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Delito de Opinião

Certeiro!

Cristina Torrão, 30.03.25
Não sei se é permitido. Talvez eu esteja, à semelhança de Luís Montenegro, não a praticar um crime, mas a demonstrar "falta de ética". Porém, não resisto. Esta crónica de Miguel Sousa Tavares, publicada no Expresso, no passado dia 27, é tão, mas tão certeira... impossível não divulgar. Na verdade, copiei uma cópia, divulgada no Facebook.

Gostaria de acrescentar que não sou grande admiradora de Miguel Sousa Tavares, por, normalmente, tanto discordar dele. Depois de Trump ter ganho as eleições norte-americanas, porém, não podia concordar mais, pelo menos, sobre este assunto.

Os realces são da minha responsabilidade.

 

UM SÓ HOMEM (Miguel Sousa Tavares, Expresso, 27/03/2025)

 

«No dia 20 de Janeiro, depois de ter assistido à tomada de posse de Donald J. Trump como Presidente dos Estados Unidos, prometi a mim mesmo que não iria seguir obcecadamente cada passo da sua administração nem me deixaria deprimir pelo que aí vinha. A vida tem motivos muito mais interessantes do que acompanhar o desvario político, mental e humano do homem mais poderoso do mundo. Sim, Trump é Presidente dos Estados Unidos e os Estados Unidos detêm a maior capacidade militar e nuclear do mundo. Quer isto dizer que, em querendo, podem dar ordens ao mundo inteiro e ditar o destino de todos. Mas o meu, não.

 

Enganei-me: o meu também. Não consegui manter a minha promessa pela simples razão de que tudo o que está a acontecer na América ultrapassou em pior a minha imaginação, e como eu vivo neste tempo e neste mundo em que está um bandido à solta na Casa Branca e um grupo de marginais a acolitá-lo, não é possível, como cantava o Adriano Correia de Oliveira, viver serenamente. Não é possível, por mais que se queira — até como forma de resistência —, abstrair das malfeitorias diárias do Presidente dos Estados Unidos.

 

Se a agenda foi cumprida, o Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, Mike Waltz, acompanhado de altas patentes militares, está esta sexta-feira na Gronelândia para avaliar in loco as potencialidades militares de um território a que Trump disse que, por razões de segurança, ia deitar a mão, “de uma maneira ou de outra”, comprado ou invadido. Na comitiva vai também a “vice-primeira dama”, a mulher do idiota J. D. Vance, e um filho, viajando em missão turística para ela mostrar à criancinha a conquista que o pai e o seu amigo Presidente vão fazer para os Estados Unidos. A Gronelândia, recorde-se, pertence à Dinamarca e a Dinamarca pertence à NATO, a organização militar de defesa comum liderada pelos Estados Unidos. Isto parece inacreditável, mas somos forçados a acreditar depois de termos visto, apenas nos primeiros 60 dias de governo, Trump reivindicar, além da Gronelândia, o canal do Panamá, a Faixa de Gaza, as riquezas minerais e as centrais nucleares ucranianas, e mesmo o Canadá, a quem convidou a tornar-se o 51º estado da União!

 

Por falar em NATO, ficámos também a saber que Trump não garante que os Estados Unidos respeitem o artigo 5º do Tratado, o “um por todos, todos por um”, que é o fundamento da organização. Mas como poderia garanti-lo se ele próprio fala abertamente em tomar posse de territórios, ou mesmo de países, seus aliados na NATO? A sua regra é simples: se é do seu interesse, da sua segurança ou do seu aprovisionamento estratégico, os Estados Unidos têm o direito de fazerem o que quiserem. Ao mesmo tempo que ele, Trump, ordena aos aliados europeus que desatem a gastar fortunas em armamento comprado aos Estados Unidos e delicia-se a receber, em audiências de vassalagem, os grandes da Europa, Keir Starmer e Macron, ou o seu pau-mandado Mark Rutte, secretário-geral da NATO, que lhe foi dizer que as suas ordens serão obedecidas e que a organização atlântica está pronta a marchar “under your comand, Sir”.

