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«Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.»
Eu fui lá e vi.
Lembro-me como se fosse hoje. Foi numa manhã fria e cinzenta de Abril, por meados da década de 80. Tinha eu 21 anos e estava em Berlim com três colegas de profissão: a Isabel Stilwell, o Luís Marinho, o Jerónimo Pimentel. Nesse dia fomos ao outro lado. Cruzando o Muro da Vergonha que desde 1961, por imposição dos soviéticos, rasgava a meio a antiga capital do Reich. Como incisão de bisturi na pele, separando bairros da mesma cidade, fracturando ruas dos mesmos bairros, até fragmentando casas das mesmas ruas que permaneceram emparedadas durante aquelas tristes décadas em que Berlim-Ocidental, na certeira definição de John Kennedy, era a fronteira mais avançada do mundo livre.
Cruzámos a linha divisória por via ferroviária, na estação de metropolitano de Friedrichstrasse, após termos sido forçados a trocar marcos ocidentais por marcos orientais artificialmente cotados em paridade pelo regime comunista, à revelia do valor real das moedas, como condição para transpor aquela fronteira artificial na cidade dividida.
Éramos muito poucos a fazer aquele percurso. Quase todos vinham em sentido inverso, de lá para cá. E eram todos velhos, que marchavam num silêncio mais eloquente que mil discursos. A ditadura de Erich Honecker só permitia deslocações de 24 horas a cidadãos aposentados.
Do lado de lá, tudo diferente. A começar pelo muro - na verdade, duas muralhas paralelas (a segunda foi erguida em 1962) separadas por uma extensão de 100 metros, denominada Faixa da Morte pelos berlinenses. Riscado e coberto de grafitos na face virada para Berlim Ocidental, imaculado na metade comunista da cidade, de onde aliás ninguém podia acercar-se dele. Rodeado de redes metálicas electrificadas, implacavelmente resguardado por soldados armados até aos dentes em 302 torres de vigilância dispersas por 66 quilómetros de extensão.
Símbolo sinistro da Guerra Fria.
Símbolo supremo da falência de um sistema que prometia libertar os homens e afinal só os mergulhou na escravidão.
Arrepiava a escassez de transeuntes do lado de lá.
Arrepiava ver as majestosas Portas de Brandemburgo colocadas em terra de ninguém, no termo da Unter den Linden, a maior avenida de Berlim.
Arrepiava o silêncio dominante. Em perfeito contraste com o fervilhante bulício da Berlim ocidental, "burguesa" e "capitalista".
Atravessámos a pé uma larga avenida onde não passavam carros e logo fomos interceptados pelo apito de polícias que acorreram ao nosso encontro exigindo inspecção minuciosa de passaportes. Acabaram por nos deixar prosseguir, mas com um solene aviso: proibido atravessar fora das passadeiras. Mesmo numa avenida onde quase não víamos circular veículos, excepto uns decrépitos Trabants leste-alemães, fontes ambulantes de poluição.
Tínhamos de gastar os marcos orientais, que só ali eram aceites. Era hora de almoço, procurámos algum sítio onde pudéssemos matar a fome. Mas naquela imensidão desértica a oferta turística estava reduzida a quase nada. Depois de muito procurarmos, lá nos enfiámos num sell service na Alexanderplatz, de tabuleiro na mão, a comer umas salsichas envoltas em gordura a preços astronómicos. E sem mais nenhum cliente por perto.
Acabámos por gastar a maior parte do dinheiro num sucedâneo de táxi que nos conduziu pela zona mais monumental de Berlim - que devido a um capricho do destino permaneceu após a II Guerra Mundial sob a tutela soviética da cidade - e numa breve incursão aos arrabaldes, onde havia uns bairros operários de aspecto moderno e finalmente pessoas a circular na rua.
No regresso, ainda entrámos num Armazém do Povo, com vários pisos, na esperança de gastarmos parte do dinheiro que nos sobrara. Mas a esmagadora maioria das prateleiras estava vazia. Não havia clientes, só funcionárias que nos ignoraram olimpicamente.
Trouxe de lá uns postais manhosos. O meu único recuerdo palpável da Berlim comunista.
Foi o meu baptismo do "socialismo real" no segmento oriental da maior cidade germânica, na então denominada República Democrática Alemã - que nada tinha de democrático e tudo tinha de repulsivo logo ao primeiro olhar.
No regresso, enquanto nos cruzávamos novamente no posto fronteiriço com os velhos agora de regresso a casa após fugazes visitas a familiares no Ocidente, sentimo-nos testemunhas privilegiadas da História, no tempo e no espaço.
Mil vezes a caótica, barulhenta, transgressora Berlim Ocidental do que a organizada, vigiada e silenciada Berlim-Leste - a cidade de maior progresso e com maior prosperidade económica do bloco socialista, como rezava a propaganda.
Nos dias imediatos, observei ainda com mais atenção o "muro de protecção antifascista" mandado erguer por Nikita Krutchov "a pedido" do ditador comunista alemão Walter Ulbricht em 13 de Agosto de 1961 para impedir a contínua sangria de alemães de Leste, sobretudo jovens, rumo ao Ocidente. Três milhões e meio tinham escapado nos 15 anos anteriores.
De tantos em tantos metros, levantava-se uma cruz branca em memória de cidadãos do Leste alvejados mortalmente pela implacável guarda fronteiriça comunista ao procurarem fugir da ditadura.
Morreram largas dezenas ou mesmo centenas entre 1962 e 1989.
Só por terem ousado ser livres.
Às vezes não há como ver para descrer.
Eu fui lá e vi.
Faz amanhã 35 anos, festejei com irreprimível alegria a queda do Muro da Vergonha. Festejei-a com os magníficos versos de Paul Éluard com que saudei o fim de outras ditaduras: «E pelo poder de uma palavra / Recomeço a vida / Nasci para te conhecer / Para te chamar // Liberdade.»
Nessa noite inesquecível de 9 de Novembro de 1989, milhares de habitantes de Berlim puderam pela primeira vez transpor a fronteira livres da absurda ameaça de poderem morrer alvejados pelos agentes do Estado. E também com eles, embora a milhares de quilómetros de distância, celebrei essa palavra tantas vezes pervertida e conspurcada na boca e no gesto de ditadores de todos os matizes, de todos os quadrantes, de todas as ideologias.
Uma palavra que não tem fronteiras, barreiras, Muro em Berlim.
A incómoda, imprevisível, inapagável palavra Liberdade.
Em 1976, os portugueses foram chamados pela primeira vez às urnas para eleger o Presidente da República, que iria substituir após sufrágio universal o até então Presidente Francisco da Costa Gomes, indicado para o cargo pela Junta de Salvação Nacional, após o pedido de demissão do General António de Spínola em Setembro de 1974.
Creio que não havia jovem da minha idade que não tivesse um interesse partidário ou fosse activista filiado num partido, como era o meu caso e o da minha melhor amiga.
