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Delito de Opinião

Dies Mundi

Maria Dulce Fernandes, 02.03.22

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O mundo é aqui é agora, na porta ao lado, na próxima esquina. O mundo é a realidade que engoles ensonado, a fumegar, que empurra a panaceia matinal contra as maleitas do tempo.

O mundo é a atmosfera saturada que respiras ofegante através do trapo que te oferece fraco consolo como filtro das pestilências que te envolvem, as físicas, porque para as outras não há filtro nem machado.

O mundo é tudo o que sentes e pensas que sabes. Não sabes se sabes tudo ou se apenas sabes a realidade que te envolve e que te ilude.

O mundo é o lento girar das sombras que vês passar até ao regresso da luz que cada vez mais tarda em chegar.

O mundo é vida e palpitante . Podes nada entender da realidade do mundo, mas  sabes que mordaças e grilhões aguardam na parda antecâmara da morte de todas as mortes, aquela que deixa para trás o corpo vazio de alento de quem a alma se apagou nas chama da desolação e do terror.

O mundo é o espelho do medo.

Congelados pelo medo

Paulo Sousa, 25.02.22

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Com a memória fresca da leitura recente da Homenagem à Catalunha de George Orwell, é claramente um mundo diferente este em que vivemos e aquele que em se formaram as brigadas internacionais para ajudar as forças do governo republicano espanhol no combate contra o fascismo.

É claro que também a mecanização e toda a tecnologia de guerra levou a que a sua progressão se tenha tornado muito mais rápida, e assim se tenha tornado obsoleta a manutenção por meses de posições entrincheiradas conforma relata Orwell nesta obra.

Mas mais do que isso não posso deixar de reparar no voluntarismo assente na força das convicções ideológicas e na generosidade que levaram cerca de 40.000 cidadãos, maioritariamente europeus, a abandonar as suas rotinas e a se voluntariar para combater num país dentro do qual nem conseguiam comunicar. Cerca de 10.000 terão morrido ao longo da guerra, tendo muitos deles perecido também em resultado dos conflitos entre os diferentes partidos que combatiam as tropas de Franco. A busca pela pureza dos ideais colocou os partidários de cada uma das principais facções, fossem anarquistas, socialistas, comunistas, mais ou menos marxistas com critérios de distinção que exigiam um bisturi ideológico, uns contra outros. O escritor pertencia a um deles apenas porque eram os que o tinham recebido à chegada.

No relato sobre o inverno passado nas trincheiras entre Huesca e Saragoça sobressaem essencialmente as descrições sobre o frio, o isolamento e o tédio ali passado. Manter o lume acesso exigia deslocações cada vez maiores, chegando ao ponto em que por cada hora de lume acesso eram necessárias três ou mais em busca de material combustível. Chega a ser mais fácil arranjarem-se voluntários para ir à terra de ninguém para recolher lenha, do que para combater. A falta de higiene, os piolhos e os atrasos na alimentação são também referidos no livro.

 

Em oitenta noites, apenas tirei as minhas roupas três vezes, embora conseguisse de tempos a tempos tirar tirá-las durante o dia. Ainda estava demasiado frio para haver piolhos, mas ratazanas e ratos era coisa que não faltava.

 

Depois de ler esta obra e de recuar no tempo pela mão de Orwell, oiço as notícias e fico a saber que estamos todos agradavelmente surpreendidos pelas unânime reacção dos países-membros da EU e até comovidos pelas palavras proferidas pelos seus responsáveis políticos. Não se pode expulsar a Rússia do sistema de pagamentos Swift porque sem o gás que esta fornece poderíamos passar frio, mesmo num inverno que tem sido ameno.

Confesso-me surpreendido por ainda não ter começado a ver molduras azuis e amarelas para sobrepor nas fotos de perfil das redes sociais, porque essa é a arma favorita dos europeus para combater os tiranos. Os mais afoitos e voluntariosos, e que vivem a menos de mil passos da Rua Visconde de Santarém, esses apostam mais no desenho de cartazes para exibição em frente às câmaras de videovigilância da embaixada da Rússia.

