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Delito de Opinião

Eficácia e inovação medicamentosa

João André, 29.07.14

Esta notícia é, à partida, muito boa. O estado deixa de perder tempo e dinheiro com coisas que não funcionam e concentra-se nas que têm utilidade. Assim fosse com tudo. Há especialistas com reservas e dúvidas, mas tocam aspectos sobre os quais não tenho conhecimentos. Levanto apenas duas outras dúvidas.

 

1. No caso de cancros, parte dos tratamentos de quimioterapia passam por um sistema de tentativa e erro, não se sabendo muitas vezes à partida qual o medicamento que poderá ter sucesso. Segundo me explicaram no passado, alguns há que têm uma enorme taxa de sucesso em casos específicos e são completamente inúteis noutros, aparentemente semelhantes. Esperemos que a avaliação do sucesso seja competente.

 

2. Para mim preocupante é o ênfase na questão dos novos medicamentos, ditos inovadores. Em muitos casos os novos medicamentos nada têm de novo a não ser uma pequena modificação da fórmula, a qual nada traz de novo a não ser uma patente. São introduzidos porque a patente anterior está a expirar e o componente activo poderá passar a ser vendido como genérico. O novo medicamento é apresentado como sendo uma inovação mas nada acrescenta ao anterior. Esperemos bem que, ao avaliar novos medicamentos, o Sinats e o Infarmed se preocupem mais com as bolsas dos pacientes do que com as dos laboratórios.

 

Tende presente, para além de tudo o mais, que o próprio FMI se engana no efeito multiplicador

Rui Rocha, 13.10.12

 

Atentai, caros congéneres, que o assunto tem o seu melindre. Antes de mais, todavia, façamos um curto périplo por algumas certezas da medicina. O café faz mal, certo? Pois, parece que não. Comer laranja ao deitar pode ser muito prejudicial, não é verdade? Não, não é verdade. A ingestão de antioxidantes é uma medida eficaz na prevenção de doenças, correcto? De facto, talvez não seja bem assim. Da mesma maneira, outras verdades da medicina parecem estar em causa. Pelo visto, não é evidente que beber oito copos de água por dia seja benéfico para a saúde. Ou que comer peru provoque sonolência. Ou que comer ao deitar engorde. E quem o diz é o insuspeito British Medical Journal. O ponto é que, como salienta o José Meireles Graça, a ciência médica, na variedade do nutricionismo, está longe de apresentar resultados fiáveis. Reparai que até o axioma universal que liga a ligeireza de carnes à saúde está agora posto em causa. A que propósito vem tudo isto? Pois bem. Vem a propósito de uma decisão que muitos podem estar na iminência de tomar. Certo. A cada um cabe escolher o destino que dá aos seus pertences e ninguém deve atravessar-se no caminho de decisão que se quer pessoal e intransmissível. Em todo o caso, não ficaria de bem comigo mesmo se não deixasse aqui um alerta: meditai, ponderai, tomai o vosso tempo. Tende em conta que pode não ser evidente a vantagem de trocar a esperança de vida por uma vida sem esperança. Reflecti sobre os ensinamentos que resultam do facto de o único Prémio Nobel da Medicina atribuído a um português premiar os avanços extraordinários então reconhecidos à lobotomia, hoje considerada de modo consensual uma prática bárbara e destituída de sentido. E se acaso tiver perpassado pelas vossas mentes um resto de dúvida pelo facto de os exemplos de mitos infundados da medicina que aqui trouxe estarem relacionados com a área do nutricionismo, não sendo eventualmente a incerteza que daí resulta transponível para outras domínios da ciência médica em que o conhecimento estará mais desenvolvido, tende presente que esta é uma matéria que tem tudo a ver com tomates.

Da boa medicina

José Navarro de Andrade, 23.08.12

 

Só nos anos 70 do séc. XX se voltaram a usar cabelos e bigodes tremendamente assim. Relembre-se os visuais de David Byron dos Uriah Heep, ou de todos os elementos dos Black Sabbath à excepção de Ozzie Osborne (estranho!) ou ainda de certos jogadores do benfica, mais hirsutos que o habitual.

Além da exuberante capilaridade, há algo mais que poderia combinar João Curvo Semedo com semelhante malta. Se estes ingeriam com afinco experiências químicas motivadoras, digamos assim, já Curvo Semedo foi um dos percursores, ainda que não inteiramente científico, da farmacopeia química. O apogeu da sua ciência, no dealbar de setecentos, fez dele médico de “Sua Majestade” tanto Pedro II como João V, portanto no período mais rico e edificador da história do reino de Portugal. Mais do que isso, a fama boticária de Curvo Semedo excitou a curiosidade de muitos físicos europeus coevos, nessa época em que nascia o espírito moderno, caracteristicamente explorador, entusiástico com a novidade e apaixonado pelo exotismo das espécies florais e animais que todos os dias nos revelava o Novo Mundo – do feijão aos papagaios, do peru aos venenos amazónicos.