 

Entretanto, ameaça os palestinianos com o “inferno”, como se fosse novidade para eles, e bombardeia os hutis no Iémen para se substituir ao “parasitismo europeu”, como lhe chamou Pete Hegseth, um atrasado mental vindo da Fox News directamente para chefiar o Pentágono. A devoção de Trump por Israel é tanta, o seu desejo de tudo dar ao seu amigo Netanyahu é tamanho, que a polícia de emigração está a expulsar do país estudantes que participaram em manifestações contra o massacre em Gaza, mesmo que sejam residentes legais nos Estados Unidos, e a impedir de entrar no país quem se manifestou pela Palestina: agora, para entrar nos Estados Unidos é preciso nunca ter posto em causa as acções de Israel e sair é arriscar não poder voltar a entrar. Uma após outra, as principais universidades do país vêem o governo federal cortar-lhes os fundos sempre que alguém, no governo de Trump se lembra de ter lá visto manifestações pró-Palestina: Harvard ainda resiste, Columbia já ajoelhou, pronta a alinhar com o desejo de Trump de “banir esta insanidade antiamericana de uma vez por todas”. De caminho — coisa verdadeiramente inédita — encarregou a ministra da Educação de extinguir o respectivo Ministério, declarando que “agora é que vamos ter educação a sério!”. O pretexto é a invocada “esquerdização” do ensino e das universidades, das suas políticas de integração agora proibidas ou o desperdício de dinheiros públicos em aprendizagens inúteis ou antipatrióticas. Mas, na verdade, esta fúria contra o saber que está a paralisar a investigação nas universidades e a aterrorizar todos fundamenta-se numa coisa que é própria da ignorância arrogante de Donald Trump: o ódio à inteligência e ao conhecimento, que, para ele como para os seus apoiantes do MAGA, representa apenas a justa revolta do povo contra as elites intelectuais e académicas. O programa de Trump não é o de aproveitar e tirar partido do melhor dos Estados Unidos — a excelência de um ensino universitário que deu ao país dezenas de Prémios Nobel e o colocou na vanguarda do conhecimento científico e tecnológico. O seu programa e o seu génio político é ter sabido interpretar a nova luta de classes, que não é entre quem tem e quem não tem, como imaginou Marx, mas entre quem sabe e quem odeia os que sabem.

 

Mas, bem entendido, a grande ameaça de Trump à democracia americana e ao Estado de Direito na América e no mundo é o seu profundo desprezo por princípios que temos como universais nas nações civilizadas. Trump comporta-se como um Nero reencarnado, cego de vaidade e embriagado com o desfrute de um poder sem limites. O exemplo extremo disto foi a deportação para a Guatemala, e para uma prisão tida como a mais desumana do mundo, de uma centena de imigrantes venezuelanos que alguém decretou subitamente serem membros de um grupo de criminosos. Sem julgamento, sem instrução e sem defesa, foram expulsos dos Estados Unidos e enfiados numa prisão guatemalteca, sem prazo definido de detenção. Assim, o Presidente americano, sem qualquer interferência da Justiça, arroga-se o poder de acusar, julgar, condenar, decretar e executar a sentença, mesmo em país alheio: juiz de instrução, juiz de julgamento e juiz de execução de penas. E quando um juiz verdadeiro quer saber porque não foi obedecida a sua ordem de suspender a expulsão dos venezuelanos, Trump ameaça afastar esse e todos os juízes federais que contrariem judicialmente os seus desejos, e começou a perseguir, com as suas já célebres notas executivas, até as sociedades de advogados que representaram ou onde trabalhou alguém que o tenha investigado no passado. Trata-se daquilo a que agora chamam o “brokenism”, a política de partir tudo, mesmo a Constituição dos Estados Unidos e os direitos e garantias individuais, em nome da revolução conhecida como Projecto 25 — a tomada de poder por um homem e uma facção ao seu serviço no mais poderoso país do planeta. E, sobre tudo isto, alia a um desejo de vingança sobre quem não lhe reconheceu a vitória eleitoral em 2020, uma crueldade assustadora. O Presidente que se dispõe a fazer propaganda a favor do homem mais rico do mundo, transformando a Casa Branca num stand de automóveis Tesla, é o mesmo que da noite para o dia extinguiu a USAID, mandando para o desemprego todos os seus funcionários e condenando milhões de pessoas à fome, à doença e à miséria, em África e na Ásia pobre, e que corta todas as verbas para a investigação de vacinas para doenças como a malária.