Já com milhares de ucranianos deslocados em fuga da guerra, com muitos outros a dormir nas estações de metro, fazendo lembrar os tempos do Blitz sobre Londres, sem podermos saber a dimensão das baixas civis, a pergunta que ouvi numa entrevista a um oficial das Forças Armadas reformado foi sobre quais as linhas vermelhas que a Rússia não poderá pisar. O que é que afinal ainda falta acontecer para que os europeus acordem?

Os políticos estão manietados na exacta proporção da incapacidade dos cidadãos que representam, aceitarem riscos. Os déspotas como Putin e Xi Ji Ping sabem bem disso e isso abre-lhes a porta às suas ambições. O próximo episódio ocorrerá em Taiwan e o melhor mesmo é que os mais corajosos comecem já a preparar os cartazes. A embaixada da China em Portugal fica na Rua de São Caetano.

Madre superiora e a castidade sanitária

Pedro Correia, 20.08.21

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Um país inteiro fechado, a nível nacional, por ali ter sido detectado um só caso do novo coronavírus em seis meses. Eis a Nova Zelândia actual - espécie de cruzamento do Admirável Mundo Novo de Huxley com o domínio do Rei Ubu. Hoje coutada da senhora Jacinda Ardern, que as bempensâncias de turno tanto enaltecem pela suposta visão estratégica e pela presumível estatura de estadista. 

Parece decisão de madre superiora. Como uma noviça pecou, Madre Jacinda - suprema guardiã da castidade sanitária - ordena que todas as freiras fiquem de castigo lá no convento.

Faça o que fizer, tem hossanas garantidos, Deus seja louvado por tão virtuosa senhora.

 

Galeria de horrores (II acto)

Sérgio de Almeida Correia, 18.06.21

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E o inevitável aconteceu. Depois do I veio o II acto

Tal como era previsível desde há um par de anos na Região Administrativa Especial de Macau, tudo se conjugava para que a situação de convivência entre os dois sistemas da República Popular da China desmoronasse. Seria apenas uma questão de tempo e de retórica.

Se o primeiro é incontrolável, ainda quando se pretende acelerar ou atrasar o seu ritmo, indiferente como sempre foi aos humores dos calendários e à vontade dos humanos, já a segunda impõe-se à força de megafone, assim amplificando a dimensão relativa do tempo e dos desígnios políticos e sociais de cada época. De certa forma, quem controla o megafone torna-se senhor do devir. De um tempo imediato.

Mais do que um resultado, a mudança é um processo, uma sucessão ordenada de actos tendentes a um fim que pode durar mais ou menos tempo a atingir-se.

Neste caso, o fim estava consagrado na Declaração Conjunta Luso-Chinesa de 1987 e na Lei Básica de Macau e visava a integração de Macau na República Popular da China, ao fim de um período de 50 anos, após a reversão da região para o titular legítimo da sua soberania.

Na prática, o que se verificou, porém, em especial desde 2017 foi uma aceleração, não do tempo, antes do processo histórico, com a inerente supressão de etapas, a qual veio acompanhada da supressão dissimulada de garantias e de uma indisfarçável pulsão autoritária e policial decorrente da criação de mecanismos de controlo e dissuasão ditados por circunstâncias externas que em nada diziam respeito à quietude da terra e das suas gentes, empenhadas desde sempre na construção de um futuro risonho, confortável e livre, à sombra da herança tutelar do passado e da boa fé que criou laços e nós capazes de resistirem a qualquer intempérie.

Não obstante os sucessivos alertas, todos os sinais foram desvalorizados pelos habituais bardos do status quo, caixeiros-viajantes alçados a diplomatas, serventuários com pose de estadista, ratazanas empresariais sempre sôfregas nos seus estômagos protuberantes e de flor na lapela sobre tecidos finos, desde a primeira hora mais preocupados em garantirem a segurança dos seus interesses e das camarilhas que os projectaram e das quais depende a sua segurança e o seu vinho do que em assegurarem o bem-estar das gentes da terra.

As notícias divulgadas esta semana relativamente à prática, agora já não disfarçada, de actos efectivos de censura na TDM, quer em relação ao programa Contraponto (paz à sua alma), quer em relação ao Telejornal, apenas vieram confirmar a mudança da linha editorial da concessionária do serviço público de rádio e televisão, antes várias vezes anunciada e sempre desmentida por força dos exercícios retóricos.

