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Delito de Opinião

Viagem até Bissau - 3

Paulo Sousa, 09.07.21

No Senegal, a contornar a Gâmbia

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Margem norte do Rio Senegal - Mauritânia
Foto Paulo Sousa

A principal fronteira entre a Mauritânia e o Senegal é a de Rosso. Mas além de ter fama de ser uma das fronteiras mais caóticas e corruptas deste lado de África, inclui uma demorada e igualmente caótica travessia de ferry do rio Senegal. Por isso, escolhemos a fronteira alternativa, pela barragem de Diama. Antes de lá chegar, o troço inflete em direcção ao Atlântico e ao longo da margem norte do rio, num piso de terra ladeado por vegetação que anuncia o fim do deserto.

Chegados à fronteira deparamo-nos com uma inovação na arte de sacar dinheiro aos estrangeiros. De forma a evitar que europeus venham vender carros velhos ao Senegal, algo que pelo que nos explicaram era frequente há pouco tempo atrás, cada carro estrangeiro (europeu?) que entre no país e que tenha mais de não sei quanto anos (poucos), terá de ser escoltado a expensas do seu proprietário, claro. Assim, com sete carros a escoltar, o valor ascendeu a uma pequena fortuna. Mais uma vez, o facilitador de serviço quis tratar de todo o processo e ficou claro que toda a narrativa é acertada entre ele, os guardas mauritanos e os senegaleses. A única forma de evitar este pagamento passa por tratar com antecedência de um documento qualquer junto da embaixada senegalesa. A negociação demorou algumas horas, mas acabamos por não conseguir contornar o suposto custo da escolta. Depois de resolvida essa parte, só faltava o seguro dos carros, pois a carta verde já tinha perdido a validade há muitos quilómetros atrás. Remeteram-nos para um espaço onde um ancião vendia umas vinhetas a que chamavam “o seguro”. O espaço era uma divisão de uma casa em ruínas, sem telhado. O ancião estava sentado no chão e tinha umas folhas A4 coloridas dentro de um saco plástico. Cada uma dessas folhas era constituída por rectângulos coloridos destacáveis, como se fossem selos. O senhor era muito magro e não falava nenhuma língua que entendêssemos. Um miúdo traduziu-o dizendo que ele estava doente do estômago e pediu-nos qualquer coisa para o ajudar. Sem nenhum diagnóstico, nem nenhum médico na caravana, oferecemos-lhe alguns analgésicos. Compramos-lhe depois os ditos selos e lá seguimos atrás do nosso guardião que nos iria escoltar até deixarmos o país. Estranhamente, ou não, menos de um quilómetro depois, à entrada da primeira rotunda, o dito acompanhante parou na berma, abriu o vidro e apontou para uma das saídas da rotunda e disse: “Para a Guiné, é por ali. Boa viagem.” E seguiu sorridente com um rolhão de euros dentro do bolso. TIA.

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

E assim chegamos a Saint-Louis, onde pernoitamos. A caminho do local onde dormimos, atravessamos a ponte de construção colonial e mais tarde um estaleiro das longas embarcações de madeira. A pesca tem uma grande importância para esta cidade.

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Saint Louis - Senegal
Foto Nuno Rebocho

As crianças enxamearam-se à volta dos carros a pedir uma prenda qualquer. Já sabíamos disso por isso levávamos umas caixas com esferográficas, algo que nos tinham dito ser bastante apreciado pelos mais novos. Por comparação com o que encontramos mais tarde na Guiné, reparamos num detalhe que constitui uma diferença de comportamento das crianças: na Guiné partilha-se natural e automaticamente, enquanto que no Senegal o que vimos foi o oposto. Dei três canetas a um miúdo que se encostou à minha janela com uma mão estendida enquanto a outra apontava para a caixa das BIC cristal. Ao lado dele tinha dois colegas e apesar de lhe ter dito que era uma para cada um, ele que entendeu o que lhe disse, agarrou-as sorridente e, perante o desapontamento dos outros, desatou a correr dali para fora.

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

Na madrugada seguinte regressamos à estrada. Se a travessia de ferry pelo rio Gambia, que dá o nome ao mais pequeno país de africado, não exigisse os procedimentos de mais uma fronteira essa teria sido a nossa opção. Assim, e com a má memória da “escolta” senegalesa, preferimos contornar esta antiga colónia inglesa, e rumamos para o interior até Tambacounda. Dali a Pirada, a fronteira da Guiné, já não faltavam muitos quilómetros. Mas como a estrada foi piorando até se tornar numa picada de pó alaranjado, pernoitamos em Kounkané, que passamos a tratar por “Cum caneco”. À noite, demos um passeio pelas ruas da povoação e deparámo-nos com a transmissão de uma meia final da Champions. O televisor estava dentro de uma tabanca virado para o exterior. Desde o nível térreo, quase junto ao chão, até a bastantes metros de distância, a curtos palmos de distância, tinha-se formado um anfiteatro de cabeças que absorviam o jogo em silêncio. Sabíamos que o futebol é um fenómeno global, mas esta foi uma perspectiva diferente e interessante disso mesmo.