 

Como é que chegámos aqui? Como é que a “land of the free”, uma nação de referência do mundo democrático, num instante se está a transformar num fascismo unipessoal? Como é que chegámos aqui? Chegámos pelo voto popular, pela escolha da maioria dos americanos. Porque hoje já não é necessário derrubar as democracias por golpe militar: derrubam-se nas urnas por voto popular manipulado e planeado por golpistas silenciosos nas redes sociais.»

O Determismo Reducionista

jpt, 07.07.24

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Através das "redes sociais" (pérfido instrumentos de alienação, como adiante se verá) dois amigos enviam-me declarações de teor político emanadas agora por três romancistas. Um enviou-me o texto no "El País" com breve entrevista de Michel Houellebecq sobre as eleições francesas de hoje, na qual ele - enquanto, até distraidamente, deixa cair o seu sentido de voto avesso ao pacote lepenista - se declara "pessimista e resignado" e avança, ainda que num registo conversacional algo superficial, algumas causas sociológicas para a complexa deriva francesa.
 
Outra amiga, cruel, enviou-me o "Expresso", em óbvio convite para que eu lesse os artigos de Miguel Sousa Tavares e Clara Ferreira Alves, que há décadas acompanham os nichos de classe média leitora do semanário. São duas, longas (estes colunistas têm direito a página inteira), bojardas, ignaras, nisto até indignas. Pouco francesas, dir-se-ia se comparando com o exemplo anterior. Aquilo a que décadas atrás, quando se discutia o efeito do marxismo, se chamava "determinismo", "reducionismo economicista (tecnológico)". Os dois "fazedores de opiniões" dos licenciados lusos de meia-idade e seniores, abordam as eleições mundiais actuais, atribuindo a viragem "à direita" à perniciosa e malévola influência das redes sociais, à instrumentalização executada pelos seus magnatas. CFA centra-se no debate presidencial americano e vê o evidente colapso democrata como causado pelos tais magnatas - nem um caractere sobre as características do plutocrata sistema político americano, sobre a sua socioeconomia, sobre a degenerescência do partido democrata, sobre a sua incapacidade de gerar em XXI candidatos e ideários. Pois a "culpa" é das redes sociais.
 
MST insurge-se contra este generalizado "Triunfo dos ressabiados". Diante deste seu título logo me lembro de quando há uma década voltei ao país e encontrei esta constante utilização por parte dos socialistas e seus compagnons de route. Todos nós, que vozeávamos contra o miserável socratismo e a cáfila dos seus apoiantes, éramos ditos "ressentidos" e "ressabiados" - um antigo meu colega e, depois, chefe, teve até a descarada lata de cortar relações comigo, por razões "políticas", usando esses termos. Ou seja, todos os que nos opunhamos a este lamaçal antidesenvolvimentista sofreríamos de doenças de foro psicológico, por causas psicóticas (o "ressentimento") ou orgânicas (o "ressaibo"). Era - e essa escumalha socratista, estadodependente, nem o percebia - a tradução lusa, nos nossos propalados "brandos costumes", da velha prática soviética: os "dissidentes" eram doentes psíquicos e deviam ser internados em hospícios.
 
E MST vem agora preencher mais uma das suas páginas de "Expresso" com estes disparates, tão queridos dos tais leitores "classe-média". Aborda um feixe de eleições recentes (e manipula tanto que foge a referir as últimas eleições britânicas que não lhe dariam jeito ao ditirambo), funda os seus resultados no "algoritmo" das redes sociais, atribui a "viragem à direita" à ignorância dos povos, dos jovens e, claro, ... à ultrapassagem da mediação dos jornalistas. Ou seja, antes é que era bom, reinava a "iluminação" global.
 