Este último acto conducente ao desmantelamento oficial do segundo sistema muito antes da data prevista, não foi em Macau ditado por quaisquer circunstâncias externas ou a prática de quaisquer actos de desafio, subversão ou secessão, que aqui nunca existiram, mas tão-só pela vontade, em que alguns sempre se esmeraram, fosse no tempo colonial ou depois dele, nos órgãos de poder, no legislativo, nas instâncias judiciais, nos negócios ou na comunicação social, em garantirem que à dobragem da cerviz, ao excesso de zelo e à paulada orientadora corresponderia sempre uma remuneração adequada, um pacote de brindes turísticos ou uns pastelinhos de massa tenra.

Daí que o desvirtuamento precoce fosse amplamente aceite e aplaudido por alguns sectores que no Terreiro do Paço, em Belém, nas Necessidades, na Praia Grande ou na fonte do Lilau, são o espelho e a vergonha da nação a que também pertenço, o que ainda assim não os coibia de todos os anos celebrarem penhoradamente Abril, rumando às cerimónias oficiais enquanto sacodem a caspa dos galões e das ombreiras e dão vivas à fraternidade universal, à amizade entre os povos e aos cambalachos que hão-de vir.

A liberdade de imprensa – vê-se agora de forma insofismável –, estava ferida de morte há muito tempo. Qualquer justificação é um atentado à inteligência de uma pessoa normal. Ainda assim não têm pejo em apresentá-la.

E muitos dos receios que anteriormente se manifestaram, alguns no próprio programa censurado durante os anos em que por lá passei, até Setembro de 2019, foram merecedores tanto da chacota como da lisonja de bufos e acomodados, ante o olhar preocupado de quem num silêncio triste e compungido via resvalar a alegria de tantas outras horas em que a incerteza, a insegurança e o infortúnio eram versos distantes de poetas esquecidos.

Quando a brisa era ainda ligeira ninguém ligou. Depois foi soprando progressivamente mais forte e desvalorizaram, porque poder-se-ia sempre fechar a janela ou acreditar que o tufão seria desviado para outras paragens enquanto se comprava a fruta à janela. Agora que a janela se partiu e não há ninguém que a conserte, posto que o tufão é incontrolável, o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões se mistura com a chuva e os silvos do vento, tudo destruindo à sua passagem, alguns preparam-se para fazer as malas, outros para convictamente se alistarem, fazendo jus ao seu mercenarismo do lado do megafone, convictos como estão na sua ilusão de que estarão a salvo numa arrecadação sem janelas da caserna que lhes distribuírem.

Restarão sempre alguns, do lado de fora, é certo, amarrados às árvores por fortes cadeados. Pelos cadeados da integridade do tempo e da história, únicos testemunhos da justiça divina.

São esses os únicos que sabem que raízes centenárias e milenares não se deixam corroer. Nem corromper. Que resistem às subidas de maré e ao mais imprevisível dos tufões. Qualquer que seja o Norte de onde sopre o vento. Sempre com a garantia de que quando aqueles passarem as cigarras e os ratos há muito terão partido.

E os pontos cardeais continuarão no mesmo sítio. Como a decência, a honradez, a seriedade.

Os bons jornalistas, os bons juízes, os bons empresários, os bons advogados também. Esses permanecerão todos no mesmo sítio. Agarrados às raízes. Como muitos outros bons profissionais.

Qualquer que seja a bússola, o martelo ou o lápis que queira guiar a sua liberdade e as circunstâncias do seu tempo.