Concorriam às eleições presidenciais o General Ramalho Eanes, que contava com o apoio do PS, PPD, CDS e MRPP, o já General Otelo Saraiva de Carvalho, apoiado pela UDP, MES, FSP e PRP, o Almirante Pinheiro de Azevedo, como candidato independente, e Octávio Pato, com o apoio do PCP e das suas ramificações, como a UEC, por exemplo.
Os filiados dirigentes de núcleos e células tinham como objectivo primordial angariar votos para o candidato apoiado pelo seu partido, onde quer que fosse. Sendo eu estudante, fiquei encarregada (pelo coordenador do Partido Socialista a quem respondia directamente) de coordenar a campanha eleitoral no Liceu, com folhetos informativos palestras e pósteres. A direcção do Liceu tinha, para o efeito, improvisado um mural em contraplacado para afixar tudo o que fosse propaganda eleitoral.
Todos os dias de manhã seguia eu para o liceu com um pequeno balde, uma trincha, uma latinha de cola, um ror de panfletos e os pósteres com a foto do General Eanes (que iam mudando a figura e a mensagem com alguma frequência), e começava por colar estes últimos no mural. Depois, com a ajuda de mais cinco ou seis camaradas, distribuíamos os panfletos pela carteiras ainda vazias das salas de aula. Tudo isto feito muito rapidamente e até poucos minutos antes de tocar para a entrada, para não dar tempo de as facções rivais nos apanharem os papéis e os deitarem para o lixo, substituindo-os depois pelos seus próprios panfletos. Era uma guerra de coordenação e paciência. Quando começámos, se encontrávamos panfletos nas carteiras, juntávamos os nossos e pronto. As meninas da UEC jogavam sujo. Destruíam todos os folhetos que encontravam e deixavam apenas os delas, colavam os pósteres do Octávio Pato por cima dos outros e, à falta de material para cobrir o exposto, faziam bigodinhos à Hitler nas fotos do General Eanes.
Toda esta sacanice era coordenada pela minha melhor amiga e colega de carteira, coordenadora da propaganda eleitoral no Liceu, pela UEC do PCP e do Senhor Pato. Ao princípio levámos tudo aquilo na desportiva, mas depressa compreendemos que as meninas uéques estavam irredutíveis porque tinham “recebido ordens” e nunca as iriam contrariar. Aí é assim? Está bem. Também sei jogar sujo quando é preciso.
Fiz um desenho fácil de reproduzir e arranjei giz colorido. Missão: desenhar um pato depenado e escrever "UEC, UEC, UEC, abriu a caça aos Patos", em todos os quadros negros de todas as salas de aula.
Fazer isto todos os dias, colar cartazes, distribuir folhetos e “dar palestras” implicava chegar ao Liceu às sete da manhã, ficar por lá até às cinco e meia da tarde e passar os intervalos de guarda ao mural dos pósteres. Muitas vezes quando lá chegávamos já estava tudo destruído, o que acontecia nos minutos das aflições para chichis durante as aulas, por isso passámos a ficar muitas vezes aflitas também e de tal modo que a professora de matemática escreveu um recado para os meus pais, alvitrando possíveis problemas de bexiga.
A minha amiga e eu tínhamos um pacto de não-agressão e não discutíamos o trabalho politico-partidário que cada uma estava encarregue de fazer. Mas éramos mazinhas umas para as outras e a única maneira de vencer a campanha no Liceu, era pelo cansaço. Passámos então a colar pósteres mais pequenos do General Eanes nos tampos das carteiras das meninas da UEC. Todos os dias. Tendo como ponto de ordem a erradicação de toda a propaganda contrária às directrizes do partido, tinham as pequenas uéques de arrancar as colagens de onde quer que estivessem. Ora a cola que utilizávamos nos tampos das carteiras não era diluída, pelo que tinham forçosamente de conviver com o nosso General boa parte do tempo lectivo, até conseguirem arrancar dali aqueles fascismos.
De uma certa forma ganhámos na propaganda e depois nas eleições. Foi uma festa. Foi hercúleo o esforço para não rir nem grasnar no dia escolar que veio após as eleições.
Curiosamente, as apoiantes da candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, talvez por pensarem que a eleição eram favas contadas, não tiveram grande impacto na vida estudantil no Liceu. Olhavam-nos do alto da sua certeza com algum desprezo e apenas protagonizavam sessões de esclarecimento programadas. Tinham os pósteres do seu candidato intocáveis por acordo tácito e não nos incomodavam. Era como se não existíssemos. Sobre Pinheiro de Azevedo, muito pouco se viu ou ouviu, por isso a batalha “do bem contra o mal” foi basicamente PS+PSD+CDS+MRPP, contra a UEC do PCP.
Como acontece na vida de todos nós, passado o calor da primeira vez, tudo voltou ao que era dantes, sem ressentimentos, porque as amizades fortes não se destroem com ideologias, aceitam-se e continuam como sempre foram. Ainda nos rimos de todas essas peripécias, mas depois de a minha amiga ter partido como cooperante para Angola, perdi-lhe o rasto. A sua família entretanto mudara de cidade, eu também mudei de casa e o PCP nunca me respondeu aos e-mails, que ainda continuo a enviar, com menos frequência é certo, mas com esperança de que alguém por lá os leia e me saiba dar notícias dela.
Agora as campanhas eleitorais são feitas online, carregadas de aldrabices no X e em outras redes sociais. Muito pouco me admiraria se num futuro próximo os votos se contabilizassem em likes.
Há quase 50 anos, andava eu pelos meus 17 anos de rebelde bem comportada, quando, inesperadamente o meu pai me presenteou com quatro bilhetes para o Teatro Villaret, que lhe tinham sido ofertados pelo saudoso Vasco Morgado. A “peça” era o Godspell. Confesso que nunca tinha ouvido falar, mas significava poder sair à noite e regressar depois das 23 horas, e isso sim, era um presente inestimável. Convoquei a Batatinha e a Mena que ficaram tão ou mais alvoroçadas do que eu, pusemos o plano em marcha, mas entretanto fizeram-nos os nossos maiores conhecedoras do senão, sem o qual a bela iria por água abaixo: precisávamos de acompanhante “responsável”. A Batatinha propôs falarmos com o seu tio Zé, multiprofissional e músico nas horas vagas, mas pessoa adulta que, nesse ponto, cumpria perfeitamente os requisitos. Aceitou um tanto reticente, mas era uma boa pessoa e totalmente persuadível.
No dia do espectáculo, jantámos cedo, partimos palradoras para Belém e apanhámos o eléctrico para a Praça da Figueira, de onde seguiríamos de Metro para o Marquês de Pombal. A noite estava fria e conseguimos convencer o Tio Zé a levar-nos à Ginjinha. Era uma maluquice que nenhuma de nós tinha feito antes, mas que diabo! Era a nossa primeira grande noite de liberdade.
Bem aquecidas, seguimos no metro a rir e cantarolar descontraídas e um tanto descontroladas. O ar frio no rosto, caminhando a distância entre a saída do metro e o Teatro Villaret deixou-nos mais despertas e menos toldadas, entrámos e o espectáculo começou.