Entretanto os imbecis, licenciados, continuam a comprar esta tralha "Expresso". E, pior, a ler estes "intelectuais" da treta. E consomem os produtos que publicitam no douto semanário.
 
E nós outros, "ressentidos" e "ressabiados", chafurdamos, orgásticos, sob o Algoritmo.

Eles andam aí

Paulo Sousa, 20.11.23

Ler (2)

Pedro Correia, 28.05.22

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É sempre um momento agradável. Quando abro um novo livro, já o anterior ficou para trás. Faço questão, quase sempre, que seja de um género muito diferente. Para que as memórias de um e outro não se confundam.

Mas desta vez encalhei no primeiro parágrafo. A obra seleccionada foi Último Olhar, o mais recente romance de Miguel Sousa Tavares. Na esperança de que atenue tantas asneiras que tenho lido dele no Expresso sobre a agressão russa à Ucrânia.

Vicio de jornalista que passou largos anos a corrigir prosa alheia: leio sempre de lápis na mão. É uma forma de dialogar com o autor. Desta vez fiz cinco anotações imediatas no texto. Coisas que me pareceram incorrectas e deviam ter sido alteradas por um editor rigoroso.

Os livros de Sousa Tavares padecem deste mal: Equador, romance com méritos, tem cerca de 150 páginas em excesso e pelo menos um longo capítulo que está ali a mais. Imagino que ninguém na editora ousou beliscar o ego do autor, sugerindo-lhe alterações profundas no original. Foi pena. Teria sido melhor para todos. Incluindo os leitores.

 

Vamos lá às modificações que eu faria se fosse editor do romancista Sousa Tavares. Estão aqui assinaladas.

A primeira resulta de uma sintaxe que se vai generalizando por óbvia influência brasileira, derivada da escrita norte-americana. Refiro-me à mania de polvilhar frases com pronomes que no português europeu são desnecessários por estarem subentendidos. É o caso deste possessivo: se «consultou o relógio de pulso», só podia ser o dele. Aquele seu está ali a mais.

Segunda: o coloquialismo é que, redundante na escrita literária, aceita-se apenas se estivermos a reproduzir discurso oral. Não é o caso. Merecia o risco que lhe passei em cima. Já recomendava o grande Georges Simenon: «Escrever é cortar.»

Terceira: erro elementar de lógica: se são «cinco em ponto da tarde», em aparente paráfrase ao verso de Lorca, aquele mais ou menos inserido na mesma frase perde sentido. Uma coisa não cola com a outra.

Quarta: outra redundância, esta ainda mais escusada. A tal caravana de ambulâncias trazia a bordo, obviamente. Não iria transportar fora de bordo fosse lá o que fosse. Algo similar ao célebre «cai chuva lá fora» em que tropeço com frequência. Só admissível nos casos em que possa chover dentro de portas.

Quinta e última: o vírus da covid-19. Não entendo aquela preposição. Outra frase com gordura em excesso. E já nem discuto a súbita alteração de género, transitando do vírus masculino para o acrónimo de importação inglesa tornado feminino. «O vírus covid-19» bastaria. Mesmo numa Espanha «agonizante de pavor>.

 

Cinco incorrecções num parágrafo inicial são fatais, segundo o meu critério. Algo só possível porque os editores literários, quase sem excepção, recusam hoje alterar o material que lhes chega de autores consagrados. Noutros países, como os EUA, as provas são observadas e anotadas com minúcia. Longos excertos cortados, abundantes pontos de interrogação e comentários de todo o tipo ajudam o autor a melhorar o seu trabalho, chame-se ele como se chamar.

Levaram-me a fechar o livro, que aguardará nova oportunidade. Hei-de voltar a ele. Mas outros já lhe passaram à frente.

