Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Marcela

José Meireles Graça, 26.01.21

20141220_170723.jpg

Nunca falou, salvo um raro olá quando excepcionalmente bem disposta. Portanto, nem sempre era fácil saber o que queria ou a incomodava. Com o tempo, aprendeu a apontar para a cabeça se lhe doía alguma coisa fosse em que parte do corpo fosse, e dizer adeus quando a companhia a estava a maçar, o que sucedia com facilidade. Sabia onde estava o que lhe interessava e apontava para o que pretendia - água, pão, iogurtes, fato de banho para ir para a piscina, etc.

Foi vista por um carrossel de especialistas, em Portugal, Bélgica e França. E de todo o lado guardou aversão a hospitais, e os pais descrença: diagnóstico seguro nunca houve, apenas palpites; um famoso professor belga tentou pô-la a fazer uns exercícios, que os pais sabiam perfeitamente que ela jamais faria porque nem tinha a mais remota inclinação para obedecer nem aqueles objectos a interessavam – o que a interessava eram bolas e balões; e nem medicada, de resto com um calmante que a excitava, coisa que, de resto, as luminárias não sabiam porque não perguntaram, foi possível fazer-lhe uma ressonância.

Tinha fúrias agressivas quando contrariada – podia ser por exemplo um engarrafamento de trânsito, ou outra coisa qualquer, mesmo que se não percebesse a razão da ira; e, se gostasse de alguém (mais homens que mulheres, desde pequenina), dava abraços com surpreendente força num corpo tão frágil.

As fúrias tornavam a vida familiar impossível porque ficava agressiva. A alternativa seria medicação que a transformasse numa couve, e passou-se a viver (quem com ela lidava, sendo que reservava a maior agressividade para as pessoas que mais a amavam, em particular a mãe, zangada porque não lhe percebiam os desejos, nem atinavam com as dores) na ansiedade sobre o seu estado. Para tudo havia rigorosos rituais, que antes de se estabelecerem era preciso adivinhar – por exemplo, para comer era necessário um certo guardanapo numa certa posição.

Foi internada numa instituição para deficientes aos 15 anos. Lá tinha assistência médica, um neurologista pro bono (há pessoas assim, dedicadas àqueles pobres destroços da vida), que estimava tanto como detestava e temia outros médicos, e que lhe doseava todas as semanas a medicação ao mesmo tempo que cuidava do seu bem-estar, numa organização competentemente dirigida durante anos por gente, incluindo o fundador, que lá tinha os filhos. Surpreendentemente, não apenas se adaptou aos ritmos do novo lar como, em tempo, nos apercebemos da silenciosa corrente de solidariedade que unia aqueles diminuídos, mentais todos e a maior parte também físicos. Tanto que, vindo a casa aos sábados, ao fim de umas horas começava a dizer adeus, não obstante apreciar o baloiço que para ela existia, e no qual aprendeu a andar fácil e velozmente (com geral espanto, pois tinha dificuldades grandes de controlo dos movimentos) pelos ofícios de um amigo da família.

O ritual dos sábados incluía a ida e a vinda, 20 km para cada lado, e, no tempo próprio, antes do baloiço, no qual se entretinha horas, uma ida ao “quintal de cima” comigo, onde emalava, aos gomos, duas ou três laranjas, de preferência sendo colhidas trepando à árvore, operação que a divertia, sempre supus, porque achava graça à perspectiva de me ver despencar.

Numa viagem feita de um fôlego a Marselha, para mais um hospital, num tempo em que em Espanha ainda não havia a obsessão do controlo de velocidade, fartou-se de rir nas lombas de Palencia porque o carro parecia ir levantar voo; e numa área de serviço o tal amigo do baloiço, que guiava para a ocasião, ficou siderado por a ter visto a teimosamente comer uma cebola crua, enquanto as lágrimas lhe escorriam, e pelo encantamento com uma cortina de fitas de plástico numa porta, contra os insectos, que descobriu parecia uma parede mas se podia atravessar.

Com a idade, foi-se curvando mais e mais, e tendo cada vez mais dificuldade em andar. Já era preciso que a levasse ao colo, primeiro, e depois que pusesse antecipadamente fruta no banco de pedra à beira do tanque, onde, de mão dada comigo, esperava tranquilamente que fumasse o meu cigarro, tocando ocasionalmente na cabeça do Aníbal, o cão familiar que a ela dedicava especial protecção. Algumas raras vezes tinha um sempre inesperado gesto de carinho, encostando-me suavemente a cabeça no braço; e, menos vezes ainda, olhou-me directamente com olhos límpidos, talvez para dizer que, à sua maneira especial, gostava de mim.

A certo ponto, deixou de se poder deslocar senão em cadeira de rodas; ficou impossível que andasse de baloiço; e apareceram-lhe escaras, devido à imobilidade, de tratamento doloroso – deixou de vir a casa.

Por duas vezes teve de ser assistida no Serviço de Urgência, a que se seguiram três internamentos, o primeiro em Janeiro de 2018, em cada um sempre num patamar inferior de resistência. E no dia 6 deste mês foi internada pela última vez, no Hospital de Braga, em estado de grande debilidade, com uma pneumonia e dificuldades respiratórias, e agonizou sob a dedicada supervisão da dra. Teresa Macedo, e com assistência carinhosa de enfermeiras, até ao dia 19.

Morreu com 39 anos, um pouco antes das 22H30, e a estas horas está no Céu, se existe. Estou certo de que moverá influências para a poder visitar, se é que no Além o segredo das coisas não fica automaticamente evidente.

Até lá, viverá no meu coração e na minha cabeça.

--------

Nota: Não publicarei comentários.