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Delito de Opinião

Pelos caminhos da Memória

Maria Dulce Fernandes, 09.02.25

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Não me lembro dos anos anteriores à Argentina, o que, pelos meus cálculos, faz com que a Argentina tivesse ido aprender costura com a minha mãe pelos seus 17 anos. Era assim que se fazia antigamente. Para muitos jovens, terminada a 4.ª classe, a classe era determinante.  Ou a sua  família era abastada o suficiente para poderem seguir os estudos, ou escolhiam um mister, aprendendo uma profissão sob os ensinamentos e supervisão de um Mestre ou de uma Mestra, que tinham percorrido o mesmo caminho, como tantos outros antes deles.

A Argentina completou 80 anos e foi dia de festa. Chegámos cedo e lá estava a igreja, imponente e muda, um marco de resistência, que nem houve raio que a partisse. 

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Para ser um verdadeiro passeio pela memória, decidimos fazer o passeio dos alegres, mas em modo inverso, e caminhar o “ caminho da escola”, pelas mesmas ruas e travessas que me levavam da casa dos meus pais até à Rua da Bica do Marquês e que eu percorria com todo o tino dos meus nove anos, tendo à minha guarda a Guida e a Cristina, quatro anos mais novas. Passávamos o Café Galvão, o Chafariz, descíamos pelas ”Terras” e virávamos à esquerda a seguir ao Salão Portugal, evitando assim o mal falado "Café das Meninas” na esquina da Travessa de Paulo Martins. Era curioso para mim o nome dado ao tal “antro” pois, sempre que por lá passava acompanhada, nunca vislumbrei qualquer menina através do vidro das montras.

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O “caminho da escola” está irreconhecível. As ruas, travessas, largos e pátios são os mesmos, têm o mesmo nome, mas a modernização pintou por cima das imagens do passado uma caiada de edifícios recuperados, transformados em condomínios privados.

O Salão Portugal, onde vi tantos filmes, muitos sem ter sequer idade para os entender (como por exemplo “Lágrimas e Suspiros”), é agora a sede do Comité Olímpico Português. Se olimpíadas por lá houve, foram seguramente cinematográficas.

A farmácia está onde funcionava o fotógrafo da Céu, que tantas fotos tipo passe nos tirou para as fichas escolares, no início de cada ano lectivo. A padaria acabou, a capelista da D. Augusta, onde se comprava os aviamentos e mandava forrar botões, também. A Sapataria Marilu e a Cá-Jor já passaram a memória há muito tempo.

A Memória não ajudou em nada as memórias que guardei.

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Deixámos as cogitações no ar ignoto e fomos  ao encontro da Argentina, porque afinal este era o seu dia, e foi uma festa dentro da festa. As minhas memórias eram também as suas memórias mais gratas de jovem aprendiz. E prodigiosas que elas são. Foi um desfilar de lembranças maravilhosas e sentimo-nos gratas por as termos vivido.

A Memória continua lá, mas apesar de ser sempre bonita, já pouco me traz à memória.

Convém lembrar

Pedro Correia, 07.01.25

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Há dez anos, ainda mal haviam arrefecido os cadáveres dos assassinados no massacre do Charlie Hebdo, a então eurodeputada Ana Gomes apressou-se a justificar a chacina, ligando-a não ao fascismo islâmico com origem na Península Arábica mas às condições socio-económicas na Europa, nomeadamente em Paris, onde ocorreu a matança - quando o Chefe do Estado francês era o seu camarada socialista François Hollande.

«Horror! É este o resultado das políticas anti-europeias da austeridade: desemprego, xenofobia, injustiça, extremismo, terrorismo.»

Assim rabiscou Gomes.

Dez anos depois, retenho a primeira palavra. Horror. O resto, hoje tal como em 7 de Janeiro de 2015, é simplesmente desprezível.

O que eles disseram faz agora dez anos

Quando Sócrates foi detido, muita gente correu logo a defendê-lo

Pedro Correia, 21.11.24

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Faz agora dez anos, José Sócrates era detido por sérios indícios de ter cometido ilícitos criminais diversos. Passado todo este tempo, continua sem ser julgado: estendeu ao limite toda a panóplia de garantias que o sistema legal português lhe concede e suscitou numerosos incidentes processuais com a suposta intenção de ver anuladas, por prescrição, as acusações formais que enfrenta desde Outubro de 2017. No início de 2024, tinha já apresentado 52 recursos e reclamações - mais de 80% chumbados, incluindo todos os que submeteu ao Supremo Tribunal de Justiça.