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Embondeiro
Foto Paulo Sousa

Na manhã seguinte, depois de, no último cruzamento em direcção ao nosso destino, nos termos despedido do alcatrão, chegamos finalmente à Guiné. Não fosse o GPS e facilmente atravessaríamos a fronteira sem dar por isso. Ali ao lado, a poucos metros da picada, ainda são visíveis os marcos de fronteira com um RP e um RF, dando assim a entender que são do tempo colonial.

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Marco de fronteira - visível a sigla RP - Républica Portuguesa.
No verso tem um RF - Républica Francesa

Foto Paulo Sousa

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 2

Paulo Sousa, 08.07.21

O deserto, o Bojador e a terra de ninguém

Na noite seguinte dormimos em Laayoune, a capital do Saara Ocidental. Os detalhes geopolíticos deste território ocupado por Marrocos são públicos e conhecidos e não interessam para este texto. Como já sabíamos desde a saída de casa, o troço que começa no sul de Marrocos e que vai até ao sul da Mauritânia, corresponde a mais de 2100 quilómetros e facilmente acaba por se tornar monótono. A paisagem muda pouco e muito lentamente. As paragens são as exigidas pelas necessidades logísticas dos veículos e fisiológicas dos passageiros. O tempo passa-se a conversar, dentro de cada carro e com os demais via CB. Come-se, bebe-se, dorme quem pode ou consegue.

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A caminho do sul
Foto Paulo Sousa

O cabo Bojador tem um lugar especial no imaginário lusitano. Lá chegados, mesmo sem qualquer construção ou referência que assinale a importância que lhe atribuímos, demos voz ao poema de Fernando Pessoa. Assim, entre duas minis, uma cigarrada e com a bandeira enrolada ao pescoço, foi dito o Mar Português.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

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Cabo Bojador
Foto Paulo Sousa

Após a guerra do Saara Ocidental, cujo cessar fogo foi assinado no início dos anos 90, e que envolveu Marrocos, a Mauritânia e os saaruis que reclamavam a independência, a travessia deste território só era permitida pelas autoridades marroquinas se fosse efectuada em caravana protegida por veículos militares. Por isso tornava-se necessário esperar pelos dias de saída das tropas.

Mais a sul, desde a fronteira da Mauritânia até à sua capital Nouakchott, a travessia só era possível pela areia junto ao mar, e por isso era necessário conversar com os pescadores locais para conhecer o horário das marés. Posteriormente, pelo que nos disseram, o governo mauritano fez um acordo com a China, segundo o qual trocaram a construção de uma estrada neste troço de cerca de 500 quilómetros, pelos direitos de pesca da sua extensa costa durante várias décadas. Assim, sem ter de esperar pela caravana militar e com a nova estrada mauritana já construída, a nossa viagem foi muito mais rápida do que seria uns anos antes. E foi assim, numa tarde de calor, que entramos nos trópicos.

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Trópico de Câncer
Foto Nuno Rebocho

Em resultado das posições tomadas pelos beligerantes na referida guerra, o último posto fronteiriço marroquino dista cerca de 5 quilómetros do posto mauritano, pelo que esta travessia constitui uma efectiva terra de ninguém. Apesar dessa designação, há gente que ali ganha a vida. As carcaças de carros desmontados, pneus, restos de televisores e frigoríficos desmantelados, indiciam que ali se faz um comércio bem variado. Mesmo estando numa terra de ninguém e no meio do deserto, surgiu logo alguém a oferecer ajuda como guia e assim evitar as minas anticarro abandonadas durante a guerra. O troço de GPS que trazíamos de casa dispensou tais serviços.

Para limitar este tão variado comércio na terra de ninguém, os guardas marroquinos só deixam passar quem tenha um visto de entrada na Mauritânia. Questionamo-nos sobre o que aconteceria se um crime de sangue ali ocorresse. Qual seria a autoridade a tomar conta da ocorrência? Podia ser um bom mote para um romance policial. Fica a ideia.

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Terra de ninguém, entre o último posto marroquino e a Mauritânia
Foto Paulo Sousa

Os procedimentos administrativos na entrada da Mauritânia, como em tantas outras fronteiras, são tratados por facilitadores informais. Eles recolhem os dados, cravam uns cigarros, preenchem formulários, distribuem cartões de visita para viagens futuras e assim fazem pela vida. O que nos calhou falava um português bastante fluente. Contou-nos que aprendeu a nossa língua a bordo de navios de pesca de Aveiro, que ali contratam ajudantes para as lides da pesca que realizam ao largo da costa.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Ao longo dos mais de 1500 quilómetros entre Laayoune e a entrada do Senegal, o controlo policial é regular. Em cada um deles tem de se registar os dados pessoais e das viaturas que por ali passam. Uma das recomendações que tínhamos recebido da Fundação João XXIII era que devíamos preparar 60 cópias de uma ficha onde constasse a identificação de todos os viajantes, assim como os dados de todos os veículos. Essa informação poupou-nos muito tempo, pois em cada checkpoint gastávamos apenas um ou dois minutos e seria fácil imaginar que sem estas fichas tudo seria muito mais demorado. Esta quantidade era superior ao necessário, mas acabamos por também as usar no Senegal e na Guiné.

