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Delito de Opinião

Viagem até Bissau - 2

Paulo Sousa, 08.07.21

O deserto, o Bojador e a terra de ninguém

Na noite seguinte dormimos em Laayoune, a capital do Saara Ocidental. Os detalhes geopolíticos deste território ocupado por Marrocos são públicos e conhecidos e não interessam para este texto. Como já sabíamos desde a saída de casa, o troço que começa no sul de Marrocos e que vai até ao sul da Mauritânia, corresponde a mais de 2100 quilómetros e facilmente acaba por se tornar monótono. A paisagem muda pouco e muito lentamente. As paragens são as exigidas pelas necessidades logísticas dos veículos e fisiológicas dos passageiros. O tempo passa-se a conversar, dentro de cada carro e com os demais via CB. Come-se, bebe-se, dorme quem pode ou consegue.

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A caminho do sul
Foto Paulo Sousa

O cabo Bojador tem um lugar especial no imaginário lusitano. Lá chegados, mesmo sem qualquer construção ou referência que assinale a importância que lhe atribuímos, demos voz ao poema de Fernando Pessoa. Assim, entre duas minis, uma cigarrada e com a bandeira enrolada ao pescoço, foi dito o Mar Português.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

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Cabo Bojador
Foto Paulo Sousa

Após a guerra do Saara Ocidental, cujo cessar fogo foi assinado no início dos anos 90, e que envolveu Marrocos, a Mauritânia e os saaruis que reclamavam a independência, a travessia deste território só era permitida pelas autoridades marroquinas se fosse efectuada em caravana protegida por veículos militares. Por isso tornava-se necessário esperar pelos dias de saída das tropas.

Mais a sul, desde a fronteira da Mauritânia até à sua capital Nouakchott, a travessia só era possível pela areia junto ao mar, e por isso era necessário conversar com os pescadores locais para conhecer o horário das marés. Posteriormente, pelo que nos disseram, o governo mauritano fez um acordo com a China, segundo o qual trocaram a construção de uma estrada neste troço de cerca de 500 quilómetros, pelos direitos de pesca da sua extensa costa durante várias décadas. Assim, sem ter de esperar pela caravana militar e com a nova estrada mauritana já construída, a nossa viagem foi muito mais rápida do que seria uns anos antes. E foi assim, numa tarde de calor, que entramos nos trópicos.

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Trópico de Câncer
Foto Nuno Rebocho

Em resultado das posições tomadas pelos beligerantes na referida guerra, o último posto fronteiriço marroquino dista cerca de 5 quilómetros do posto mauritano, pelo que esta travessia constitui uma efectiva terra de ninguém. Apesar dessa designação, há gente que ali ganha a vida. As carcaças de carros desmontados, pneus, restos de televisores e frigoríficos desmantelados, indiciam que ali se faz um comércio bem variado. Mesmo estando numa terra de ninguém e no meio do deserto, surgiu logo alguém a oferecer ajuda como guia e assim evitar as minas anticarro abandonadas durante a guerra. O troço de GPS que trazíamos de casa dispensou tais serviços.

Para limitar este tão variado comércio na terra de ninguém, os guardas marroquinos só deixam passar quem tenha um visto de entrada na Mauritânia. Questionamo-nos sobre o que aconteceria se um crime de sangue ali ocorresse. Qual seria a autoridade a tomar conta da ocorrência? Podia ser um bom mote para um romance policial. Fica a ideia.

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Terra de ninguém, entre o último posto marroquino e a Mauritânia
Foto Paulo Sousa

Os procedimentos administrativos na entrada da Mauritânia, como em tantas outras fronteiras, são tratados por facilitadores informais. Eles recolhem os dados, cravam uns cigarros, preenchem formulários, distribuem cartões de visita para viagens futuras e assim fazem pela vida. O que nos calhou falava um português bastante fluente. Contou-nos que aprendeu a nossa língua a bordo de navios de pesca de Aveiro, que ali contratam ajudantes para as lides da pesca que realizam ao largo da costa.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Ao longo dos mais de 1500 quilómetros entre Laayoune e a entrada do Senegal, o controlo policial é regular. Em cada um deles tem de se registar os dados pessoais e das viaturas que por ali passam. Uma das recomendações que tínhamos recebido da Fundação João XXIII era que devíamos preparar 60 cópias de uma ficha onde constasse a identificação de todos os viajantes, assim como os dados de todos os veículos. Essa informação poupou-nos muito tempo, pois em cada checkpoint gastávamos apenas um ou dois minutos e seria fácil imaginar que sem estas fichas tudo seria muito mais demorado. Esta quantidade era superior ao necessário, mas acabamos por também as usar no Senegal e na Guiné.