Honestamente, esperávamos aquilo a que se chamava “apanhar uma seca”, mas fomos surpreendidas por um musical espectacular. A música e as interpretações de actores muito nossos deixou-nos rendidas. Reconhecemos a Mafalda Drummond, a Rita Ribeiro, a Vera Mónica, o Carlos Quintas, o Joel Branco, a Anabela, o Norberto de Sousa, a Verónica, o Nuno Emanuel, o José Luís Ardiz, o Carlos Norberto… e reconhecêmo-los multifacetados actores e excelentes cantores.
Baseado no Evangelho segundo S. Mateus, o musical apresenta uma trupe cómica de excêntricos que se juntam a Jesus para ensinar as suas lições através de parábolas, jogos e tolices. Foi a primeira vez que ouvimos “Day by Day”, bem como uma mistura eclética de música que vai do pop ao vaudeville, enquanto a vida de Jesus é representada em palco. Mesmo depois da crucificação, a mensagem de bondade, tolerância e amor de Jesus Cristo continuou viva de forma vibrante e brilhante.
No final, que chegou rápido demais, a magia continuou. Tivemos um convite para ir aos bastidores, porque a Batatinha conhecia a Rita que foi colega de liceu da sua irmã Malucha. Nem sei como descrever a experiência. Um Sonho de uma Noite de Inverno talvez? Foi como se aquele Puck travesso que vive em todos nós tivesse rédea solta e nos fizesse rodopiar endiabradas e felizes com todo aquele grupo maravilhoso.
Se eu fechar os olhos, consigo recuar quase 50 anos e volto aos bastidores do Villaret e estamos lá todos, alegres, conversadores, fantásticos e jovens, muito jovens. Muitos já partiram. Dos quatro safados daquela noite libertina, resto eu e todas as recordações felizes daquele feitiço de Deus.
Day by Day, na versão cinematográfica. Lamentavelmente não encontrei a versão portuguesa.
Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.
O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.
Apesar disso, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.
Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.
Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: «Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica.» Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.
Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.
Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?
Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:
"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"
"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"
"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"
"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"
"um verdadeiro apreciador de cozido à portuguesa nunca recusa um convite para descobrir um novo spot com este 'prato do dia'."
"o event designer conta como gere a profissão"
"podia ser um storyboard"
"temos de buscar clusters de desenvolvimento"
"não se consegue compreender porque é que há este delay"
"as teorias de agenda-setting"
"criámos todo um sistema de back up"
"downgrade sobre a dívida portuguesa"
"o presidente fez o takeover"
"ele estaria a causar twitter storms constantemente"
"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"
"case study na habitação"
"retalhistas omnichannel"
"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"
"reestruturação de programas do daytime da SIC"
"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"
"acessórios must have da estação"
"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"
"é economic adviser do Governo"
"este país adora quick fixes"
"o que os debates speed-dating fizeram pela democracia portuguesa"
"seria um trabalho de accountabillity útil"
"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"
"os respectivos artwork e streaming"
"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"
"o partido funciona por key words"
"livrarias queer migram para a Net"
"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"
"sou uma fashion victim"
"vai ser criada uma safe house em Lisboa"
"poderá utilizar o crowdfunding"
"o governo não pode ceder nos valores core"
"tentativa de criação de um catch-all party"
"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"
"as contas são o nosso bottom line"
"Bolsa alvo de ataque de short-selling"
"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"
"um daft punk em pose de artes marciais"
"receio de ficar fora do loop"
"após algumas semanas de avaliação em soft opening, X concluiu que deveria criar também um menu de balcão”
"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"
"o percurso foi feito para ser TV-friendly"
"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"
"a dialéctica entre believers e haters"
"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"
"há muito ganhou o gosto do gimmick"
"anunciada por uma espécie de cliffhanger"
"este projecto é um wake up call fenomenal"
"o back-to-basics está para ficar"
Decifre quem quiser. E quem puder.
1º de Agosto - Xutos e Pontapés
Chai Ling, com 23 anos, falando aos outros estudantes concentrados em Tiananmen (Primavera de 1989)
No coração da remota China muçulmana, a população turcófona continua a ser remetida para guetos nos subúrbios: os melhores empregos e as melhores habitações cabem à etnia han, dominante no conjunto do país. Só existe igualdade na lei, não existe na prática: os uígures são tratados como cidadãos de segunda na sua própria terra. Que crime cometeram? Procurarem manter a identidade cultural, falando a sua língua e professando a sua religião no Estado mais populoso do mundo, onde a norma é esmagar toda a diferença.
Acontece hoje no Xinjiang, acontece há 65 anos no Tibete, aconteceu em 1989 na própria sede suprema do Império do Meio.
Sei bem do que falo. Faz hoje 35 anos, vivi em Macau um dos períodos mais tristes de que me lembro, quando vi esmagar a Primavera com que milhões de chineses haviam sonhado – a Primavera política, após quatro décadas de regime ditatorial, afogada em sangue naquela trágica madrugada em Tiananmen, a Praça da Paz Celestial, que nunca fez tão pouco jus ao seu nome poético. Após mês e meio de protestos pacíficos, iniciados em Abril, com a morte súbita do ex-secretário-geral do Partido Comunista Chinês, o reformista Hu Yaobang, destituído dessas funções em 1987.
Recordo as expressões festivas nos rostos de muitos chineses semanas antes, dias antes, quando toda a esperança parecia possível.
Recordo as figuras dos principais dirigentes estudantis, imagens que galvanizaram toda uma geração – jovens como Wang Dan, Chai Ling e Wuer Kaixi, que viriam a ser perseguidos e forçados ao exílio.
Recordo a euforia popular que rodeou a chegada à capital chinesa em meados de Maio, para uma visita oficial, de Mikhail Gorbatchov, o homem que se preparava para derrubar a Cortina de Ferro e servia de inspiração ao ansiado derrube da Cortina de Bambu.
Recordo também a mobilização de uma vasta força repressiva, composta por 300 mil soldados mandatados para estancar a revolta. Recordo a proclamação da lei marcial por Deng Xiaoping (que só viria a ser levantada em Janeiro de 1990) e o afastamento do líder do partido, Zhao Ziyang, acusado de ser excessivamente brando pelos falcões da ditadura e condenado a partir daí à morte civil e à reclusão doméstica com carácter vitalício.
Recordo o silêncio de chumbo nos dias subsequentes ao massacre.
Recordo sobretudo o impressionante instantâneo daquele homem sem rosto nem nome, de braços nus, enfrentando uma sinistra fileira de tanques, imortalizado pelo clique da máquina fotográfica de Stuart Franklin. Símbolo máximo da dignidade humana perante a força bruta - há 35 anos em Pequim, hoje no Xinjiang (ou Sinquião, na grafia portuguesa) que teima em ser diferente.
Quando ouço dizer à minha volta que já não existem heróis, lembro-me sempre daquele homem sem medo.
Que outro nome haveremos de dar-lhe senão esse – o de herói?
Leitura complementar: Stuart Franklin: how I photographed Tiananmen Square and 'tank man'
É o "A Bola", claro, sempre consabido e fiel órgão oficioso de uma popular agremiação lisboeta, que recorda a efeméride: hoje, aos 14 de Maio de 24, cumprem-se exactamente 30 anos que jantei no "Adega do Isaías", então renomado restaurante em Estremoz.