Eram inicialmente 31 crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. O Tribunal da Relação viria a reduzir de 31 para 28 o número de crimes: três de corrupção, 13 de branqueamento de capitais, seis de fraude fiscal, três de lavagem de dinheiro e três de falsificação de documento.

Sete anos volvidos, o antigo primeiro-ministro continua a desfrutar de uma espécie de férias vitalícias na Ericeira, uma das mais belas e acolhedoras vilas balneárias do País. Em casa de empréstimo, para se manter fiel aos seus hábitos. E em persistente anomia moral, como se lhe fosse indiferente o facto de sabermos que viveu à custa de um empresário com quem o Estado teve negócios de milhões

 

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Em Novembro de 2014, dezenas de políticos, jornalistas e comentadores saíram de imediato em defesa e louvor de Sócrates. Num ruidoso movimento de solidariedade colectiva, sem questionar os actos e as motivações do homem que durante seis anos, entre 2005 e 2011, esteve à frente do Governo de Portugal.

Vale a pena lembrar o que alguns disseram naqueles dias de febril exaltação socrática. Porque a memória não prescreve.

 

Manuel Magalhães e Silva: «A democracia está em perigo.» (SIC Notícias, 22 de Novembro)

Clara Ferreira Alves: «Esta Justiça de terceiro mundo aterroriza-me. Isto não acontece num país civilizado com jornais civilizados.» (Expresso, 22 de Novembro)

Pedro Adão e Silva: «Devemos questionar tudo sobre a justiça em Portugal.» (SIC Notícias, 22 de Novembro)

Edite Estrela: «Qual a melhor forma de desviar as atenções do escândalo dos vistos gold?» (Facebook, 22 de Novembro)

Pedro Marques Lopes: «A minha confiança no sistema judicial deste país está pelas ruas da amargura.» (SIC Notícias, 23 de Novembro)

Fernando Pinto Monteiro: «[Está a haver] uma promiscuidade entre política e justiça.» (RTP, 24 de Novembro)

Proença de Carvalho: «[O juiz Carlos Alexandre] é o herói dos tablóides.» (TSF, 26 de Novembro)

Mário Soares: «Estes malandros estão a combater um homem que foi um primeiro-ministro exemplar!» (RTP, 26 de Novembro)

Fernando Rosas: «Estamos a entrar num sistema, promovido de facto pelos media em grande parte, de mediatização dos juízes. Queremos uma república de juízes?» (TVI24, 27 de Novembro)

Pedro Bacelar de Vasconcelos: «Subsistem dúvidas legítimas quanto à real motivação do tribunal.» (Jornal de Notícias, 28 de Novembro)

O PS deve cinco Orçamentos ao PSD

Pedro Correia, 03.10.24

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Quando Marcelo liderava o PSD, entre 1996 e 1999

 

O PSD aprovou cinco Orçamentos do Estado apresentados na Assembleia da República por executivos minoritários do PS. Aconteceu com os orçamentos de 1997, 1998 e 1999, viabilizados por decisão de Marcelo Rebelo de Sousa quando liderava os sociais-democratas como principal força da oposição. E com os orçamentos de 2010 e de 2011, quando José Sócrates chefiava o Governo e Manuela Ferreira Leite e Pedro Passos Coelho ocupavam a presidência do partido laranja.

O contrário jamais sucedeu.

Não há memória de vermos a bancada parlamentar socialista contribuir, com a abstenção, para a passagem de um Orçamento do Estado submetido ao hemiciclo de São Bento por executivos minoritários do PSD.

Moral da história? O PS deve cinco Orçamentos ao PSD. Tão simples como isto.

O meu guarda-redes

Maria Dulce Fernandes, 02.07.24

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"Foi 11 vezes internacional pela Selecção A, já para o final da sua carreira, em plena maturidade. Estreou-se em 19 de Abril de 1965, data em que Portugal foi ganhar à Turquia por 1-0. Logo a seguir, em 25 de Abril, destacou-se num dia que ficou para a história: reduzido a 10 elementos, Portugal ganhou em casa da Checoslováquia por 1-0, e José Pereira foi determinante, ao defender assombrosamente um penalty."