Miguel Sousa Tavares featuring André Ventura

jpt, 17.11.20

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Nunca tinha ouvido - com ouvidos de ouvir - o que diz André Ventura. Por isso tive curiosidade suficiente para acompanhar a entrevista de ontem que o (já) decano Miguel Sousa Tavares lhe fez na televisão. É consabido que trinta e tal anos de poda jornalística não trouxeram particular sageza a MST, mas muito mais um arrogante e opinativo blaseísmo. Digamos que ele se tornou no inverso do MEC, outro dos "Miguéis" da geração que se celebrizaram, até como focos identitários, desde os 80s.

Ontem isso foi gritante. O professor Ventura, sem particular carisma ou dons oratórios, propaga o vácuo - aquela da redução abissal dos impostos em troca da diminuição dos ordenados dos deputados e do corte nas fundações estatais e algumas outras (inditas) "gorduras do Estado", como se dizia há anos, é mesmo para "patego ver".

Mas Sousa Tavares ultrapassa-o nessa vacuidade, a qual lhe é decerto catapultada pela sobranceria, viçosa na sua estufa de total inexistência de autocrítica. Para além de erros factuais e de descuido no centramento da entrevista (estava diante de um candidato à presidência, coisa que tarde e más horas recordou ... e para logo esquecer), o jornalista lá veio com o que lhe é tópico constante, o desprezo pelas gentes das "redes sociais" - nós, o público. Pois, claro, além de para aqui andarmos ao engate, como já referiu do seu pedestal moralista, somos ignorantes e pasto de populismo. E depois, o veterano jornalista, escritor de renome, descendente de ínclita geração, confortável no seu bom berço acima desta gentinha dos tuiteres facebuques, pergunta ao candidato "gostava que a sua filha casasse com um cigano?" e "tem algum amigo preto?". Credo!, que ininteligência, que básico. Mais popularucho, mais "redessocial" não haveria ... 

Finda a entrevista fiquei angustiado. Não por crer que o professor Ventura ali tinha ganho simpatias e, porventura, eleitores, agradados com aquela "genuinidade", qu'ele há gente para tudo, até para acompanharem os programas de Sousa Tavares, quanto mais para aquilo. Mas fiquei angustiado pois ocorreu-me a hipótese de a minha princesa, a minha amada filha, me aparecer um dia com um namorado jornalista. Sim, eu tenho amigos jornalistas. Mas mesmo assim que horror! Gente a la Sousa Tavares nos jantares de Natal, quando eles voltarem a acontecer? Ateu que sou, invoco o nome de Deus, que me salve de tal praga ...

 

Heróis

Pedro Correia, 06.09.20

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«Vem aí a segunda vaga ou a segunda onda de medo. A segunda oportunidade para a coragem e para conhecer os verdadeiros heróis. Ouvi que Mário Nogueira já começou a colocar entraves aos professores nas aulas, que os magistrados do Ministério Público acham que ainda não há acrílicos suficientes nos tribunais para os proteger, que os médicos estão reticentes em voltar aos hospitais e que os funcionários públicos que não ficarem de baixa mas sim em teletrabalho querem aumento de ordenado pelos "custos acrescidos" de trabalhar em casa. Sim, tivemos muitos "heróis" na primeira vaga. Professores em casa, tribunais fechados meses a fio, médicos e enfermeiros (tirando os que, de facto, atendiam os doentes covid, uma minoria) resguardados em casa enquanto lhes batiam palmas às janelas. Mas os verdadeiros heróis foram outros: os trabalhadores dos supermercados, os camionistas e os trabalhadores dos armazéns que traziam os produtos para os supermercados, os pescadores e os trabalhadores agrícolas, a maior parte deles imigrantes, vivendo em contentores, trabalhando sem máscaras nem distanciamento social. Enquanto todos estiveram trancados em casa, foram eles que garantiram o confinamento, foram eles os ignorados heróis. Agora, que vamos ensaiar a normalidade, vamos ver como se portam os outros.»