Nos relatos das frequentes viagens que a Fundação João XXIII faz até à Guiné, explicaram-nos que recebem muitas ofertas de materiais para a Missão na Guiné e que as transportam recorrendo a veículos bem maiores que os nossos, por esta mesma rota. Além disso, enviam também contentores para Bissau. Para eles, além das fichas que identificam os participantes e os veículos, têm também um manifesto com todo o recheio. Perante tal variedade de bens, alguns agentes da autoridade, de uma forma mais ou menos formal, pedem também algum apoio para si e para os seus. Assim, e de forma a agilizar as passagens (TIA – This is Africa), os experientes transportadores ao serviço da Fundação levam sempre vários sacos plásticos com uma ou duas peças de roupa e um ou dois brinquedos, a que chamam de kits, e que têm sempre à mão.

Contaram-nos que numa dessas viagens, numa verificação aduaneira à entrada da Mauritânia, foram questionados sobre duas caixas com garrafas de vinho tinto, destinadas a serem servidas num casamento em Bissau. Perante tal achado e devido à proibição islâmica do consumo de álcool, os guardas ficaram muito “incomodados” e apreenderam as duas caixas. O fiel depositário das mesmas, triste pela perda e sem saber como explicar o extravio do dote para a boda, só sossegou depois de lhe garantirem que poderia recuperar as doze botelhas no regresso para norte. Aquando do seu retorno, o oficial de serviço arrasou-o explicando-lhe que todos os materiais impuros eram queimados e por isso não podiam devolver as garrafas. TIA. Sobre os danos que tal confisco teve no dia do casamento, não fomos informados.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Nouakchott, que carinhosamente sempre designamos por “No caixote”, é uma cidade que nos transmitiu a sensação de se tratar de um abastecimento permanente dos nómadas que circulam pelo país. Quase misturados com os automóveis, circulam rebanhos de ovelhas, cabras e camelos. O deserto começa onde acaba a cidade e isso faz com que as ruas tenham sempre um ar empoeirado. Segundo alguns relatos, no tempo do império colonial francês, os funcionários caídos em desgraça eram enviados para aqui. Se compararmos Nouakchott com as cidades costeiras do Senegal, do Saara Ocidental e de Marrocos, este é de facto o sítio menos privilegiado. A cidade terá a sua dinâmica, mas para quem passa com os dias e os quilómetros contados não parece ser muito apelativa. Quando lá chegamos ainda tínhamos duas horas de luz e por isso decidimos seguir viagem para pernoitar mais a sul, mais perto do Senegal.

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Nouakchott
Foto Paulo Sousa

A noite caiu e pensamos que conseguiríamos pernoitar junto à fronteira para poupar tempo no dia seguinte, mas após algumas dezenas de quilómetros, num dos checkpoints o oficial disse-nos que era perigoso conduzir de noite e que podíamos pernoitar ali mesmo. Aceitamos o convite, montamos as tendas nas traseiras do posto, e ali dormimos. Ao jantar, e sem a poluição luminosa que normalmente nos impede a observação noturna do céu, fomos brindados pelo Cruzeiro do Sul, que a contar com esta, foi a primeira vez que o pude contemplar.

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Acampamento no sul da Mauritânia
Foto Nuno Rebocho

Nesta parte importa registar que todo o contacto que tivemos com os mauritanos foi de uma extrema cordialidade. Talvez por osmose com o deserto que os rodeia e que convida à contemplação, todos eles mostraram uma enorme calma e serenidade. O convite que recebemos para ali pernoitar foi dentro deste registo. Toda a experiência com os marroquinos foi também sempre muito positiva, mas não pude deixar de me recordar de uma ocasião em que um marroquino me disse que se alguma vez fosse para a Mauritânia, ou para a Argélia, devia ir bem armado. As coisas que se dizem para alimentar inimizades com países vizinhos…

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Comida halal a caminho
Foto Nuno Rebocho

Pela manhã, enquanto desmontávamos o acampamento, assistimos ainda ao abate de uma vaca. Enquanto o animal seguia calmamente acompanhado pelos seus dois carrascos, o chefe do posto foi-nos explicando que o processo decorreria de acordo com as práticas islâmicas, de forma a ser considerado halal. Assim, quando derrubado, o bicho deveria ser orientado numa direcção específica, provavelmente tendo Meca por referência, o executante tem de ser um adulto reconhecido como pessoa capaz e tem de se dizer uma oração durante a execução. Assim, ali perto de nós, todo o procedimento se seguiu com a calma mauritana e de acordo com o roteiro planeado. Agradecendo a hospitalidade, despedimo-nos do nosso anfitrião e seguimos até à fronteira do Senegal.

Continua

Início da viagem