É do "meu tempo". Tenho ideia dele e da equipa. O meu avô e o meu pai referiam o José Pereira como "o maior de todos os tempos", mas a política de clubes não permite que se lhe façam grandes referências.

Deixo esta memória do meu guarda-redes em homenagem ao Diogo Costa.

https://www.osbelenenses.com/2014/09/15-de-setembro-de-1931-nasce-jose-pereira/

Para avivar algumas memórias

Pedro Correia, 08.06.24

Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, tinha 26 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Jerónimo de Sousa, que foi secretário-geral do PCP entre 2002 e 2022, tinha 27 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Jaime Gama, que foi presidente da Assembleia da República entre 2005 e 2011, tinha 27 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Helena Roseta, arquitecta e deputada em várias legislaturas da Assembleia da República, tinha 27 anos quando foi eleita deputada à Assembleia Constituinte.

Manuel Gusmão, poeta, ensaísta e professor da Faculdade de Letras, tinha 29 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Vital Moreira, um dos constitucionalistas de referência em Portugal, tinha 29 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

As palavras também têm história

Pedro Correia, 23.04.24

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Palácio Quintela, em Lisboa, onde Junot instalou o seu quartel-general em 1807

 

Muitas vezes não fazemos a menor ideia da origem de algumas das expressões coloquiais que usamos. Mas vale a pena investigar de onde vêm e como se foram generalizando.

Várias remontam ao tempo das invasões francesas, na primeira década do século XIX. Uma das mais frequentes relaciona-se com a chegada do general Jean-Andoche Junot a Lisboa, à frente do exército napoleónico, quando ainda se avistavam no horizonte as velas da frota que conduzia a família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 30 Novembro de 1807. Ficou, portanto, a ver navios.

Portugal acabou por ser devastado pelas tropas gaulesas, que aqui praticaram as maiores atrocidades. Mas Junot, indiferente às situações de penúria e de miséria provocadas pelos invasores também em Lisboa, instalou-se no Palácio Quintela, na Rua do Alecrim, com despudorada ostentação, vivendo à grande e à francesa.

Um dos generais que o acompanharam na invasão, Louis Henri Loison, tornou-se tristemente célebre pela ferocidade com que tratava os portugueses que tinham o azar de lhe surgir ao caminho. Por ter perdido o braço esquerdo numa batalha, logo recebeu a alcunha de Maneta. A partir daí, quando alguém se envolvia numa situação complicada ou perigosa, passou-se a dizer que iria pr'ò Maneta.

Derrotados na batalha do Vimeiro em Agosto de 1808, após o desembarque de forças britânicas em Portugal, Junot e as suas tropas retiraram-se para França após encherem navios de tudo quanto puderam na sequência de incontáveis actos de pilhagem em igrejas, palácios e bibliotecas - num dos maiores atentados desde sempre cometidos ao património nacional. Zarparam assim, de armas e bagagens.

 

Duzentos anos depois, os ecos das invasões francesas perduram no nosso vocabulário corrente. Porque também as palavras têm história.

Os discípulos de Chamberlain

Pedro Correia, 17.04.24

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Neville Chamberlain cumprimentando Hitler em Munique (1938)

 

É comum ouvir-se por estes dias, a propósito da política de canhoneira aplicada por Vladimir Putin na Ucrânia, um conceito desenterrado dos mais bafientos baús da História.

Que conceito é esse? O de "apaziguamento".

 

Em síntese, os defensores desta tese recomendam a atitude dos três macaquinhos da fábula: há que vendar os olhos, cobrir os ouvidos e emudecer perante sucessivas violações do direito internacional para não indispor os prevaricadores. Se for preciso inverte-se até o ónus da prova, transformando o agressor em agredido e o agredido em agressor. Como o Grande Irmão de Orwell, que instituiu um Ministério da Verdade para melhor disseminar as mentiras enquanto incentivava as massas a urrarem o mais cruel e acéfalo dos paradoxos: «Guerra é paz!»

