MM, há dois dias fez 52 anos que morreu
Só na sombra é que encontro alguma paz. O sol persegue-me, entra-me pelo azul dos olhos, enche-me a cabeça de preguiça e as ideias não me ocorrem. Tenho suor nas costas, na curva do peito. A única coisa que quero é que me deixem em paz, que não falem comigo, que não me oiçam pensar.
Isto é que é aquilo a que se chama skip-to-my-lou,uma dança tipicamente americana. Adoro que saiba estas coisas. Odeio que me queira ensinar. As pessoas dizem: Arthur Miller, um génio. Eu oiço-o na casa de banho, a escovar os dentes, a tomar banho, a tossir os cigarros do dia, a bebida de há pouco. É um homem como os outros.
Tenho 32 anos. Nasci em 1926. Já fui deste tamanho.
Não se esqueçam de me gritar, de me avisar quando for a minha vez. Não adianta fazer gestos bruscos ou delicados. Sou míope. Preciso que me gritem.
No fim da conferência de imprensa talvez peça a Laurence Olivier para dançar. É o Waldorf Astoria Ballroom. Ele ficará com aquele ar de príncipe inglês, hirto, com um sotaque snob, agarrado à minha cintura com se fosse um bloco de gelo e eu vou sorrir e depois dar uma gargalhada. Será uma boa fotografia.
Só quero descansar. Não aguento os sapatos. Tenho calor. E sede. Dizem-me que aqui estou protegida dos olhares. É mentira. Estes dois fixam-me como se me engolissem. Não tenho forças. Quero ser feia outra vez.
É uma casa de banho de aeroporto. Ainda tenho de esperar uma hora. Eu disse que queria uma bebida. E privacidade. Vou retocar o cabelo. Puxar o vestido para cima para não ficar com nódoas. Fugir do calor e dos jornalistas lá fora: Miss Monroe, miss monroe…
Se cortar com muita força o tabuleiro tomba e perdemos o enquadramento perfeito. Arthur não diz nada. O silêncio é uma voz como as outras. Continuo a cortar. Se pudesse deixava-me tombar.
E depois alguém gritou: Marilyn, sorri.
Não suporto festas de cidadezinhas. O estúdio manda-me como se fosse um objecto de vitrine, uma peça de porcelana. Mesmo a descansar tenho de estar em pose. Não posso estar sozinha. Não me deixam. Eu também não quero.
A água é tão escura, ninguém me vê. A mão no sexo, o sorriso nos lábios. Agora. Quando o fotógrafo se esquecer de dizer.
Fecho os olhos. A minha mão nos olhos de Montegomery. Não sei como são os beijos dele. É tudo artificial. Nada tem importância. O nosso suor é de spray, as nossas lágrimas fabricadas. Não somos nós, somos o que inventam para nós.
John Huston deu-me o casaco, disse-me para me recompor, mandou-me passear. Vai rever as tuas deixas, ordenou. O Gable sabe tudo, sem falhas, todas as palavras, a pontuação certa. Eu não consigo articular um bom dia.
Sim? Ah, estou à espera que o verniz das unhas esteja seco, à espera para pôr o vestido, ir trabalhar, ler o cartão que vem com as flores. Nada de especial.
E quando eles dizem que eu posso descansar mas ficam a olhar para mim, com as máquinas prontas, os flashes, os seus olhares cheio de lascívia, as línguas a espreitar nas bocas, o suor dos pensamentos menos terrenos, eu pergunto-me: cumpro as expectativas? Não sou eu, é o meu corpo.
E se trocássemos? E se eu tivesse esses óculos? Esses lábios? Podias ser a Monroe, podias beijar o Clark Gable e o Montegomery Clift, ter todos os sorrisos e gentilezas do mundo. Eu trocava contigo e voltava para casa, a tua casa, para o teu marido e para os teus filhos e dizia: ah, ela tão simpática.
What shall I ask te dice for, John?
Don’t think honey, just throw. Don’t think, do it
A minha cabeça vai estoirar. Os comprimidos não fazem efeito. Já não sei o texto. A tristeza afoga-me. Não há ninguém com quem se possa falar. Daqui a pouco tenho de sorrir. Sorrir é uma das coisas que faço bem. Consigo até sorrir com os olhos. Poucas pessoas conseguem sorrir assim.
Vou descansar, a minha professora deixa-me descansar. Olha por mim, à sombra, no lugar do morto de um automóvel que não pertence a ninguém. Quando já estou perto do sono, há uma mão que me desperta.
Dentro desta mala tenho todos os meus segredos. Consigo transformar-me de corpo e alma. Faço o meu papel. Do outro lado do espelho há uma estranha que me cumprimenta. Tenho medo dela, mas não digo a ninguém.
Vou esperar aqui na sombra. Vou fechar os olhos. Quando se aperceberem, terei desaparecido. Nunca fui mais do que isto, uma rapariga a fugir do sol.