Regressara há poucos dias a Portugal, depois de ter trabalhado durante 3 meses na África do Sul como observador eleitoral, aquando da ascensão de Nelson Mandela à presidência. Fora uma experiência extraordinária, exaltante, imensamente marcante, e não só por ter sido a minha primeira viagem em África. Tanto que a tentei descrever, e à influência que em mim teve, através de dois postais, distanciados no tempo: o "Now is the time: Nelson Mandela" e o "O Corredor" - e a ambos coloquei na minha selecção de uma centena de crónicas, o "Torna-Viagem" (o qual, repito a tentativa de o impingir, se pode encomendar através desta ligação aposta no título).
Naquela época (e não só então, e não só então...) eu estava muito enlevado - para não dizer de outra forma - pela minha namorada, condição que já não era recente. À chegada, saudoso, logo marcámos para o primeiro fim-de-semana uma incursão a Estremoz, uma bela opção havida por razões que já não recordo. E assim avançámos, ficando albergados numa linda casa em recanto bucólico, até idílico, poiso que decerto veio depois a ser considerado "de turismo rural".
Ao segundo dia da estada, no sábado, aconteceria o Sporting-Benfica, em plena fase final do campeonato, esse que estava destinado ao nosso Sporting, então possuindo uma magnífica equipa: treinada pelo professor Queirós, que à pátria dera recentemente dois tão entusiasmantes títulos mundiais, blindada por uma excelente parelha de centrais (Valckx e Vujacic), dificilmente repetível, e orlada por um meio-campo luxuoso, esse sim mesmo irrepetível, verdadeiros "Quatro Violinos" (Figo, Capucho, Paulo Sousa, Balakov). E para conclusão, lá na frente impunha-se o codicioso avançado Jorge Cadete, oriundo da antiga Porto Amélia, então já Pemba - terra para onde eu me aprestava a partir para um também entusiasmante semestre de "trabalho de campo".
O jogo teria transmissão televisiva. No nosso refúgio havia uma televisão, algo que à chegada eu havia considerado inútil, até intrusivo, em tal local. Durante a tarde a beldade, sempre completamente alheada das coisas do futebol, disse-me "vês o jogo e depois vamos jantar", ao tal restaurante que nos havia sido basto recomendado, dito como "o" verdadeiro sítio estremocense. Logo refutei a proposta, pois era o que faltava, abstrair-me dela apenas por causa de um mero jogo da bola... Pois o Amor impunha a sua Lei, em regime de "servidão voluntária", como havia dito o La Boétie (falando, é certo, de outras coisas). Assim abdiquei de ver a partida, imunizando-me às vãs paixões futebolísticas, e naquele fim de tarde fomos passear pelas redondezas. Nunca soube se ela percebeu a magnitude daquela minha atitude, o seu significado - mas é certo que depois casou comigo, tivemos uma filha, e aturou-me mais vinte anos, é capaz de ter compreendido...
Pela hora de jantar (jogo da bola completamente esquecido) entrámos em Estremoz e fomos até ao tal "Adega do Isaías". Uma casa aprazível, numa decoração típica, mais que acolhedora, até reconfortante, de cariz etnográfico, na mesa para nos receber foram instalados uns acepipes iniciais consuetudinários, lembro-me que de fino recorte técnico. Mas num dos topos da sala estava uma televisão - ainda nada de ecrãs engrandecidos que vieram depois a vigorar -, e diante dela estavam congregados alguns clientes locais. No recato da disciplina auto-imposta sentei-me de costas para ela, encarando a amada. Nesse entretanto, e através do empregado "...do Isaías". soube - teve de o ser - estar o jogo no intervalo, que o Benfica ganhava por uns (inusitados) 3-2. Acolhi o prometedor cardápio com um sorriso complacente, convicto que aconteceria a reviravolta ("remontada", espanhola-se agora) do nosso Sporting, e divergi a minha atenção. Ainda assim pelo canto do ouvido notei que na reentrada em campo o prof. Queirós havia tirado o lateral-esquerdo Paulo Torres...
E logo depois o ulular dos restantes clientes fez-me notar que o Isaías - não o do restaurante mas sim o jogador do Benfica - cavalgara à desfilada pela avenida onde já não estava o tal Paulo Torres e marcara o 4-2. Petisquei mais uma lasca de enchidos locais, entrecortados por azeitonas verídicas, ainda mergulhado na carta dos vinhos. Breves minutos passados, ainda rodando o primeiro copo de um bom tinto, que me acalentava sonhos de futuros comuns, o "Isaías" restaurante tremeu com a gritaria estremocense, pois o outro Isaías -. o de Carnide - tornara a cavalgar, com os sequazes, a tal avenida desprovida do Paulo Torres, fazendo o 5-2. Mantive-me impávido, soberbo, nem olhei para o ecrã. Naquela "Adega do Isaías" indiferente aos feitos do Isaías.
Nunca mais voltei a Estremoz. E ainda hoje estou crente de que a minha vida teria sido diferente se o Paulo Torres não tivesse sido substituído.
(Adenda: agradeço à equipa da SAPO o destaque dado a este postal na simpática rubrica "Palavras de blog", devido à "consuetudinários" que aqui usei.)
Escrevo em blogs há 20 anos - antes no ma-schamba e no Olivesaria, este um colectivo dedicado ao historial do meu bairro Olivais, depois também no sportinguista És a Nossa Fé. E agora no meu Nenhures e no colectivo Delito de Opinião. A um passo dos 60 anos, decidi publicar umas "memórias". "Presunção e água benta, cada um toma a que quer", e eu tomei a da ideia de talvez interessar a outros o que escrevi sobre o que vivi.
Retoquei uma centena de crónicas (de viagens e paragens), dois terços delas escritas em Moçambique, algumas sobre outros países onde trabalhei, o restante em Portugal no meu retorno após duas décadas de ausência. É uma espécie de "prova de vida"... Ao volume chamei-lhe "Torna-Viagem" e (auto)publico-o agora através da plataforma editorial Bookmundo.
A impressão do livro é feita apenas por encomenda, tal como a sua venda. A quem tenha interesse bastar-lhe-á "clicar" nesta ligação directa ao livro, colocada no nome, e encomendar o Torna-Viagem.
Os que quiserem "folhear" o livro poderão fazê-lo na minha conta na rede Academia.edu: aqui, onde deixei capa, índice e os três primeiros textos.
Depois, como será óbvio, seguir-se-á o envio postal do(s) exemplar(es) comprado(s), processo que demorará alguns, poucos, dias. Ou seja, o livro não estará disponível nas livrarias físicas. Nem haverá futuros monos, sobras destinadas à célebre guilhotina de livros.