Nos relatos das frequentes viagens que a Fundação João XXIII faz até à Guiné, explicaram-nos que recebem muitas ofertas de materiais para a Missão na Guiné e que as transportam recorrendo a veículos bem maiores que os nossos, por esta mesma rota. Além disso, enviam também contentores para Bissau. Para eles, além das fichas que identificam os participantes e os veículos, têm também um manifesto com todo o recheio. Perante tal variedade de bens, alguns agentes da autoridade, de uma forma mais ou menos formal, pedem também algum apoio para si e para os seus. Assim, e de forma a agilizar as passagens (TIA – This is Africa), os experientes transportadores ao serviço da Fundação levam sempre vários sacos plásticos com uma ou duas peças de roupa e um ou dois brinquedos, a que chamam de kits, e que têm sempre à mão.

Contaram-nos que numa dessas viagens, numa verificação aduaneira à entrada da Mauritânia, foram questionados sobre duas caixas com garrafas de vinho tinto, destinadas a serem servidas num casamento em Bissau. Perante tal achado e devido à proibição islâmica do consumo de álcool, os guardas ficaram muito “incomodados” e apreenderam as duas caixas. O fiel depositário das mesmas, triste pela perda e sem saber como explicar o extravio do dote para a boda, só sossegou depois de lhe garantirem que poderia recuperar as doze botelhas no regresso para norte. Aquando do seu retorno, o oficial de serviço arrasou-o explicando-lhe que todos os materiais impuros eram queimados e por isso não podiam devolver as garrafas. TIA. Sobre os danos que tal confisco teve no dia do casamento, não fomos informados.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Nouakchott, que carinhosamente sempre designamos por “No caixote”, é uma cidade que nos transmitiu a sensação de se tratar de um abastecimento permanente dos nómadas que circulam pelo país. Quase misturados com os automóveis, circulam rebanhos de ovelhas, cabras e camelos. O deserto começa onde acaba a cidade e isso faz com que as ruas tenham sempre um ar empoeirado. Segundo alguns relatos, no tempo do império colonial francês, os funcionários caídos em desgraça eram enviados para aqui. Se compararmos Nouakchott com as cidades costeiras do Senegal, do Saara Ocidental e de Marrocos, este é de facto o sítio menos privilegiado. A cidade terá a sua dinâmica, mas para quem passa com os dias e os quilómetros contados não parece ser muito apelativa. Quando lá chegamos ainda tínhamos duas horas de luz e por isso decidimos seguir viagem para pernoitar mais a sul, mais perto do Senegal.

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Nouakchott
Foto Paulo Sousa

A noite caiu e pensamos que conseguiríamos pernoitar junto à fronteira para poupar tempo no dia seguinte, mas após algumas dezenas de quilómetros, num dos checkpoints o oficial disse-nos que era perigoso conduzir de noite e que podíamos pernoitar ali mesmo. Aceitamos o convite, montamos as tendas nas traseiras do posto, e ali dormimos. Ao jantar, e sem a poluição luminosa que normalmente nos impede a observação noturna do céu, fomos brindados pelo Cruzeiro do Sul, que a contar com esta, foi a primeira vez que o pude contemplar.

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Acampamento no sul da Mauritânia
Foto Nuno Rebocho

Nesta parte importa registar que todo o contacto que tivemos com os mauritanos foi de uma extrema cordialidade. Talvez por osmose com o deserto que os rodeia e que convida à contemplação, todos eles mostraram uma enorme calma e serenidade. O convite que recebemos para ali pernoitar foi dentro deste registo. Toda a experiência com os marroquinos foi também sempre muito positiva, mas não pude deixar de me recordar de uma ocasião em que um marroquino me disse que se alguma vez fosse para a Mauritânia, ou para a Argélia, devia ir bem armado. As coisas que se dizem para alimentar inimizades com países vizinhos…