 

Miguel Sousa Tavares, ontem, no Expresso

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 03.06.18

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Livro três: Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares

Edição Clube do Autor, 2018

362 páginas

 

Não há segunda oportunidade para uma primeira impressão. Este é um livro que nos conquista logo à primeira. Desde logo pelo originalíssimo título, que é um achado. Refere-se à merenda que o pequeno Miguel comia em casa dos padrinhos, numa aldeia do Marão onde frequentou os dois anos iniciais do ensino básico. Ali aprendeu lições para a vida que desfia neste saboroso volume de memórias, subintitulado "Da Infância Para o Mundo".

É talvez o melhor livro deste jornalista que foi infatigável viajante antes de se tornar escritor. Um livro escrito com visível prazer e indisfarçável vontade de eleger o leitor como cúmplice. Fala-nos de um Portugal que já não existe - o Portugal triste e ensimesmado da ditadura, o Portugal festivo do 25 de Abril, o Portugal alucinado do PREC, o Portugal errático mas transbordante de esperança da primeira década em democracia.

Ao contrário do que costuma suceder entre nós, onde as memórias partilhadas em público são escassas e as recordações surgem embargadas entre biombos para não melindrar terceiros, aqui o autor liberta-se de eufemismos e não se furta a fazer desfilar nestas páginas personalidades com nome próprio. Por vezes com episódios divertidíssimos, como quando Mário Soares e Maria Barroso adormeceram durante uma projecção caseira de Lawrence da Arábia na residência algarvia, deixando embaraçadíssimo Sousa Tavares, que ali estava como visitante. Ou o director do defunto jornal A Luta, o socialista Raul Rego, que todos os dias encomendava um bitoque para almoçar à mesma hora, fechado no gabinete, e só aparecia na Redacção para berrar com um chefe depois de Soares ter berrado com ele por não gostar da suposta manchete do dia seguinte. Ou da mãe do cineasta João César Monteiro, «ainda mais doida do que ele», que apareceu um dia lá em casa chorando porque o filho tinha morrido «e ela não tinha dinheiro para o funeral», arrancando lágrimas - e dinheiro - a toda a família. «No dia seguinte, sem nada saber da própria morte, aparece-nos o morto, ressuscitado, a pedir almoço.»

Algumas das melhores páginas desta memórias que se lêem de um jacto são dedicadas aos pais. Sobretudo à mãe, Sophia de Mello Breyner Andresen, que lhe legou máximas inesquecíveis. Eis uma delas: «Viajar é olhar.» Miguel, justamente comovido, confidencia-nos: «Também aprendi com ela que saber partilhar o silêncio é a forma mais íntima de estar com alguém. E, na verdade, por maior que seja o silêncio, nunca deixou de falar comigo. Quanto mais não seja nos poemas que deixou nas páginas dos seus livros, alguns dos quais escrevi nas paredes da minha casa para que ela saiba que continuo a escutá-la.»

 

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

 

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras):

Reflexão do dia

Pedro Correia, 20.04.15

«O acordo [ortográfico] foi negociado em segredo, foi introduzido à socapa como facto consumado, foi imposto à força, contra a contestação geral ou quase, e finalmente foi ratificado ilegalmente visto que o tratado que o fundou não permitia a alteração que se fez: foi celebrado por sete países e estava previsto que cinco o ratificassem para entrar em vigor e como não se conseguiam esses cinco fez-se uma alteração legal dizendo que bastavam quatro para o fazer. A entrada em vigor do acordo é ilegal.

O acordo não só não resolveu nada que supostamente queria resolver como praticamente agravou todas. Criou contradições e coisas anedóticas. Por exemplo: dizia-se que era preciso aproximar a língua da oralidade e temos o exemplo do pára e do para, que é uma coisa absurda. (...)