Não há nada de original nisto. Quando escuto os apóstolos do apaziguamento recordo-me sempre do mais infausto e patético de todos os primeiros-ministros britânicos: Arthur Neville Chamberlain. Céptico perante os aliados, crédulo perante os inimigos. De uma granítica intransigência face às vozes que o alertavam contra os riscos do compromisso a todo o preço, sempre pagos mais tarde a custos elevadíssimos. E de uma benevolência sem limites face à ofensiva totalitária.

De tanto querer a paz, na sua indesmentível boa fé, facilitou o caminho aos promotores da guerra. Da mais sangrenta, devastadora e homicida das guerras.

 

Recordo em particular o acalorado debate na Câmara dos Comuns travado a 25 de Junho de 1937 -- em que, não por coincidência, foi invocado várias vezes o nome de Portugal.

Era a primeira vez que Chamberlain ali discursava sobre política internacional desde que fora empossado como chefe do Governo conservador britânico, no mês anterior. E logo ali ficou bem patente o seu anseio em levar à prática uma política de "apaziguamento" com as feras totalitárias que faziam da guerra civil espanhola terreno experimental para um incêndio muito mais vasto que não tardaria a deflagrar no mundo.

Comentando a aparente resignação de Berlim na sequência do recente afundamento de um navio alemão ao largo da costa espanhola, o antecessor de Churchill não hesitou em elogiar o regime de Hitler por «ter demonstrado um grau de moderação que devemos reconhecer». O massacre de Guernica, cometido pela tenebrosa Legião Condor, ocorrera dois meses antes...

Incapaz de ler os sinais da História, Chamberlain pedia «cabeça fria» no Parlamento britânico e recomendava aos próprios jornalistas que «medissem as palavras» para não ferir as susceptibilidades dos inimigos da democracia. E rematou assim, cego perante as evidências: «Se todos formos prudentes, pacientes e cautelosos seremos capazes de salvar a paz na Europa.»

 

O antigo primeiro-ministro liberal David Lloyd George respondeu-lhe da melhor maneira. Observando sem rodeios que Hitler violara já três acordos internacionais subscritos pelo Estado alemão. Ao inutilizar o Tratado de Versalhes (1919) reintroduzindo o serviço militar obrigatório. Ao rasgar o Pacto de Locarno (1925), invadindo e remilitarizando a Renânia. E ao transformar em letra morta o Acordo de Não-Intervenção na Guerra Civil de Espanha (1936), disponibilizando instrutores, armamento e aviação a Franco.

E Lloyd George retorquiu a Chamberlain: «Precisamos de cabeças frias, sim, mas também de corações fortes.»

Solidários com os que sofrem as agressões, não com aqueles que as praticam. E aprendendo sempre com as lições da História.

Por um triz

Teresa Ribeiro, 08.03.24

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As mensagens ainda não arrefeceram no meu telemóvel. Trocámos várias nos últimos tempos. Queria entrevistá-lo para um trabalho que ando a fazer, ele fugia-me. Marcámos e desmarcámos várias vezes. Desculpava-se, muito cortês. É que andava assoberbado. E eu sorria, condescendente, porque achava bonito. Tanta vida, apesar dos 84 anos, pensava. Que se conserve assim por muito tempo.

Depois aconteceu aquela desgraça e já não foi possível. Mesmo assim houve avanços e recuos, mas no dia aprazado faltava-lhe o ânimo, desmarcava. Deixou-me suspensa das palavras que não me disse e eu sabia serem importantes. Porque ele não era pessoa para dizer banalidades. Tão boa tinha sido aquela conversa que um dia tivemos, no seu apartamento na Rua do Quelhas, que queria repetir. Ter só mais um bocadinho de António-Pedro Vasconcelos só para mim, mas escapou-me por um triz. E a sensação que me fica é a de desperdício. Tinha ainda tanto para fazer e para dizer. E de impotência. Vontade de pôr o pé na porta e de insistir, só mais uma vez: "Gostava mesmo muito de falar consigo."

25 de Novembro, sempre

Pedro Correia, 25.11.23

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Faz hoje 48 anos, uma guerra civil foi evitada in extremis em Portugal. A grave expressão, em jeito de aviso à Europa inteira, foi usada a 22 de Novembro de 1975 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Melo Antunes, em entrevista à revista francesa Le Nouvel Observateur.  