Finalmente, aqui replico a sinopse que apus no livro: Chegando agora aos sessenta anos deixo neste "Torna-Viagem" algo como se uma autobiografia. Faço-o através de uma centena de crónicas escritas durante as duas últimas décadas. Sessenta dessas agreguei-as na primeira parte do livro, à qual chamei "A Oeste do Canal", pois escritas sobre Moçambique, nelas ecoando viagens por aquele país afora, alguns pequenos episódios — trechos do real — que senti denotativos das transformações ali acontecidas, e memórias de personalidades que conheci durante os meus dezoito anos de permanência. Em algumas outras recordo momentos vividos em países onde trabalhei. E as restantes três dezenas formam a segunda parte do livro, na qual deixo excertos deste "Ocaso Boreal", a minha actual aventura de retornado pós-colonial defronte à "pátria amada".
Devo a António-Pedro Vasconcelos - e disse-lhe isto, de viva voz - três bens inestimáveis. Ele, sem fazer a menor ideia, ajudou-me a crescer enquanto leitor, ajudou-me a distinguir a boa da má escrita e ajudou-me a ver cinema com outros olhos.
Li-o durante décadas. Já não na mítica revista Cinéfilo, que o ajudou a catapultar para a fama com a sua verve crítica e o apuro formal da sua prosa, mas em publicações diversas, desde a revista Grande Reportagem, há muito desaparecida, até ao semanário Sol antes da recente deriva que até o nome lhe alterou. Sem esquecer O Independente, onde publicou alguns dos seus melhores textos. Fazia parte daquela geração - com Vasco Pulido Valente, António Barreto e alguns outros - que nos ensinou a escrever. Prosa enxuta, direita ao assunto, sem adjectivos nem advérbios que pesam como chumbo. Contundente, mas com elegância e estilo.
Com o decorrer dos anos, habituei-me a seguir com proveito as suas recomendações literárias. Recordo várias, desde A Cartuxa de Parma até A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Oscar Wao, de Junot Díaz. Passando por A Consciência de Zeno, de Italo Svevo - por coincidência um dos livros que tenho de momento à cabeceira. Obras que me fizeram amadurecer, não apenas como leitor mas também na escrita.
Escolher quem nos inspira é essencial neste percurso.
Mas é como cinéfilo militante que mais lhe devo. Na década de 70, a RTP 2 dedicava parte importante da sua programação a clássicos da Sétima Arte. Fui espectador devoto desse magnífico desfile de filmes, sob a designação Cineclube. Antes da projecção ele falava-nos durante breves minutos sobre cada um, educando-nos o olhar com palavras simples, sem prosápia didáctica nem pompa académica. Aprendi muito com ele sobre John Ford e Otto Preminger, por exemplo.
A sombra de Preminger perpassa naquele que seria o seu filme mais emblemático: O Lugar do Morto, surgido em 1984 - film noir que tão bem reflecte a atmosfera daquele Portugal pós-revolucionário, com Ana Zanatti e Pedro Oliveira nos principais papéis, saltando com sucesso dos ecrãs da RTP para a tela grande do cinema.
Foi o maior êxito de bilheteira na produção nacional daquela década. E também um marco na reconciliação entre o público e a arte cinematográfica falada em português, causa em que António-Pedro militou com a paixão que o caracterizava em tantos outros temas, da política ao futebol. Ele e José Fonseca e Costa - autor de Kilas, o Mau da Fita e Sem Sombra de Pecado - advogaram sempre um cinema feito para o público, não contra ele. E sem o Estado a impor "políticas de gosto" a troco de subsídios. Nunca escondeu o desprezo por aqueles que arruinaram a indústria cinematográfica europeia reduzindo o cinema a obscuro ritual de seita, distanciado do mundo, divorciado da história.
Ao contrário dele. Era um homem que apreciava uma boa conversa, uma boa refeição, um bom jogo de futebol. Homem multifacetado, por vezes contraditório, com amigos de todas as idades e convicções. Homem que não escondia aquilo de que gostava nem o que detestava, sem se refugiar em meias-palavras e recusando precauções sonsas, tão frequentes em Portugal. Homem que amava a arte porque amava a vida. Como bem demonstrou em vários dos seus filmes: basta mencionar Jaime (1999), Os Imortais (2003) ou Os Gatos Não Têm Vertigens (2014).
Era eu aprendiz de crítico de cinema quando em 1984 acolhi com vibrante aplauso O Lugar do Morto no jornal onde escrevia. Cada geração tem os seus filmes de culto, adoptei logo este entre os meus. Pouco depois entrevistei-o no seu apartamento, num quinto andar da Rua do Quelhas, na zona de São Bento. Mal lá entrei contemplei, fascinado, uma estante cheia de marcas amarelas: eram as lombadas da revista Cahiers du Cinéma: colecção completa. Não admirava que ele fosse uma enciclopédia do cinema naquele tempo muito anterior à Internet, quando palavras como Google e Wikipédia ainda não tinham sido inventadas.
Foi uma das entrevistas que mais gostei de fazer como jornalista profissional. Quase vinte anos depois reencontrei-o à mesa do Pap'açorda original, no Bairro Alto. Ele era o convidado de uma rubrica que mantive durante bastante tempo no Diário de Notícias em que conversava com figuras da política ou da cultura apenas sobre temas gastronómicos. Também nisso era enciclopédico. Demarcando-se daquela ridícula pose de alguns vultos que se mostram distantes dos prazeres mundanos.
Reencontrei-o por acaso há cerca de nove meses. Na esplanada do Matriciano, um dos meus restaurantes italianos favoritos de Lisboa. Ele sentara-se na mesa ao lado: houve tempo para lhe recordar aqueles nossos encontros que tão grata memória me deixaram. Depois lá foi, de passada larga, chapéu borsalino na cabeça, naquele inconfundível andar que tanto me recordava o Senhor Hulot, genial criação de Jacques Tati. Ninguém lhe daria 84 anos: sempre pareceu mais jovem.
Ia apresentar uma petição na Assembleia da República - contra a privatização da TAP, uma das últimas grandes causas em que se envolveu. Entre tantas outras, ao longo de muitos anos, da oposição a Luís Filipe Vieira no Benfica à luta contra o famigerado "acordo ortográfico". Sem esquecer a campanha presidencial de Mário Soares, em 1985-1986: foi um dos raros que estiveram com ele sem desfalecimentos, do princípio ao fim. Manteve o entusiasmo mesmo quando tudo parecia perdido. Eram as causas de que mais gostava: as causas perdidas. Como um herói romântico do século XIX.
O cinema imita a vida, a vida imita o cinema. Marcado desde o Verão passado por uma tragédia pessoal (a morte inesperada de Diogo, o filho mais novo), António-Pedro foi-se apagando como vela ao vento. Aquele perene sorriso extinguiu-se: chegara o momento do pôr-do-sol. Desapareceu dias antes do 85.º aniversário, que nunca iria festejar.
«O meu ofício é contar histórias através de imagens e de sons. Serão o público e a posteridade a decidir se os meus filmes têm algumas condições para ficar na memória das pessoas. Se são arte, não me cabe a mim definir. Não gosto de rotular à partida se sou artista ou não: sou profissional, gosto mais do termo profissional.» Era assim, falando de si próprio sem prosápia de espécie alguma. Em nítido contraste com tantos medíocres que pululam por aí.