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Comida halal a caminho
Foto Nuno Rebocho

Pela manhã, enquanto desmontávamos o acampamento, assistimos ainda ao abate de uma vaca. Enquanto o animal seguia calmamente acompanhado pelos seus dois carrascos, o chefe do posto foi-nos explicando que o processo decorreria de acordo com as práticas islâmicas, de forma a ser considerado halal. Assim, quando derrubado, o bicho deveria ser orientado numa direcção específica, provavelmente tendo Meca por referência, o executante tem de ser um adulto reconhecido como pessoa capaz e tem de se dizer uma oração durante a execução. Assim, ali perto de nós, todo o procedimento se seguiu com a calma mauritana e de acordo com o roteiro planeado. Agradecendo a hospitalidade, despedimo-nos do nosso anfitrião e seguimos até à fronteira do Senegal.

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 1

A partida

Paulo Sousa, 07.07.21

Comecei a escrever este texto, sobre uma viagem que fiz com um grupo de amigos entre Abril e Maio de 2013 à Guiné Bissau, para meu arquivo pessoal e memória futura. Só mais tarde decidi dividi-lo em vários postais, que aqui passo a publicar.

É habitual dizer-se que a preparação de uma viagem é uma viagem em si mesmo. Realizá-la é já a sua segunda versão e notei agora que escrever sobre ela é como acrescentar-lhe uma terceira camada. Gostei de o fazer.

A coisa vestiu-se, desde o início, de missão humanitária. Acondicionados dentro dessa embalagem, conseguimos combinar a descoberta da Guiné-Bissau – um país a que estamos e estaremos sempre ligados – com a vontade de partilhar, contribuindo na ajuda que ali é prestada por voluntários, apenas motivados pelo que de melhor o ser humano pode ter, e que é a generosidade para com desconhecidos.

Alguém do grupo conhecia alguém, que por sua vez conhecia outra pessoa ligada à Casa do Oeste - Fundação João XXIII sediada em Ribamar e que se dedica, entre outras coisas, a ajudar guineenses e que mantém uma presença contínua no país. Seguindo essa cadeia de dominó, acabámos por contactar a Fundação, onde fomos recebidos de braços abertos. Além de nos disponibilizarmos para transportar livros e alguns materiais escolares, contribuiríamos na forma da oferta dos nossos veículos a quem a Fundação entendesse serem úteis. Depois de uma ou duas reuniões e algumas horas de conversa, durante as quais recebemos uma enxurrada de detalhes operacionais para a viagem, começámos a preparar os carros e marcámos uma data.

Quase sem darmos por isso à volta de uma ideia surgida numa mesa de café, entre uma bica e uma imperial, tinha-se reunido um grupo de dezasseis pessoas que se distribuíram por sete viaturas. Os carros já tinham alguns anos e foram escolhidos pela sua fiabilidade, usando o critério de “quanto mais analógico melhor”. O material escolar que reunimos foi doado pelos alunos da creche e da escola primária da nossa freguesia. No dia da partida, as aulas foram interrompidas para que todos pudessem tirar uma foto com a expedição que partia e que ia levar cadernos, lápis e livros em língua portuguesa para tão longe. Foi uma festa. O primeiro momento mágico de muitos que se seguiriam.

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Foto Nuno Rebocho

Uma road trip só se torna real depois da partida. Antes do último preparativo, da última verificação da lista que foi crescendo durante semanas, até que se feche a porta de casa, e depois a do carro, tudo não passa de um projecto, de uma ideia. Mas de repente, após todos esses momentos, só importa o que irá acontecer ao longo daquela faixa, mais ou menos escura, mais ou menos recta, mais ou menos regular. Uma road trip numa caravana de sete carros exige a cada condutor uma atenção especial. As normas dentro do colectivo obedecem a uma lógica que visa manter o grupo coeso e em segurança. Ninguém pode ficar para trás e por isso o andamento de cada carro nunca pode levar a que se perca o contacto visual com o carro anterior. Se cada condutor apenas se preocupar em não perder de vista o que vai à sua frente, à menor contrariedade o grupo dispersa-se e isso equivale, no mínimo, a um desperdício de tempo. Por isso, a regra principal é muito simples, nunca perder o carro de trás de vista.