Não exagerava: os militares, armados até aos dentes, apontavam os fuzis uns contra os outros.

 

Na manhã de 25 de Novembro ocorreu a confrontação armada, com três mortos (dois comandos, um polícia militar) na Calçada da Ajuda. Mas poderia ter sido muito pior. Podia ter ocorrido um banho de sangue, culminando oito meses de intenso "processo revolucionário", como se denominava o assalto da esquerda mais radical - incluindo comunistas de obediência soviética e maoístas - a empresas, fábricas, terrenos agrícolas, rádios e jornais. Com petardos no Terreiro do Paço enquanto discursava o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, um cerco de 36 horas à Assembleia Constituinte por cerca de cem mil manifestantes agitando bandeiras vermelhas, propaganda extremista debitada nas estações de rádio estatizadas e editoriais incendiários em quase toda a imprensa (com destaque para o Diário de Notícias).

Tudo culminou na rebelião de pára-quedistas, que na noite de 24 para 25 de Novembro ocuparam bases aéreas (Monsanto, Tancos, Ota, Monte Real), as principais vias de acesso à capital e os estúdios da RTP no Lumiar. Registando-se o envolvimento de outras unidades, como a Polícia Militar, o Regimento de Artilharia Ligeira de Lisboa e a Escola Prática de Administração Militar.

Se os sublevados não tivessem sido dominados ao fim daquele dia tão intenso que parecia interminável, já com o estado de sítio proclamado na região de Lisboa, a confrontação bélica seria inevitável. Vitimando não apenas militares, mas também civis.

 

É isso que hoje se assinala, é isso que hoje se comemora. A vitória da democracia, completando o ciclo iniciado a 25 de Abril de 1974, que permitiu devolver a liberdade aos portugueses. As duas datas são inseparáveis: ambas merecem celebração. Até porque muitos dos militares de Novembro foram também militares de Abril - incluindo António Ramalho Eanes e Fernando Salgueiro Maia.

Que o PS, protagonista desses tempos de alto risco em que se lançaram os alicerces do Estado de Direito em Portugal, se demarque hoje do 25 de Novembro em parceria com o PCP, seu principal adversário à época, é uma traição à memória dos seus fundadores, como Mário Soares, Maria Barroso e Francisco Salgado Zenha. E a vários dos seus antigos dirigentes que permanecem entre nós, como Manuel Alegre e Jaime Gama - também corajosos resistentes à insurreição da esquerda militar. 

Sinal inequívoco da desorientação estratégica deste Partido Socialista pós-geringonça. Renegando a sua própria história. Será o grande ausente das celebrações de hoje, em Lisboa e no Porto. Organizadas, naturalmente, sem pedir vénia aos herdeiros ideológicos dos derrotados de 1975. 

25 de Novembro, sempre!

Êxodos, massacres, genocídios e omissões

Pedro Correia, 26.10.23

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Crianças arménias refugiadas em 1915: o primeiro genocídio documentado do século XX

 

Também em matéria de "catástrofes humanitárias" (como agora tantos dizem, numa tradução imbecil do 'amaricano') há umas mais iguais do que outras.

A Arménia, lá nos confins do Cáucaso, sem jornalismo nem "activismo" nas redondezas, pode ser chutada para o rodapé pelo supremo responsável da segurança global (atenção: as cinco anteriores palavras são em registo irónico).

 

Convém nunca esquecer que os arménios sofreram o primeiro genocídio documentado dos tempos modernos. Há pouco mais de cem anos, cerca de milhão e meio foram massacrados pelo já decadente Império Otomano, avô da Turquia actual - incluindo deportações e assassínios em massa.

Seguiu-se o tenebroso Holodomor - a condenação de um povo inteiro à morte pela fome. Neste caso ucranianos, submetidos à mais cruel pena capital colectiva pela URSS de Estaline em 1932/1933.

 

Massacres étnicos originaram também grandes êxodos - de dezenas de milhões de pessoas. É outro dramático legado do século XX.

Entre 1944 e 1949, 1,7 milhões foram expulsos da Polónia para a Ucrânia - e vice-versa.

Após 1945, cerca de 8 milhões de alemães foram evacuados dos chamados "territórios de Leste" para o perímetro da actual fronteira alemã - e, depois, muitos fugiram da RDA para Ocidente.

