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Delito de Opinião

Dez anos sem Miguel Portas

Pedro Correia, 24.04.22

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O tempo passa a uma velocidade vertiginosa. Reparo agora que o Miguel Portas morreu faz hoje dez anos. «Todas as mortes são prematuras», escreveu Jorge de Sena. Mas algumas parecem ainda mais cruéis, ainda mais inesperadas, ainda mais injustas. Por nos roubarem ao convívio com gente no auge da vida, com tantos planos por cumprir, tantos sonhos por realizar.

Miguel deixou-nos com 54 anos incompletos, suscitando manifestações de genuíno pesar vindas de todos os quadrantes políticos - como testemunhei na homenagem fúnebre que lhe foi prestada no Palácio Galveias. De uma dignidade que não esqueço. Pais, irmãos, filhos, companheira, camaradas de partido, eleitores do Bloco de Esquerda, imensas figuras públicas, incontável povo anónimo. Congregados naquele momento triste mas raro - quase único - de consonância na política portuguesa. De algum modo comovente também por isso.

Do economista que foi jornalista e era eurodeputado quando a doença o golpeou, guardo a memória daquele sorriso confiante num futuro promissor e da integridade das suas convicções. Com uma característica que todos lhe reconheciam: sabia respeitar quem divergia dele. Facto muito menos vulgar do que alguns imaginam nesta amálgama de trincheiras em que se transformou a política portuguesa.

Dez anos já sem o Miguel - irmão do meu amigo Paulo, filho da minha amiga Helena, que continua a dar-nos espantosas lições de tenacidade e força de viver. Um sentido abraço a ambos. Sem mais palavras, porque também pelo silêncio comunicamos em dias como este.

A vida continua...

Helena Sacadura Cabral, 30.04.12
 
"Os filhos são um empréstimo de Deus."
Depois da missa de ontem o meu coração serenou. Fiz tudo quanto o Miguel pediu antes de morrer. Acabei como devia, entregando-o nas mãos de quem mo emprestou. Amanhã ele faria 54 anos.
Hoje recomecei, mansinho, a trabalhar. Como ele desejaria. Mais uma vez em sua homenagem. Aquela que só uma mãe pode dar.
Porque a vida continua e, felizmente, ainda tenho vivos de quem me ocupar.

O comentário da semana

Pedro Correia, 29.04.12

«O Miguel Portas (trato-o assim por sentir certas afinidades de respiração comum) foi uma alma grande e inteira, feita de um corpo de inquietação pelo mais alto das nossas vidas: a justiça, sobretudo para os mais fracos.

Os seus gestos públicos, marcados pela inteligência, tolerância, convicção e empenho, são afinal a expressão de um amor apaixonado por um Portugal, que queria livre e fraterno a sua Mátria a quem serviu de cem maneiras, que foi também uma Pátria em construção no diálogo com o Outro, a Europa, o Mundo.
As suas andanças pelo Médio Oriente, que a RTP transmitiu em programas, à procura das marcas que a nossa história aí deixou, apontam assim no mesmo sentido: elas falam de nós quando nos afastámos para além de nós, dão-nos a ver o Outro que já fomos, mas o Outro é o pano de fundo onde se inscreveram os nossos gestos.
É assim no diálogo do presente com o nosso passado e de nós com o Outro que se encontra o caminho a trilhar para que Portugal possa hoje reorientar a sua situação debilitada. E é a reafirmação política da Europa que há-de condicionar a nossa reabilitação.
Nós assistimos a este compromisso firme, que Miguel Portas traçou até ao fim, entre o destino da Europa na sua conexão orgânica com Portugal.
Obrigado, Miguel, por tudo o que fizeste no plano público. Oxalá bebamos a lição do teu exemplo.»


Do nosso leitor Vasco Tomás. A propósito deste texto do João Carvalho. 

«Ele merece, sem dúvida»

Pedro Correia, 28.04.12

 

A meio da tarde, enquanto aguardava duas horas, numa imensa fila de pessoas que se estendia do Campo Pequeno à Avenida Defensores de Chaves, dobrando duas esquinas sucessivas, escutei um homem que por ali passou dizer a outro: «Ele merece, sem dúvida.» Sabia a razão daquela fila interminável: durante cerca de cinco horas, milhares de pessoas deslocaram-se hoje ao Palácio Galveias para prestar uma sentida e expressiva homenagem ao eurodeputado Miguel Portas, que morreu terça-feira em Antuérpia a poucos dias de completar 54 anos.

