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Delito de Opinião

Um banco com vista: Marsaxlokk

Ana CB, 26.04.24

Está um belo dia de sol e o ambiente é modorrento. O Mediterrâneo exibe os seus matizes mais leves, quase leitosos, tão tranquilo que nem incomoda os inúmeros barcos ancorados no porto. As cores garridas que pintam a madeira das embarcações contrastam com a paisagem semidesértica que assoma do outro lado da baía, e com os edifícios em tons desmaiados que rodeiam a marginal. É hora de almoço. São poucos os turistas que vagueiam entre as bancas de artesanato e souvenirs, e ainda menos os habitantes locais, certamente recolhidos no fresco das suas habitações. Fosse domingo e a animação seria outra; mas é apenas mais um vulgar dia de semana, e Marsaxlokk está posta em sossego.

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A tradição da pesca

Marsaxlokk está situada numa grande baía, irregular e abrigada, no extremo sudeste da ilha de Malta, a cerca de 10 km de Valletta. O nome deriva da sua localização: “marsa” é uma palavra árabe para ancoradouro, e “xlokk” significa sudeste em maltês. Como porto natural, faz parte da cultura marítima mediterrânica desde a Antiguidade: foi usado por fenícios, romanos, árabes e até mesmo otomanos, quando cercaram Malta em 1565.

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Actualmente é o maior porto de pesca das ilhas maltesas, e uma das poucas aldeias piscatórias que sobrevivem no arquipélago. Grande parte do peixe vendido em Malta é capturado por pescadores que aqui ancoram os seus barcos. Durante a semana, o peixe capturado destina-se ao mercado de Marsa, mais perto da capital, onde os retalhistas e proprietários de restaurantes se abastecem. Só ao domingo é que os pescadores locais vendem o seu peixe fresco directamente aos consumidores, no mercado ao ar livre, razão pela qual este é o dia mais movimentado na localidade – sobretudo porque muitos malteses (e turistas) aproveitam a oportunidade para almoçar num dos variados restaurantes que há à volta do porto.

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Um festival de cor

Em Marsaxlokk reinam as cores primárias, e sinto-me como que imersa num espectáculo de videomapping. Desde as riscas do banco onde estou sentada às faixas multicoloridas dos barcos, o mundo à minha volta veste-se de amarelo-canário, azulão, vermelho Ferrari e verde-esmeralda.

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Na amálgama de embarcações paradas na água há de tudo um pouco. Há barcos a remos, alguns ainda de madeira pintada, com os bordos exteriores protegidos por grossos cabos entrançados. Há semi-rígidos e pequenos barcos de pesca desportiva, insípidos nas suas cores neutras. Há traineiras apetrechadas com uma parafernália de fatos cor de laranja, guinchos, projectores e radares. Mais ao longe, impõe-se a massa tricolor do Armada LNG Mediterrana, um navio-tanque de produção e armazenamento de gás natural liquefeito que está desde há alguns anos atracado junto à central eléctrica de Delimara.

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E há os luzzijiet (plural de luzzu; pronúncia maltesa: [lutt͡su]), que são também um dos motivos pelos quais Marsaxlokk é tão colorida e apelativa para os visitantes turistas. Descendentes dos ferilli, os barcos de pesca típicos de Malta entre o século XVII e o final do século XIX, os luzzijiet são feitos de madeira e têm um casco duplo, pontiagudo e arqueado para cima em ambas as extremidades. Estão pintados com riscas de cores garridas e ostentam, em ambos os lados da proa, o amuleto egípcio de protecção mais difundido em todo o mundo: o olho de Hórus. As velas tradicionais foram substituídas por motores, alguns já estão dotados de uma cabina, outros têm apenas uma lona, em jeito de tenda, para abrigar os utensílios usados na faina, e outros ainda estão cobertos com um toldo rectangular. Tal como é habitual em tantas comunidades pesqueiras, as cores de cada luzzu não são escolhidas aleatoriamente; obedecem a um código que indica o local de onde a embarcação provém, o núcleo familiar a que pertence (os luzzijiet são passados de pai para filho), e até mesmo se houve alguma morte recente nessa família.

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Do mar até à mesa

Sobre as lajes aquecidas pelo sol espraiam-se as redes que os pescadores estenderam para secar. Mais à frente, afundado no chão, um tanque pelo qual parecem já ter passado muitos anos foi convertido em base de obra artística: um memorial aos homens do mar. Imobilizados em bronze, duas crianças e um gato assistem à chegada de um pescador carregado com cestas cheias de peixe.

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O acolhimento depois da faina será certamente diferente hoje em dia. Ainda assim, a vida em Marsaxlokk continua a apoiar-se no mar e na pesca. Aproxima-se das duas dezenas o número de restaurantes que se perfilam à volta do porto, e todos eles oferecem pratos de peixe. Claro que também há concessões ao gosto (e à bolsa) de quem não aprecia aquilo que o mar nos dá e se inclina mais para os omnipresentes hambúrgueres e as suas obrigatórias acompanhantes. Mas a oferta de peixe e frutos do mar domina as ementas: cozinhados das mais diversas maneiras ou crus (fatiados em carpaccio e divinamente temperados), envolvidos em massa ou arroz, ou na aljotta, a sopa de peixe maltesa tradicional, em saladas ou como petisco de entrada. Só as sobremesas se mantêm alheias ao alimento que vem do mar – pelo menos até que algum chef mais atrevido se lembre de inventar um doce à base de peixe.

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Depois do almoço – num pontão sobre a água, as mesas resguardadas do sol por enormes sombrinhas verde-mar – impõe-se uma volta pelas ruas interiores, onde as casas antigas de pedra ocre convivem com prédios baixos de linhas mais modernaças, em que o mármore, ferro forjado ou madeira das varandas foi substituído por cimento pintado. A aridez cromática é cortada aqui e ali por um mural, uma porta multicolorida, uma floreira ornamentada, uma varanda de madeira azul-pavão.

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Uma história de fé

Acima do casario pairam as torres da igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, construída em finais do século XIX. Estranha-se a padroeira, mas tem uma justificação, e uma história. Em 1885, a Marquesa Rosalia Apap Viani Testaferrata viajava por mar ao longo da costa ocidental de Itália quando se levantou uma tempestade. Devota da Nossa Senhora de quem tinha o nome, a Marquesa invocou-a em oração, suplicando a sua ajuda. Coincidência ou não, a tempestade amainou durante algum tempo, suficiente para que o navio conseguisse chegar ao porto de Bastia, na Córsega, e os seus ocupantes desembarcassem sãos e salvos, antes de a tempestade desabar de novo. Como agradecimento pela sua salvação milagrosa, a Marquesa propôs custear metade do valor da construção da igreja de Marsaxlokk, desde que a dedicassem a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia. Desde 1963, esta igreja é o destino de uma peregrinação nacional que se realiza anualmente a 8 de Maio, liderada pelo Arcebispo de Malta. Em 2017 foi elevada de igreja paroquial a Santuário Mariano. É um dos testemunhos da fé dos malteses, que se replica nos inúmeros e grandiosos templos religiosos que encontramos por todo o lado nas ilhas de Malta e Gozo.

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Deixo Marsaxlokk como a encontrei: soalheira, plácida e colorida, guardiã tranquila de histórias e hábitos antigos que convivem sem sobressaltos com as exigências dos tempos modernos. Na esperança de que assim se consigam manter.