No recato da sua oficina lisboeta João Curvo Semedo pode ser hoje visto como um modelo de pré-cientista do seu tempo. Todavia, não obstante ser familiar do Santo Ofício (não fosse o diabo tecê-las) a composição de algumas “receitas secretas” das suas poções, elixires e preparados foi de molde a suscitar vivíssima repulsa e repugnância, tendo sido ponderada a sua proibição.

Tape-se o nariz e encolha-se a barriga:

Curvo Semedo era defensor das propriedades terapêuticas do vómito: “o vomito he hum arrojo impetuoso, que o estomago faz para as partes superiores, deytando fora de si tudo o que o agrava, & molesta, ou sejão humores, ou alimentos, ou venenos”. (Vai na forma original para não susceptibilizar os inimigos de acordos ortográficos). De modo a proporcionar os benefícios do vómito nada melhor do que a utilização pródiga de “pós de quintílio” ou seja antimónio pulverizado, um metalóide hoje tido como altamente tóxico – quem sabe que propriedades os homeopatas lhe descobrirão amanhã…

Outra grave maleita: “Dor de cabeça he huma acçaõ depravada do sentido do tacto daquele membro. A causa proxima he a soluçaõ da continuidade das partes que se contèm na cabeça; mas porque estas humas saõ interiores, que ficaõ do casco para dentro, outras exteriores que ficaõ dos casco para fóra; he necessário conhecer em qual destas està a dor, para se lhe aplicar o remedio.” Ora, para atenuar certas dores de cabeça o melhor é aplicar emplastros frios de bolo de rosa e folhas de meimendro, tudo pisado e misturado com clara de ovo, leite de peito, farinha de cevada e vinagre rosado, enquanto, de hora a hora, se deve sorver pelo nariz agua rosada temperada com vinagre rosado.

Outra sorte de emplastros, um pouco mais abjetos, resolvem as dores ciáticas. Consistem em esterco de pombos, mostarda, figos passados e sementes de mastruços em partes iguais, tudo bem pisado e misturado com umas gotas de vinagre forte. Encharcar um pano com esta papa e aplica-lo na coxa.

Poderemos com toda a propriedade achar arrepiante se não mesmo fatais estas medicinas, mas elas foram os primeiros passos para a fantástica – e quem sabe se ainda incipiente – ciência contemporânea.

Troca de rins

Jorge Assunção, 12.03.09

Um post muito interessante do economista Al Roth sobre a evolução do mercado de troca de rins [via Freakonomics]. A existência de um mercado de compra e venda de rins nos Estados Unidos é uma impossibilidade legal (coisa com a qual não concordo, mas isso é assunto para outro post), contudo existe a possibilidade de alguém doar o seu rim a outro. Um problema que surge frequentemente nestes casos é o da incompatibilidade do possível doador em relação ao receptor do rim (e, como é óbvio, o possível doador muitas vezes só existe perante um receptor específico - motivado por laços de amizade, familiares, etc...).

Dado isto, Al Roth desenhou um programa que visa pôr os diferentes pares incompativeis em contacto uns com os outros, sendo que com este cruzamento dos dados é possível criar combinações que de forma indirecta satisfaçam a condição que leva à existência da doação do rim.

Qual é o problema deste sistema? É o de que após alguém doar um rim para outro que não o receptor inicialmente pretendido a reciprocidade da troca seja garantida (ou seja, que quando um dos pares incompativeis já tenha recebido o rim pretendido, o doador de tal par não desista de doar o seu rim ao receptor de outro par). Dado que também é uma impossibilidade legal o estabelecimento de contratos com condições obrigatórias relativas a troca de orgãos humanos, a única forma de evitar este problema é fazer as operações de trocas de rins entre os diferentes pares envolvidos simultaneamente. Daqui, como se depreende facilmente, surge uma limitação ao sistema.

Mas o que Al Roth dá conta agora no seu post é de uma possível alteração com impacto no sistema. A simples existência de um doador altruista, ou seja, alguém que está disposto a doar o seu rim sem indicar um receptor específico, permite desenhar o sistema de forma a que o custo da desistência de um doador cujo parceiro já tenha recebido o seu rim seja reduzido.

O processo é simples de entender: se o primeiro elemento da corrente for alguém que não estabelece condição nenhuma para doar o seu rim, daí para a frente alguém só doa o seu rim após o parceiro ter recebido o rim compatível. Com isto as operações simultâneas deixam de ser necessárias e desaparece uma limitação forte ao actual sistema. Claro que é sempre possível, perante operações não simultâneas, a desistência de um doador com respectiva quebra da corrente, mas o que deixa de ser possível é verificar-se qualquer incumprimento das condições que levaram à participação dos restantes elementos da corrente.

E é assim que um único doador altruista pode ter um impacto muito significativo na vida de várias pessoas.