O desmembramento do Hindustão britânico originou entre 1947 e 1951 o êxodo cruzado de 15 milhões de pessoas da União Indiana para o Paquistão - e vice-versa. Nessa traumática jornada entre fronteiras recém-estabelecidas, terão morrido cerca de dois milhões de pessoas.

O genocídio ocorrido no Camboja submetido ao domínio totalitário comunista de Pol Pot, entre 1975 e 1979, custou pelo menos dois milhões de vidas humanas.

A disputa pelo enclave que acaba agora de mudar de mãos no Cáucaso originou em 1994 a deslocação forçada de cerca de 400 mil arménios e de mais de um milhão de azeris.

Menos expressivo, mas não menos doloroso, foi o êxodo ocorrido em Chipre na sequência do golpe ilegal ali protagonizado pela Turquia em 1974 que dividiu a ilha até hoje: 200 mil gregos e 60 mil turcos desalojados.

Viria a acontecer, em escala maior, nas guerras dos Balcãs da década de 90 - ainda cheia de chagas por cicatrizar.

E no Ruanda, na sanguinária guerra civil de 1994: cerca de um milhão de mortos em apenas três meses apenas por pertencerem à "etnia errada" (tútsis, sobretudo).

Sem esquecer a guerra no Sudão, culminada na "limpeza" étnica no Darfur, em 2003: pelo menos 2 milhões de mortos e 6 milhões de refugiados nos vinte anos seguintes. Primeiro genocídio documentado deste já tão triste século XXI.

 

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Guterres na fronteira entre Gaza e o Egipto (20 de Outubro)

 

Existirá, nos casos de grandes êxodos, uma figura da justiça internacional denominada "direito ao regresso" dos desalojados, apenas invocada no caso da Palestina?

Fica à consideração dos especialistas.

Ao secretário-geral da ONU nem é preciso perguntar: dirá logo que sim. Num reflexo condicionado semelhante ao que no passado dia 20 o levou a mostrar-se aos repórteres do lado da fronteira egípcia com Gaza numa arenga cheia de bonitas frases humanitárias que esqueceram os mais de 200 reféns israelitas e de outras nacionalidades levados à força pelo Hamas, em circunstâncias bárbaras.

Também se peca por omissão. Eis um destes casos.

Cada vez menos livres

Pedro Correia, 05.07.23

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Observando caricaturas antigas, de mestres do desenho satírico como José Vilhena (1927-2015), é fácil concluir que vivemos tempos menos livres do que naquelas décadas de 70, 80 e 90 em que ele pontificava em publicações diversas, sempre com o seu traço corrosivo e cáustico, sem fazer vénia fosse a quem fosse.

Hoje, nestes dias do respeitinho e da autocensura, vemos pouco ou nada disto. Aliás os cartunistas tornaram-se espécie em vias de extinção - desde logo no The New York Times, que ajoelhou ao ponto de banir desenhos satíricos das suas páginas. Gigante do jornalismo a comportar-se como anão perante micro-indignações tribais. Com muitos outros a seguirem-lhe o exemplo, cá também.

Atentos, veneradores e obrigados. De cerviz dobrada até ao chão.

O que se disse e escreveu há dez anos

Pedro Correia, 04.07.23

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«Há duas pessoas que têm um poder enorme dentro do PSD, assim de um dia para o outro: Rui Rio e Paulo Rangel.»

Ricardo Costa, SIC Notícias, 2 de Julho de 2013

 

«Passos Coelho não tem neste momento mão no PSD. (...) Estão criadas as condições para que a corrente crítica no PSD venha questionar a liderança. O PSD pode ter algum ganho se conseguir alterar a liderança do partido até às eleições. (...) Dentro do PSD há uma larga maioria que não está de acordo com a manutenção deste governo.»

Raquel Abecasis, TVI 24, 2 de Julho de 2013

 

«O Presidente da República deve chamar Rui Rio, que é uma pessoa prestigiada.»

José Gomes Ferreira, SIC, 3 de Julho de 2013

 

«Apostaria no Rui Rio, que tem estado a gerir a Câmara do Porto magistralmente e sai com um prestígio enorme como autarca. É uma hipótese [para primeiro-ministro].»

