
Com o correr da acção a bolha onde vive irá rebentar, mas esta visão maniqueísta de que servir o Estado é atacar os prevaricadores faz por ignorar que do outro lado desenrola-se a Vida, e Vida, escrita por Torga, com V maiúsculo.
Do alto da sua ofuscada visão do mundo, o guarda Robalo, ignora que existe Vida para além do que a sua curta vivência lhe permite enxergar. E essa curta vivência e visão serve ao Estado que o alimenta e veste. Sem disso dar conta, ele é apenas um instrumento, bem instruído, que tem a Vida por adversária. No fim de contas, o Robalo é apenas um intermediário entre os seus donos que lhe tolheram a vontade e a sua bala que em brasa é disparada contra a Vida.
Este confronto é uma parábola cheia de metáforas escrita por um rebelde que viveu, e escreveu, incomodado com a capacidade dos que conseguem reduzir a realidade a um binómio de bons e maus, e de caminho asseguram o conforto próprio. Se sempre existiram desigualdades, para quê mudar isso, especialmente se se está do lado vantajoso?
Ignoram que a Vida já existia antes do Estado e que este lhe é apenas um acrescento, e não o contrário.
No regime actualmente em vigor em Portugal, a liberdade está refém do Estado. A liberdade de Abril não é a efectiva liberdade dos cidadãos, mas apenas a liberdade que o Estado entende dar aos cidadãos. O Estado, e os que por ele falam, decide a amplitude das escolhas possíveis. Os que por ele falam sabem que há opções, que mesmo que funcionem noutras paragens, cá seria uma irresponsabilidade escolhê-las, especialmente porque isso colocaria os cidadãos fora da sua esfera.
Várias décadas depois dos contos de Torga, as fardas e as balas são diferentes, mas o confronto ente o Estado e a Vida mantêm-se e nunca terminará. Cabe a cada um de nós escolher o lado onde se deve viver a Vida.