Escutei por acaso aquela frase, que me pareceu uma excelente legenda para esta romagem de apreço por um homem que soube cativar figuras dos mais diversos quadrantes ideológicos. Por isso não me admirei de ver por lá gente tão diversa como Mário Soares, Maria Barroso, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio, Pedro Passos Coelho, Assunção Cristas, António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, Manuel Carvalho da Silva, Pedro Santana Lopes, Teresa Villaverde, Pina Moura, Almeida Santos, Luís Fazenda, Ruben de Carvalho, Manuel Graça Dias, Bagão Félix, Maria João Avillez, João Cravinho, António-Pedro Vasconcelos, Rui Vilar, Ricardo Costa, Pezarat Correia, António Vitorino d'Almeida, Inês de Medeiros, Mário Crespo, Pedro Choy, João Botelho, José Fonseca e Costa, Mário Tomé, Maria Antónia Palla, Vítor Dias, António Pires de Lima, Joana Amaral Dias, Ângelo Correia, Judite Sousa, Pedro Rolo Duarte, António Perez Metelo, Vasco Vieira de Almeida, José Sá Fernandes e José Ribeiro e Castro - entre tantas outras personalidades.

Enquanto abraçava os dirigentes do Bloco de Esquerda presentes junto à urna (Francisco Louçã, João Semedo, Fernando Rosas e José Manuel Pureza) e os familiares mais próximos de Miguel Portas, incluindo os irmãos Catarina e Paulo e a nossa Helena, ia confirmando este raro condão do eurodeputado bloquista que perdurou para além do seu desaparecimento físico: ele era capaz de congregar a admiração sincera de muitos que não pensavam como ele. Por ser veemente na defesa dos seus ideais, transparecendo calor humano e convicção, sem nunca confundir claras divergências políticas com animosidades pessoais.

«Ele merece, sem dúvida.» Em dia de despedida, Miguel Portas podia ter muitos epitáfios. Este - espontâneo, genuíno e popular - foi um dos mais certeiros. 

Cravo

Patrícia Reis, 25.04.12

Hoje é o dia da Liberdade. Dos cravos e das canções do Zeca Afonso e da voz de Paulo de Carvalho. Hoje é o dia que não pode  ser esquecido porque, afinal, vivemos há menos tempo em democracia do que vivemos sem ela.

Liberdade tem vários sinónimos, um deles é reciprocidade, paridade, o ser para os outros na mesma medida em que são para nós. Não há gavetas e caixinhas. Liberdade são pessoas, rostos de todos os feitios e formatos, que podem conversar e sorrir.

Este dia é, todos os anos, um dia feliz. Hoje será um pouco menos porque uma mãe perdeu um filho e esse filho amava, tanto quanto a mãe, a liberdade ganha. Não está cá para a celebrar. Assim, quando for à feira do livro, logo à tarde (se São Pedro ajudar) levarei um cravo pela Helena, pelo Miguel e por todos os que não o podem trazer ao peito. Em sinal de que a memória não se apaga nunca. 

Où sont les neiges d'antan?

José Navarro de Andrade, 24.04.12

Aquele Portas do Passos Manuel é o pior deles todos, avisou o controleiro.

E lá fomos preparados então para o pior, a pé, obviamente em manifestação. Devia ser Outono, era no final de 74 de certeza e o nosso objetivo revolucionário consistia em ganhar as eleições do MAESL na reunião geral do ensino secundário de Lisboa a realizar a meio da tarde de aulas no pavilhão da cidade universitária.

Lista A a nossa, a única coerente e popular. Lista B dos NEIP do Nery, insidiosamente inteligentes, intelectuais mesmo. Lista C de uma qualquer das milhentas facções que dividiam os 10 trotskistas de Lisboa. Lista D a do Portas, o rei dos revisionistas, ou social-fascistas como berravam os MRPPs à porta, porque nunca participavam em nada que não fosse a revolução socialista aqui e agora e já.

Inicia-se a reunião em sala tumultuosa, cada um colocando as suas peças em lugar estratégico para o caso de haver molho. E houve, e a culpa foi do Portas. Ia-se votar uma moção – votava-se tanto e tão de braço no ar a fazer peito – e o Portas pergunta à magna assembleia:

“Quem é que não está em desacordo com esta proposta?”

Levantou-se uma tremenda surriada, provocador!, golpista!, revisionista!, insultos assim dos piores, e a páginas tantas já está ali um foco de confusão. O Nery ainda grita “calma! Calma!” mas alea jacta est. Ferveu tabefe em todas as direcções, a mim calhou-me o braço ir em direção à incipiente calva do Portas. O gajo vira-se e volta-se – vai responder. Um trotska, os empatas do costume, interpõe-se sem querer e a cena morre como começa. O Portas olha-me de lado com cara de que haverá próxima – não houve.

