Viagem até Bissau - 3
No Senegal, a contornar a Gâmbia
Margem norte do Rio Senegal - Mauritânia
Foto Paulo Sousa
A principal fronteira entre a Mauritânia e o Senegal é a de Rosso. Mas além de ter fama de ser uma das fronteiras mais caóticas e corruptas deste lado de África, inclui uma demorada e igualmente caótica travessia de ferry do rio Senegal. Por isso, escolhemos a fronteira alternativa, pela barragem de Diama. Antes de lá chegar, o troço inflete em direcção ao Atlântico e ao longo da margem norte do rio, num piso de terra ladeado por vegetação que anuncia o fim do deserto.
Chegados à fronteira deparamo-nos com uma inovação na arte de sacar dinheiro aos estrangeiros. De forma a evitar que europeus venham vender carros velhos ao Senegal, algo que pelo que nos explicaram era frequente há pouco tempo atrás, cada carro estrangeiro (europeu?) que entre no país e que tenha mais de não sei quanto anos (poucos), terá de ser escoltado a expensas do seu proprietário, claro. Assim, com sete carros a escoltar, o valor ascendeu a uma pequena fortuna. Mais uma vez, o facilitador de serviço quis tratar de todo o processo e ficou claro que toda a narrativa é acertada entre ele, os guardas mauritanos e os senegaleses. A única forma de evitar este pagamento passa por tratar com antecedência de um documento qualquer junto da embaixada senegalesa. A negociação demorou algumas horas, mas acabamos por não conseguir contornar o suposto custo da escolta. Depois de resolvida essa parte, só faltava o seguro dos carros, pois a carta verde já tinha perdido a validade há muitos quilómetros atrás. Remeteram-nos para um espaço onde um ancião vendia umas vinhetas a que chamavam “o seguro”. O espaço era uma divisão de uma casa em ruínas, sem telhado. O ancião estava sentado no chão e tinha umas folhas A4 coloridas dentro de um saco plástico. Cada uma dessas folhas era constituída por rectângulos coloridos destacáveis, como se fossem selos. O senhor era muito magro e não falava nenhuma língua que entendêssemos. Um miúdo traduziu-o dizendo que ele estava doente do estômago e pediu-nos qualquer coisa para o ajudar. Sem nenhum diagnóstico, nem nenhum médico na caravana, oferecemos-lhe alguns analgésicos. Compramos-lhe depois os ditos selos e lá seguimos atrás do nosso guardião que nos iria escoltar até deixarmos o país. Estranhamente, ou não, menos de um quilómetro depois, à entrada da primeira rotunda, o dito acompanhante parou na berma, abriu o vidro e apontou para uma das saídas da rotunda e disse: “Para a Guiné, é por ali. Boa viagem.” E seguiu sorridente com um rolhão de euros dentro do bolso. TIA.
Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa
E assim chegamos a Saint-Louis, onde pernoitamos. A caminho do local onde dormimos, atravessamos a ponte de construção colonial e mais tarde um estaleiro das longas embarcações de madeira. A pesca tem uma grande importância para esta cidade.
Saint Louis - Senegal
Foto Nuno Rebocho
As crianças enxamearam-se à volta dos carros a pedir uma prenda qualquer. Já sabíamos disso por isso levávamos umas caixas com esferográficas, algo que nos tinham dito ser bastante apreciado pelos mais novos. Por comparação com o que encontramos mais tarde na Guiné, reparamos num detalhe que constitui uma diferença de comportamento das crianças: na Guiné partilha-se natural e automaticamente, enquanto que no Senegal o que vimos foi o oposto. Dei três canetas a um miúdo que se encostou à minha janela com uma mão estendida enquanto a outra apontava para a caixa das BIC cristal. Ao lado dele tinha dois colegas e apesar de lhe ter dito que era uma para cada um, ele que entendeu o que lhe disse, agarrou-as sorridente e, perante o desapontamento dos outros, desatou a correr dali para fora.
Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa
Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa
Na madrugada seguinte regressamos à estrada. Se a travessia de ferry pelo rio Gambia, que dá o nome ao mais pequeno país de africado, não exigisse os procedimentos de mais uma fronteira essa teria sido a nossa opção. Assim, e com a má memória da “escolta” senegalesa, preferimos contornar esta antiga colónia inglesa, e rumamos para o interior até Tambacounda. Dali a Pirada, a fronteira da Guiné, já não faltavam muitos quilómetros. Mas como a estrada foi piorando até se tornar numa picada de pó alaranjado, pernoitamos em Kounkané, que passamos a tratar por “Cum caneco”. À noite, demos um passeio pelas ruas da povoação e deparámo-nos com a transmissão de uma meia final da Champions. O televisor estava dentro de uma tabanca virado para o exterior. Desde o nível térreo, quase junto ao chão, até a bastantes metros de distância, a curtos palmos de distância, tinha-se formado um anfiteatro de cabeças que absorviam o jogo em silêncio. Sabíamos que o futebol é um fenómeno global, mas esta foi uma perspectiva diferente e interessante disso mesmo.
Embondeiro
Foto Paulo Sousa
Na manhã seguinte, depois de, no último cruzamento em direcção ao nosso destino, nos termos despedido do alcatrão, chegamos finalmente à Guiné. Não fosse o GPS e facilmente atravessaríamos a fronteira sem dar por isso. Ali ao lado, a poucos metros da picada, ainda são visíveis os marcos de fronteira com um RP e um RF, dando assim a entender que são do tempo colonial.
Marco de fronteira - visível a sigla RP - Républica Portuguesa.
No verso tem um RF - Républica Francesa
Foto Paulo Sousa