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Foto Nuno Rebocho

Uma parte significativa das dezasseis pessoas da caravana não eram mais do que recém-conhecidos, tendo estado juntos apenas num piquenique uma semana antes do grande dia, a que chamamos “a falsa partida”. O espírito de equipa formou-se rápida e naturalmente. Dia após dia, quilómetro após quilómetro, fronteira após fronteira, todos nos sentimos cada vez mais próximos.

Este não é um tipo de viagem que se possa descrever como férias, pois exige uma entrega permanente, em que não se podem regatear energias nem atenção. A cada instante é necessário avaliar o que nos rodeia, sem nunca esquecer que temos de saborear e viver cada momento. Tudo pode mudar de repente. Um buraco, um parafuso, uma fronteira, ou apenas a picadela de um mosquito. Qualquer uma destas coisas juntas ou mesmo isoladamente pode mudar radicalmente o rumo da viagem. Essa possibilidade é o que de mais metafórico com a vida, uma road trip deste tipo pode ter.

Na primeira noite dormimos num parque de campismo em Tarifa, de onde saímos quando ainda estava escuro, para apanhar o primeiro ferry para Tânger. A noite seguinte já foi passada em Marraquexe, que exige sempre uma passagem nocturna pela única e inigualável praça dos mortos, Djamena el Fna. Quem conhece este rectângulo sabe bem do que falo.

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Foto Nuno Rebocho

Marrocos é todo um programa, que alguns de nós já conheciam. As paisagens, especialmente as que ficam longe do alcatrão, são de encher as medidas, e por isso foi com pena que vimos o Atlas a ficar para trás sem que lhe prestássemos a devida atenção.

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Foto Paulo Sousa

Continua.

O longo braço de Mohammed VI

Fernando Sousa, 06.12.16

Sabíamos, enfim sabia quem sabia, que em Marrocos há três coisas que convém não discutir para não incorrer na ira do regime, que são Maomé, o rei e o Sara Ocidental, o que não sabíamos, e passámos a saber, é que o longo braço de Mohammed VI chegou à Covilhã, aparentemente através de uma cartinha, e levou a direcção da Universidade da Beira Interior a proibir a realização nas instalações da escola da conferência “Sahara Ocidental: a luta pela autodeterminação de um povo, promovida por estudantes de Ciência Política e Relações Internacionais. Isto em resumo do que os jovens fizeram saber pelos próprios meios uma vez que a comunicação social passou mais um dia às voltas com a puta da Caixa. A iniciativa acabou por realizar-se, nas instalações da Assembleia Municipal, mas ficou em muitos de nós, de outras épocas e memórias, a vergonha de ver abandonados à ocupação marroquina aqueles que há anos estiveram ao nosso lado contra a indonésia de Timor-Leste. Dixit.

Não haveria condecoração mais adequada?

Luís Menezes Leitão, 12.10.16

Leio aqui que Marcelo surge num vídeo de propaganda do Estado Islâmico que se destina a atacar o Rei de Marrocos por ter aceite uma condecoração das mãos do infiel que preside à República Portuguesa. Não sei se o dito Estado pretende proibir todos os infiéis de condecorarem muçulmanos, mas confesso que a escolha da condecoração me deixa perplexo. Em primeiro lugar, a condecoração implicou pôr uma cruz ao peito de um monarca que é descendente do Profeta Maomé — que a paz esteja com ele! — e sabe-se perfeitamente que a cruz é um símbolo ofensivo para os muçulmanos. Efectivamente, a sua religião acredita que o Profeta Isa não morreu na cruz, tendo ascendido directamente aos céus, pelo que a exibição da cruz implica a negação de um dos dogmas do Islão. Por outro lado, a condecoração é a da Ordem de Santiago, um santo invocado precisamente em apoio da reconquista cristã de terras islâmicas: "Por El-Rey e Santiago aos Mouros". Consta aliás que Santiago Maior foi o responsável por tantos milagres que permitiram a vitória dos cristãos, que ficou precisamente conhecido como o Mata-Mouros, já que a sua invocação era garantia de que os mouros não escapavam à derrota e ao massacre. Neste quadro, a condecoração do Rei de Marrocos com a Ordem de Santiago é de bradar aos céus. Não há ninguém na entourage de Marcelo com um mínimo de bom senso?