É de Stendhal a extraordinária frase que lhe serviu de lema: «Deseja tudo, espera pouco, não peças nada.» Também isto lhe devo: esta divisa (agora com vénia eterna para ele) tornou-se minha também.
toquei na minha mãe pela última vez. É certo que a, posteriormente consagrada, directora-geral da autoridade sanitária pública ainda nos viria convocar para visitarmos os nossos "mais-velhos", e que o nosso PR ainda andava, frenético país afora, em comemorações teatrais. Mas, face ao que já grassava na Itália e em Espanha, decidimos não visitar a mãe até que as coisas, que tão negras pareciam, viessem a serenar. Fui, fomos, à Ericeira dizer-lhe isso, afiançando-lhe a crença de que seria por pouco tempo, uma "maçada" apenas, algo a que ela, nonagenária lúcida, acedeu em acreditar.
Uma semana depois, a 13, a minha filha viajou de Inglaterra - no exacto dia em que Warwick, a sua universidade, encerrava por todo aquele ano lectivo (!) -, fui recebê-la ao aeroporto, ainda pejado de exultantes turistas nórdicos em busca de sol de Inverno, vinho barato e peixe grelhado, tal como no Tejo ainda aportavam os gigantes paquetes..., vil e incompetente coisa de país reduzido ao afã da "indústria turística". E, angustiados, seguimos directos para Sul do Tejo, onde amigos-verdadeiros irmãos abriram a levadiça do seu já confinamento para nos albergar. Dias depois o país confinou-se.
Algum tempo depois pude voltar, voltámos, a visitar a minha mãe, à distância sem beijos nem toques, no jardim frondoso da "Residência" onde vivia. E, em piores momentos, apartados por uma barreira de acrílico. Um dia, meses depois, ela, bastante enfraquecida por aquela clausura angustiante, disse-me e repetiu-me "és muito bonito, meu filho, és muito bonito", inédita hipérbole que atribuí a alguma anciã confusão intelectual e a um carinho saudoso. Era, afinal, uma despedida pois morreu poucos dias depois. Sem que eu a pudesse ver uma última vez, já no seu esquife, devido às exageradas restrições, nisso disparatadas, mesmo assarapantadas...
Andava eu acabrunhado, acabrunhadíssimo fiquei, entretanto talvez me tenha libertado do superlativo.
E acabrunhados então andávamos, ainda que não desistentes: o meu amigo Miguel Valle de Figueiredo - que é não só um bom fotógrafo mas também um homem como deve ser (Homem com H grande, dizia-se) - logo se apartou das angústias e saiu à rua para fotografar a cidade confinada, tendo editado o seu "Cidade Suspensa", a Lisboa dessa inicial era Covid. E depois, meses a fio, continuou a fotografar-nos. Acabrunhados, nisso até exaustos. Deixo aqui alguns de nós por ele fotografados.
Para quem se possa interessar: um dia deixei um relato longo dos dois primeiros meses de Covid em Portugal, chamando-lhe "O Capitão MacWhirr e o Covid-19". E julgo que qualquer leitor de Conrad logo pressentirá o seu conteúdo...
Foto: Global Imagens
Quando Odete Santos abandonou por vontade própria a Assembleia da República, em 2007, deputados de todas as bancadas tributaram-lhe uma calorosa ovação em plenário. Acompanhei esse momento e questiono-me se aquela rara unanimidade voltaria a ser hoje possível, fosse quem fosse a figura em causa. Sinto-me inclinado a supor que não: os hábitos políticos mudaram muito, a crispação acentuou-se, as trincheiras foram-se aprofundando.
Odete estava há muito retirada dos palcos mediáticos. Depois do Parlamento, chegou a fazer teatro em Setúbal, cidade adoptiva desta jurista natural da Guarda. Era pessoa de verbo fácil e gargalhada espontânea. Não escondia o que pensava nem temia ser inconveniente, por vezes face ao próprio cânone do PCP, que representou durante 27 anos no hemiciclo de São Bento. «Calma, Odete» era a frase-bordão que lhe dizia o secretário-geral Carlos Carvalhas, ambos caricaturados nos bonecos da divertida e saudosa Contra-Informação da RTP.
Isso ficou patente, aliás, na entrevista que lhe fiz para o Diário de Notícias, a última que concedeu enquanto deputada.
Quando lhe perguntei se devia haver «mais mulheres» na cúpula dirigente dos comunistas, ela não hesitou um segundo na resposta: «Sim. Deveria haver mais mulheres. Não tenho dúvidas nenhumas.»
Sempre simpatizei com ela. Tinha o coração ao pé da boca. Entre ortodoxos e moderados nas fileiras comunistas, alinhava com os primeiros. Mas não por cálculo ou conveniência: era isso o que sentia, era isso o que realmente pensava. Fazia parte da sua maneira de ser e da fidelidade de longa data ao magnético «camarada Álvaro» que a levou à militância no pós-25 de Abril.
No entanto, na rua Soeiro Pereira Gomes nem todos lhe apreciavam o estilo algo dissonante e a popularidade que granjeou fora das paredes partidárias. Odete nunca fez parte dos organismos executivos (Secretariado, Comissão Política), nunca foi líder parlamentar, nunca foi candidata presidencial - ao contrário dos cinzentos e sensaborões António Abreu, Francisco Lopes e Edgar Silva, funcionários diligentes mas totalmente desprovidos de carisma.
Apreciava teatro, cinema, literatura. Era vibrante declamadora de poesia. Gostava de acampar. Nunca fugia a um debate, mesmo com quem estivesse nos antípodas do seu pensamento: permanece na memória de muitos a sua vigorosa defesa de Cunhal, na RTP, como "maior português de sempre" num simulacro de concurso em que emergiu como vencedor Salazar, enaltecido por Jaime Nogueira Pinto. Nem D. Afonso Henriques, nem D. Dinis, nem D. João II, nem Vasco da Gama, nem Camões. A memória histórica é curta, os extremos exercem sobre muitos uma atracção irresistível.
Nessa entrevista que lhe fiz em Abril de 2007, confessava abandonar o parlamento com «uma sensação de alívio». Saudades, só as «do futuro» - parafraseando o "poeta militante" José Gomes Ferreira. Deixando no entanto antever alguma mágoa: sentia que devia ter sido mais bem aproveitada pelo partido que nunca renegou. «Tenho pena de não ter criado condições para fazer trabalho de organização, que é importante.» Por uma vez, ficou-se pelas entrelinhas - aliás facilmente entendíveis.
Lembrei-me de várias ocasiões em que privei com ela - nomeadamente em campanhas eleitorais - ao saber ontem a triste notícia do seu falecimento, aos 82 anos. Era de um tempo em que vultos de diversos partidos se cruzavam nos corredores parlamentares sem confundirem divergência com ódio ou insulto ao adversário. Parece uma era já remota, nestes dias em que abunda o carreirismo político, cada um fala quase só para a sua bolha e as personalidades com voz própria e autonomia profissional estão cada vez mais distantes da vida parlamentar.
Não tenho a menor dúvida: a democracia portuguesa perde com isso.