António Capucho, Rádio Renascença, 3 de Julho de 2013

Seria "racismo" ou só "crime de ódio"?

Pedro Correia, 15.06.23

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Quando Pedro Passos Coelho era primeiro-ministro, chegou a ser recebido com edificantes e ternurentas imagens como esta, na selecta Faculdade de Direito de Lisboa. Prefigurando, com expressiva metáfora, a «morte ao Coelho».

Nessa altura - Fevereiro de 2013 - não havia divas do comentário a rasgar as vestes contra o «racismo», nem virgens à beira do desmaio perante «crimes de ódio». Nem sequer almas sensíveis a clamar contra o animalicídio, entre «vivas à liberdade» e palminhas pseudo-revolucionárias.

Valia tudo. Até sorrisos cúmplices perante estas "traquinices" da brava rapaziada anti-Passos.

O Tanque

Maria Dulce Fernandes, 08.06.23

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Mesmo ali na confluência, no ponto exacto em que a Rua dos Jerónimos se dilui na descoberta da Avenida da Ilha da Madeira, à direita de que quem sobe e à esquerda de quem desce, no cimo íngreme de uns quantos degraus de pedra, atrás de um portão, grande, velho e ferrugento, ficava O Tanque.

O tanque era a zona comunitária favorita da localidade, para pôr os mexericos em dia, enquanto se lavava a roupa com grandes e perfumados tijolos de sabão azul e branco. No meu tempo de petiz já o tanque deixara para trás o esplendor centenário e as filas de matronas palradeiras com trouxas de roupa à cabeça ou debaixo do braço. Nessa altura, quase todos os lares possuíam electricidade e água canalizada e cada um tinha o seu próprio tanque de lavagens e cordas imensas para pendurar roupa nos quintais ou nas janelas. O tanque comunitário já era usado apenas para as lavagens de Primavera, colchas, tapetes, enxergões, cortinas e cortinados, coisas que pelo tamanho e peso molhado, não era possível lavar em casa. Pouco tardou até que o sabão fosse substituído e quase aniquilado pelo propagandeado detergente que lavava mais branco.

Quando o meu irmão mais novo nasceu as suas fraldas já foram lavadas "na máquina", que chegou para vencer no campeonato das lides domésticas.

O tanque presentemente funciona como polo da Refood em Belém. Apraz-me a ideia de que continue a ter uma função social e comunitária.

Perco-me na nostalgia das longas noites de Verão, sentada no muro em frente ao portão, ouvindo a música da água que corria lá dentro, acobertada sob o azul céu do mais belo estádio de Lisboa, olhando o Tejo ao fundo à esquerda e aspirando profundamente aquele perfume fantástico a sabão (que tive a fortuna de redescobrir idêntico numa embalagem de detergente) que me acalenta as memórias da roupa fresca e cheirosa acabada de sair do tanque.

PCP contra o Papa e a favor de Kim

Pedro Correia, 14.03.23

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15 de Março de 2013, voto parlamentar:

«A Assembleia da República, reunida em sessão plenária, saúda o Estado do Vaticano, a Igreja Católica e todos os que professam a sua fé, pela eleição do novo Sumo Pontífice.»

O PCP recusou votar a favor.

 

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28 de Fevereiro de 2014, voto parlamentar:

«Pela primeira vez, a ONU denunciou crimes contra a humanidade a serem cometidos contra o povo norte-coreano, numa demonstração preocupante e denunciadora da intolerância, da repressão, do ódio e do clima de terror empregues pelo regime de Pyongyang.

A actuação da Coreia do Norte constitui, evidentemente, uma ameaça séria à paz nos limites das suas próprias fronteiras, como representa uma ameaça à segurança regional e internacional. E, por isso, deve merecer uma condenação firme e consensual da comunidade internacional.

Portugal e os povos da Europa têm na tolerância um valor de referência. A demonstração do repúdio e condenação por actos premeditados contra a segurança, a liberdade, a integridade e a dignidade humanas é um imperativo moral constitutivo ou integrante da democracia.

Assim, a Assembleia da República associa-se à Organização das Nações Unidas na condenação dos crimes cometidos pelo regime norte-coreano contra o seu próprio povo e lamenta as vidas perdidas às mãos de um regime autocrático e repressivo.»

O PCP votou contra.