O medo

Maria Dulce Fernandes, 15.06.19

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Não é fácil amares o medo.
O medo é devastador, esconde-se no toque húmido de uma carícia, numa lágrima que rola, num beijo molhado, na troca de prazeres selvagens e desprotegidos, numa folha de papel afiada que faz verter uma gota carmesim.
O medo destrói. Mergulha nos teus fluidos ondulantes, insidioso e vil, acoita-se e desenvolve, cresce imundo e letal no teu seio. Aniquila de dentro para fora, mudo e traiçoeiro, até ser tarde demais.
Então ficas só. Isolada do mundo no mundo do medo.
Tens medo, aquele medo que não tem panaceia nem cura. Queres fugir, mas o medo não te permite sair do casulo de clausura a que foste votada, aquela cela estéril onde vives só, só tu e o teu medo. A humanidade, lá fora, ficou dentro de uma bolha hermética cujo toque não te toca, por não lhe poderes tocar.
O desespero enovela-se-te nas cordas de onde a voz não desata nem sai. 
No fogo da tua memória, sessões contínuas do filme da tua vida fogem da palavra fim.
O medo levou-te a força, mas a vontade resiste. Até quando, não sabes. Sentes a dissolução da carnadura, mas o espírito, esse lutará sempre aferrado com unhas e dentes ao medo que o quer destruir, porque aprender o medo é poder amá-lo e sobreviver.
 
Para o J. Saraiva, que perdeu a guerra contra o Medo há precisamente 25 anos.
 
(Foto da Internet)

A Europa rendida ao medo (12)

Pedro Correia, 11.12.15

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A escola Matteotti, em Florença, cancelou uma visita de estudo dos alunos do ensino básico daquele estabelecimento a uma exposição de arte sacra nesta cidade intitulada Beleza Divina por "compreensão pelas famílias muçulmanas tendo em conta o tema religioso" desta mostra. Entre os quadros expostos no Palácio Strozzi encontram-se A Crucificação Branca, de Marc Chagall (o preferido do Papa Francisco), a Pietà, de Van Gogh,  A Crucificação, de Renato Guttuso, e o Angelus, de Millet, além de telas de Matisse, Munch e Picasso.

A Europa rendida ao medo (11)

Pedro Correia, 10.12.15

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Uma escola da cidade italiana de Rozzano, a 30 quilómetros de Milão, só irá assinalar o Natal a 21 de Janeiro, baptizando-o de "Festa de Inverno", sem cânticos nem símbolos religiosos. Motivo? Segundo o director da escola, após os atentados de Paris, isto poderia ser considerado "uma provocação perigosa" para os cerca de 20% de alunos de origem muçulmana matriculados neste estabelecimento de ensino.

O medo

Helena Sacadura Cabral, 08.01.15

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Sei alguma coisa do que seja viver com medo. Sobretudo, com o medo que advém de se ter opinião. Durante anos, estive sob o fogo cruzado da PIDE, por causa do marido e do filho mais velho. Depois, nos tempos áureos do PREC, por causa do mais novo e do sogro. Não eram medos mortais, mas era um sentimento de impunidade e de insegurança que advinham do simples acto de pensar pela própria cabeça. Vem daí a minha incapacidade de filiação numa qualquer organização que me obrigue a prescindir de ter pensamento próprio.

Os acontecimentos ocorridos ontem em Paris e os assassinatos de que antes já havíamos tido conhecimento, voltaram a relembrar-me esses estados de ansiedade pelos quais passei há já muitos anos e a perguntar a mim própria como se tornou possível, no século XXI, uma tal ocorrência.

Nunca fui uma apreciadora do estilo corrosivo do Charlie Hebdo, talvez porque ele atacava, sobretudo, o "modo de olhar o mundo". Prefiro o humor de tipo britânico, que obriga a pensar antes de rir. Mas reconhecia-lhes uma criatividade e uma ousadia sem limites. E respeitava-as.

O que ontem se passou visa amedrontar, nomeadamente os mais frágeis, aqueles que não têm a coragem ou a capacidade de serem livres. E ser livre não depende só de nós. Depende também daqueles que nos estão próximos e que podem, directa ou indirectamente, limitar essa liberdade. Quem não tem dinheiro para dar de comer à família não pode sentir-se livre. Daí que o medo se revista de múltiplas roupagens. O atentado de Paris obriga-nos, de novo, a conviver não só com ele, mas também com a angústia que dele resulta. O que, para além das perdas humanas – essas, irreparáveis - constitui uma das mais trágicas condicionantes a que podemos ficar sujeitos.

 

 

mau tempo

Patrícia Reis, 31.03.13

Estão 14 distritos em alerta, a chuva parece que não vai parar e as janelas da casa mínima onde estou ameaçam cair. Oiço o vento lá fora e, confesso, tenho medo. O melhor será um livro.

 

Leio:

 

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Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

[Fernando Pessoa, in Chuva Oblíqua]