Foi preciso passar muito tempo para perceber que nós éramos assim porque os nossos pais nos deixaram. Ofereceram-nos o presente liberdade e nós soubemos abusar dela, tal como devia ser, incorrendo em toda a sorte de tropelias idealistas. Na verdade, descobrimos depois, fizemos tudo aquilo que os nossos velhos desejariam ter feito quando tiveram o nosso tempo, que para eles fora negro e triste – quem não seja disparatado aos 15 será enfadonho aos 30. O mundo era nosso e já amanhã. Foi quase.

Enfrentar o desconhecido

José António Abreu, 24.04.12

A primeira vez no deserto foi uma epifania. Não me interpretem mal. Só o conhecia do cinema e dos livros e humildemente admito sempre o ter encarado com prudente relutância.

“O deserto é como o esqueleto do ser, frugal, rarificado, austero, absolutamente bom para nada.” (1)

Tinha apontado religiosamente esta frase no bloco de notas antes de mergulhar no inevitável. “Absolutamente bom para nada”, pois. Mas há sempre uma primeira vez e devo confessar que tive sorte, muita sorte. Não é por acaso que as associações entre as areias e os mares são recorrentes. No “mar” de areia, o oásis é uma “ilha” e foi por aí mesmo que comecei. Pelo fragmento de deserto que é o seu contrário, o que não foi feito pela mãe Natureza mas pelo esforço dos homens. Habituámo-nos, todos, a imaginar os oásis como pequenos lagos arredondados protegidos por palmeiras. Devem existir oásis assim, mas não conheço nenhum. O da minha primeira vez foi uma preguiça estendida ao longo de trezentos quilómetros, entre maciços montanhosos. Nem redondo nem palmar. Apenas deslumbrante. Permitam, então, que vos conte.

Partimos de Aden, no Sul do Iémen, em dois Toyotas. Rumámos na direcção do Oriente. A estrada comportava-se bem, seguindo paralela à costa, até começar a desaparecer diante dos nossos olhos, submersa por ventos de areia que insistiam em mergulhar no Índico. Perto de um porto abandonado, imitámo-las. Creio que o fizemos como viemos ao mundo, ante o olhar complacente e distraído de uns quantos camelos. Refrescados, retomámos a rota, agora para Nordeste, em direcção das montanhas. Os jipes subiram durante uma boa hora. Tínhamos a estrada e a paisagem só para nós, quando um deles começou a ficar, a pouco e pouco, para trás. Naquela montanha careca e pedregosa, sem vivalma, o atrasado quase não subia e o dianteiro prometia vertigens na descida, o que viria a acontecer quando os seus travões se decidiram por uma greve de zelo. Lembrei-me logo de outra frase de bolso, que parecia feita de encomenda para a situação:

“Na cidade, a aventura é um evento excepcional num cenário normal; no deserto, é um acontecimento normal num fundo excepcional.” (2)

Numa curva larga da ascensão, o condutor da frente encostou e decidiu esperar pelos atrasados. Enquanto não chegavam, abriu a sua porta, desceu pela encosta umas dezenas de metros, procurou uma pedra lisa e em cima dela colocou uma lata de Coca-Cola. Depois regressou ao jipe e dele retirou a sua kalaschnikov e ainda uma pistola de fabrico soviético que guardava no porta-luvas. Acto contínuo, entregou-ma. Será que quer um duelo ao sol? Cogitei comigo mesmo. Não, apenas queria divertir-se à nossa custa. Em rigor, à minha custa. Tinha acabado de lhe colocar umas questões incómodas sobre a poligamia entre os árabes e agora era a sua vez.

Num lugar de nenhures, um tipo não se arma em pacifista. Oferece o peito ao destino, respira fundo e pede secretamente ao Altíssimo que o ajude. Ele deve ter-me inspirado porque ao primeiro tiro a lata voou com graça pelo ar. Inchado, passeei ao vento a minha altivez, tomada de empréstimo a Peter O’Toole em Lawrence da Arábia. Os árabes da expedição devem ter apreciado o estilo porque, a partir daí, me trataram como um senhor. Estava apto a entrar no deserto e a enfrentar o desconhecido.

Miguel Portas, in Périplo, páginas 67 e 68; Almedina, 2009.

 

(1) Edward Abbey, in Désert Solitaire, 1968, citado em Désirs de Desert; Autrement, hors série, 2000.

(2) Alain Laurent, in Désirs de Desert, pág. 22; Autrement, 2000.