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Há uma grande revista informativa europeia que acompanho há décadas. Li-a durante a adolescência, nos anos decisivos da minha formação intelectual. Naquele Portugal pós-revolucionário, tinha uma característica ímpar: era de pendor liberal e não se envergonhava de o proclamar: pelo contrário, fazia-o com manifesto desassombro, com vocação para romper tabus. Por penas tão prestigiadas como as de Raymond Aron e Jean-François Revel, pensadores de excelência. Quando a moda eram os socialismos de todos os matizes que prestavam culto a Marx e epígonos menores.
L' Express surgiu, contra a corrente, num dos países mais jacobinos e centralistas da Europa Ocidental, que então encaravam o liberalismo como vírus maléfico importado do lado de lá do Atlântico, capaz de ferir o majestático Estado gaulês. Quando a França via crescer o Partido Comunista - que chegou a ser o segundo mais poderoso do continente a oeste da Cortina de Ferro - enquanto procurava salvar os últimos redutos do seu império colonial, na Indochina e na Argélia. Tinha os seus pensadores de referência - com destaque para Albert Camus, que também quebrara tabus, naquele início da década de 50, ao lançar O Homem Revoltado com a célebre frase de abertura: «O que é um rebelde? Um homem que diz não.»
Fundada em Maio de 1953, adoptou pouco depois o formato da Time norte-americana, marcando assim também uma diferença face ao clássico padrão da imprensa europeia em matéria de estilo. Assim a conheci naqueles anos ávidos em que se rasgam todas as janelas sobre o mundo, quando em minha casa a recebiamos por assinatura, tal como à Newsweek. Serviu não apenas para consolidar os meus conhecimentos da língua francesa mas também para a minha formação no domínio das ideias. Ler Aron e Revel naqueles anos bastava para alargar horizontes.
1954: Servan-Schreiber e François Giroud com François Mauriac, Nobel da Literatura
Quando falo dos meus heróis do jornalismo, jamais esquecerei a dupla que durante cerca de três décadas vertebrou L'Express: Jean Jacques Servan-Schreiber (JJSS) e Françoise Giroud. Criaram uma revista arrojada, moderna, interveniente e livre. Que fazia da reportagem um dos seus pilares e da qualidade de escrita um lema. Que foi pioneira na infografia e cultivava o cartoon político com a mestria do traço de Sempré e Tim. Uma publicação assumidamente europeísta, anticolonialista e antitotalitária onde escreveram várias das penas mais prestigiadas de França e que jamais deixou de questionar o poder - incluindo o poder do general De Gaulle, herói nacional que resgatara a honra manchada do país nos dias de fogo e cinzas da II Guerra Mundial.
L'Express manteve-se como marco de referência na imprensa europeia. Enfrentou com sucesso todas as crises - políticas, geracionais, económicas, tecnológicas. Sobreviveu a cisões - que deram origem às rivais Le Nouvel Observateur (fractura pela esquerda) e Le Point (fractura pela direita)- e à partida dos fundadores, sabendo renovar-se. Continua a ser um produto de excelência, fiel ao lema de JJSS: «Devemos dizer a verdade tal como a vemos.» Ou na versão mais requintada de Camus: «O gosto pela verdade não impede tomar partido.»
Durante uns tempos, por motivos diversos, distanciei-me dela. Mas reencontro-a agora, como quem recupera um amor antigo, nesta magnífica edição especial destinada a celebrar o 70.º aniversário. Guardo-a desde já como objecto de colecção: serei sempre grato a tudo quanto L' Express me ensinou.
O texto é relativamente curto, com pouco mais de cem páginas, deixando-se ler tranquilamente, sem altos nem baixos. Como é típico dos livros de memórias, remete-nos para um passado próximo, com os corpos ainda quentes da memória, de recordações de infância, de deliciosos momentos do quotidiano, todos acabando por conviver com a chegada da nostalgia da lembrança, espécie de nevoeiro que vai tomando conta da luz das horas e dos dias mais soalheiros à medida que se recuperam lembranças.
Rodrigo, irmão de Gonzalo, não é Gabo, mas sendo filho recupera alguns dos melhores momentos de seus pais numa altura em que as despedidas se aproximam e a consciência da aproximação à partida torna tudo ao mesmo tempo mais subtil e mais denso.
Cada dia que vivemos, bem ou mal, alegre ou triste, aproxima-nos mais da morte e esta, como ele escreveu, "não é um acontecimento a que uma pessoa se possa habituar".
A habituação jamais ocorrerá quando se fala de quem nos quis e que foi querido, e que por essas mesmas razões tende a fixar-se no essencial que nos marcou e que com gosto depois se recorda.
Uma despedida entre entes queridos tem tudo para não ser um momento feliz; o que todavia não impediu o autor de nos trazer um pouco mais de luz sobre os últimos anos de Gabriel García Márquez e sua mulher Mercedes.
Fê-lo num estilo simples, sem arabescos e sem a prosápia de outros filhos, mantendo as distâncias e os protagonistas no local que merecem e que a vida lhes proporcionou, assegurando-lhes a dignidade no momento em que as primeiras folhas de Outono caem para nos prepararem para a invernosa solidão do fim.
Um conjunto de fotografias torna-nos cúmplices dos relatos, aqui e ali pontuados com notas de humor que reflectem a genialidade do homem – no me las puedo tirar todas é um desses momentos mágicos – e o ambiente que o rodeou os seus últimos tempos, prova inequívoca de que mesmo quando se está "sempre embriagado com a vida e as vicissitudes da existência" é em casa que "a maior parte das coisas que vale a pena aprender continua a aprender-se".
Verdade que nos dias de hoje não será igual para todos, e para muitos é mentira, mas que no caso de Rodrigo se confirma plenamente, pese embora os engulhos que o malfadado Acordo Ortográfico de 1990 continua a provocar em quem traduz e em quem lê. Uma pena a que Rodrigo, Gabo e Mercedes são totalmente alheios e a que só não escapa o leitor português.
Terreiro do Evangelistas, no Bom Jesus do Monte (Braga)
Vivi longe de Portugal em dois períodos e destinos diferentes. Totalizando 12 anos e meio.
À distância temporal, não tenho a menor dúvida em considerar que o balanço é largamente positivo. Falo por mim, mas creio falar por quase todos. Abrimos horizontes, conhecemos diferentes línguas e culturas, fazemos novas amizades, ganhamos arcaboiço para enfrentar o inesperado.
E sobretudo - gostaria de sublinhar isto - saímos de uma atmosfera social que demasiadas vezes nos empurra para baixo. Refiro-me ao desânimo, ao desalento, à mentalidade do não-vale-a-pena, à convicção de que tudo só muda para pior, às certezas de que todos os esforços são inúteis. À atmosfera de crise permanente, do queixume como senha de identidade, da insistência em ver o copo meio vazio mesmo quando está cheio porque o resto da tribo também o vê assim.
Enquanto estive fora, na maior época de "vacas gordas" em Portugal, quando cá vinha de férias só ouvia falar em crise. Crise do jornalismo, da televisão, do teatro, do cinema, do comércio, da cultura, da indústria, da economia, das finanças, da política. Como sucedia dez anos antes, como continuou a ser dez anos depois (já com as vacas bem magras, quase esqueléticas).