Era preciso unir a ortografia porque havia duas. Mas neste momento há três: a brasileira, a portuguesa de antes do 'acordo' que muitas pessoas continuam a utilizar, como eu, e a portuguesa depois do acordo. Isto gerou tamanha confusão... nos documentos públicos, no ensino público e até na própria imprensa há partes do acordo que são facultativas e outras que não são. Isto gerou uma cacofonia total e absoluta. Dentro de uma geração os pais não vão perceber o que os filhos escrevem - e vice-versa. (...) O brasileiro chega a Portugal e, em vez de encontrar a recepção do hotel, que é como eles dizem, encontra a 'receção' do hotel, o que é uma anedota.»

Miguel Sousa Tavares, no Jornal da Noite da SIC 

Contributos para o estudo da presunção de inocência: o argumento cara-de-pau

Rui Rocha, 29.11.14

O problema de Isaltino Morais é que a cara dele condiz com o que o tribunal o acusa de ter feito. Não apenas as provas e as suas fracas justificações: a cara, também. Ensinou-me a minha mãe, há muitos anos, que se deve olhar bem para a cara das pessoas, antes de ajuizar sobre elas. Confesso que é um conselho que nem sempre me lembro de seguir e, quando me esqueço de o fazer, normalmente acabo por me arrepender. O tribunal acusou e condenou Isaltino por coisas nada brandas, no exercício de funções públicas: fuga ao fisco, branqueamento de capitais, abuso de poder e corrupção passiva. E eu olho para a cara dele, penso na inexplicável fortuna do sobrinho da Suíça, lembro-me das declarações da ex-secretária e recordo a 'arrogância', de que fala a sentença, com que ele respondeu às acusações, e acho-o bem capaz disso.

Pois, é verdade, permanece a presunção de inocência. Enquanto todos os recursos que vão ser sucessivamente interpostos não estiverem decididos, enquanto esta sentença não transitar em julgado (o que irá demorar anos), Isaltino Morais tem o direito a ser presumido inocente. Mas as coisas mudaram muito com a sentença: um tribunal já o julgou culpado e agora é ele que tem de provar a sua inocência, e não o tribunal que tem de provar a sua culpabilidade. Tem de provar que o tribunal se enganou e que se enganou grosseiramente, julgando-o culpado de quatro crimes dos quais não terá cometido nenhum.

Miguel Sousa Tavares, Expresso, 10 de Agosto de 2009

 

Os "tudólogos" nacionais e a política americana

José Gomes André, 11.09.12

Infelizmente, os cronistas de maior audiência em Portugal são profundamente ignorantes acerca da política americana. O que não os coíbe de se manifestarem sobre o tema, como qualquer bom "tudólogo" deve fazer. Os disparates tornam-se portanto frequentes. Que o diga Miguel Sousa Tavares, que afirma, entre várias tolices, ser desejo da dupla Romney/Ryan "fazer a guerra aos árabes, russos, chineses e aos pretos", proibir o aborto até mesmo em caso de violação, extinguir o IRS para os mais ricos e defender "o direito inalienável de todos os cidadãos andarem armados e dispararem livremente". Até dava para rir, se não fosse sério.

 

Ontem à noite, Marcelo Rebelo de Sousa resolveu juntar-se à festa e alinhar na lógica do comentário desinformado. Dizia o Professor que a Convenção Democrata tinha sido um insucesso e que correra francamente mal a Obama em particular ("que está uma sombra" do que foi), prevendo que a Convenção tenha um impacto nulo nas eleições. Curioso. A maioria dos comentadores elogiou a Convenção Democrata. O público americano gostou da Convenção, que teve maiores audiências do que a Republicana. Todas as sondagens mostram uma subida de Obama durante e após a Convenção. Nate Silver, um dos maiores especialistas eleitorais americanos, escreveu, ainda no Sábado, que a Convenção Democrata pode mesmo ter marcado um momento decisivo na campanha, catapultando Obama para a condição de "claro favorito" (front-runner).

 

Mas que interessa tudo isto? Todas estas sondagens, comentários e dados estatísticos? Marcelo acha que não correu bem. E se Marcelo acha que não correu bem, quem se atreve a dizer o contrário? Como dizia o saudoso Gore Vidal, "the biggest problem of our time, is that everyone has an opinion, but nobody has a thought".