Encontrei as mesmas pessoas nos mesmos bares, sentadas nas mesmas cadeiras, com as mesmas conversas, dizendo mal de tudo e de todos. Uma década depois.
Disso não tive saudades. Nem voltaria a ter se emigrasse de novo.
Falta-nos mentalidade mais positiva, algo que muitas vezes só adquirimos quando saímos, quando vivemos em países de brumas e regressamos com saudades do sol.
Com a chegada do calor, chegam todas as memórias a ele associadas, as boas e as más. A pior memória que tenho de dias muito quentes é a da morte prematura do meu pai. Também são com o meu pai as memórias mais felizes de dias despreocupados de Verão, na Costa da Caparica, em Albufeira, em Pedras D'El Rei, mas principalmente no campismo, em Lagos, numa altura em que, apesar de já não ser uma menina, não era mulher feita e não tinha preocupações.
Foi por essa altura que fiz de bóia, mergulhei em apneia, andei de barco, conheci o Algarve de ponta a ponta e frequentei pela primeira vez um hotel de 5 estrelas.
Estávamos em 1973 e a Liberdade ainda estava em embrião, apesar de, nas imensas férias de Verão, não se dar pela sua falta. A liberdade de se ser jovem era imensa e envolvia-nos às golfadas.
Depois de um mês de campismo no Parque de Turismo em Lagos e das imensas peripécias que vivíamos diariamente, eis-nos chegados ao momento de regressar a Lisboa. Nesse ano, a partida iria ser diferente: não seria necessário "levantar âncora", porque a Joceline iria ocupar a tenda, de três cómodos, sala, cozinha e avançado, com o Dietmar e o Lars por mais um mês.
Lembro-me de aguardar ansiosa que chegassem. Adorava esta minha prima que casara com um alemão de Bremen, divorciado e folgazão, amante da nossa cultura e principalmente da nossa grastronomia. A Line foi a pessoa mais tranquila que conheci em toda a minha vida. Nunca a ouvi exaltar-se ou levantar a voz. O Dietmar era o homem dos sete ofícios, desde compartilhar a gestão da Electroliber em Portugal até à administração de uma empresa pioneira em máquinas de depenar aves, que ele, numa altura em que a publicidade era cara e as redes sociais ficção científica, se propôs divulgar por todo o Algarve.
A meio de um almoço supimpa providenciado pela minha mãe, o convite chegou inesperadamente. A Dulcinha fica connosco, queres? Claro! Como recusar? Ler, dormir, passear… Adeus mãe, pai, rapazes, que eu fico por cá!
Foram quatro semanas inesquecíveis, a partir do Quartel General em Lagos. Aprendi a ficar quatro minutos sem ar no fundo da piscina, aprimorei a minha natação, acompanhei o Dietmar na pesca submarina na qualidade de bóia, visitei de barco todas as grutas, viajei por todo o Algarve, comi fruta a rodos, assei na praia numa fogueira de gravetos o peixe que se apanhava nas incursões mar adentro, jantei em bons restaurantes e tive uma das mais incríveis experiências da minha vida, num hotel de 5 estrelas em Vale do Lobo, para festejar o final do prolongamento das férias, as vendas das máquinas de depenar aves, as longas noites na praia a cantar belas melodias e o merecido descanso daquele casal maravilhoso, que adorava a vida, os filhos, os desportos e me adorava a mim. Aprendi muito com ambos.
Gostava de ter uma foto do momento em que, com o meu longo cabelo solto, já manchado pelo sol, envergando um caftan cor de salmão com renda na frente, executado primorosamente pela minha mãe, a pele dourada por muitos dias de sol, olhei para o espelho e vi. Vi que era bonita para além de calções e t-shirts e não apenas a maria-rapaz de rabo de cavalo, magra, desengonçada e quase invisível. Senti-me bem. Senti-me feliz.
Ao jantar, à luz das velas, senti também os olhos brilhar. Não é verdade que o brilho não se sente, porque depois de perceberes que o tens, é algo que guardas como uma jóia rara durante toda a vida.
É uma das minhas memórias mais doces, esta de zarpar com ambos à descoberta e ter-me descoberto também a mim.
Ainda agora, nas profundas e cálidas noites algarvias, com a música das ondas que rebentam de mansinho, me chegam os acordes do Edelweiss, que acompanho baixinho, com saudade e gratidão.
(Foto HDF)
O 25 de Abril fez-se para fundar uma democracia representativa em Portugal, sufragada pelo voto universal e livre dos cidadãos. Mas raras vezes, ano após ano, vejo homenagear esse órgão concreto da democracia - com o qual tantos sonharam durante gerações - que é a Assembleia da República, símbolo supremo do nosso regime constitucional.
Espero que este lapso seja corrigido e que em 25 de Abril de 2024, quando a Revolução dos Cravos comemorar meio século, possam ser homenageados 50 deputados, de diferentes partidos. Deputados que nunca foram ministros nem secretários de Estado nem presidentes de câmara nem presidentes de governos regionais: apenas deputados. Seria uma excelente forma de assinalar a instituição máxima da democracia portuguesa.
Fui repórter parlamentar do Diário de Notícias durante cinco anos e, nessa qualidade, tive o privilégio de conhecer competentíssimos deputados em todas as bancadas. A pretexto do 25 de Abril, quero distinguir dois desses parlamentares que conheci pessoalmente: Maria José Nogueira Pinto e João Amaral. Ela claramente de direita, ele inequivocamente de esquerda.
Em legislaturas marcadas por fortes combates políticos, nenhum dos dois alguma vez cessou de tomar partido, envolvendo-se convictamente no confronto de ideias que é função cimeira do órgão parlamentar: sabia-se ao que vinham, por que vinham, que causas subscreviam e que bandeiras ideológicas sustentavam. Mas também sempre vi neles capacidade para analisar os argumentos contrários, com elegância e lealdade institucional, sem nunca deixarem as clivagens partidárias contaminarem as saudáveis relações de amizade que souberam travar com adversários políticos.
Porque a democracia também é isto: saber escutar os outros, saber conviver com quem não pensa como nós.
Lembro-me deles com frequência. Como me lembro das sábias palavras que Giorgio Napolitano proferiu em 2013, ao tomar posse no segundo mandato como Presidente italiano. «O facto de se estar a difundir uma espécie de horror a todas as hipóteses de compromisso, aliança, mediações e convergência de forças políticas é um sinal de regressão», declarou neste notável discurso Napolitano, que aos 97 anos ainda é um dos políticos mais respeitados da turbulenta e caótica Itália.
Palavras que deviam suscitar meditação entre nós. Palavras que a conservadora Maria José Nogueira Pinto e o comunista João Amaral decerto entenderiam - desde logo porque sempre souberam pôr os interesses do País acima de tacticismos políticos.
Quis o destino, tantas vezes cruel, que já não se encontrem fisicamente entre nós. Mas o exemplo de ambos perdura, como símbolo de convicções fortes que - precisamente por isso - são capazes de servir de cimento para edificar pontes. E talvez nunca tenhamos precisado tanto dessas pontes como agora.