Maquiavel, as presidenciais norte-americanas e mais um poucochinho
Há várias formas de intervir numa campanha eleitoral. Maurizio Viroli escreveu um livro sobre política, o que não surpreende uma vez que o autor é professor de Ciência Política. Surpreende ainda menos que o livro verse sobre Nicolau Maquiavel pois Viroli é dos mais reputados estudiosos da obra do secretário florentino.
A primeira originalidade reside no facto de Viroli meter Maquiavel ao serviço de Hillary Clinton. A dupla é menos improvável do que possa parecer a alguns, não porque Clinton seja pérfida, mas porque Maquiavel não o era. A segunda originalidade, que revela alguma mestria autoral, está na naturalidade com que um livro que pretende ser um instrumento de intervenção na campanha eleitoral norte-americana não a refere explicitamente nem aos candidatos que nela participam. Por fim, a simplicidade do texto é igualmente invulgar. Publicado pela editora da Universidade de Princeton, “How to Choose a Leader: Machiavelli’s advice to citizens” é acessível, directo e quase panfletário, estando, portanto, nos antípodas da sofisticação (e da sobranceria) doutoral que se poderia esperar. Digo quase panfletário porque a simplicidade e o viés político que sobrevém do texto não comprometeram o rigor do livro, construído a partir de comentários de Viroli a citações retiradas dos mais diferentes textos de Nicolau Maquiavel, de O Príncipe, passando por Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, até à correspondência política. Em capítulos curtos e despretensiosos, está lá tudo o que importa: a razão de Estado; o caso de necessidade; a Fortuna e a Virtude; o papel da religião na política; a importância da História; e a capacidade que Maquiavel teve de intuir o geral a partir do estudo cuidado de casos particulares.
Se crítica há a fazer prende-se com a apresentação de um Maquiavel demasiado prescritor e mecanicista, o que é francamente redutor. Talvez não houvesse outra forma de pegar no trabalho do secretário florentino e transformá-lo em guia prático do eleitor. Porém, é precisamente este pendor prescritivo, de ajuda na escolha de um líder, que faz do livro uma leitura bem-vinda a outras latitudes. Como a nossa.
Depois de, no primeiro capítulo, deixar claro que Nicolau Maquiavel atribuía aos cidadãos um papel tão crucial como insubstituível na vigilância da acção dos políticos, pois disso depende o grau e a qualidade da liberdade na República, Maurizio Viroli adverte os eleitores para os perigos encobertos pelos amanhãs que cantam.
Citando Discursos, o autor salienta que, segundo Maquiavel, a ruína do povo está muitas vezes nas promessas de grandeza e de esperança feitas por gente aparentemente respeitável. Escreve Viroli que “estratégias arrojadas, apelos à honra e a evocação de elevados princípios morais têm sempre um grande impacto” junto das populações, mas quando tais caminhos não se sustêm numa avaliação prudente da realidade são uma receita perfeita para a tragédia humana e política. Por outras palavras, as bravatas em política têm um preço e quem o paga são, em regra, os cidadãos.
Maquiavel, num retrato de Santi di Tito
Uns capítulos depois, e continuando com exemplos retirados dos Discursos, Viroli explica-nos que um bom político almeja a glória e guia a sua acção pelo cuidado com as gerações futuras. Feita a evidente distinção entre fama e glória, de resto cunhada pelo pensador florentino, Maurizio Viroli afirma que “os políticos cujo único objectivo seja a obtenção e manutenção do poder estão única e exclusivamente preocupados com metas de curto prazo e com o consenso eleitoral; líderes políticos que entretenham ideias de glória olharão para o futuro com a esperança de deixar no mundo sinais favoráveis da sua passagem pela Terra”. Importa, portanto, distinguir políticos que ambicionem “verdadeira glória de alguém que apenas deseja vanglória”.
Mudando de assunto e de capítulo, mas sem sair de Discursos, o autor colhe de Maquiavel o ensinamento segundo o qual a boa gestão das contas públicas é imprescindível para manter a igualdade e a liberdade na República. “É pouco avisado escolher governantes dispostos a exaurir o tesouro em benefício dos cidadãos”. Quando tal acontece, mais cedo ou mais tarde, será necessário que o governante submeta os cidadãos a um “fardo extraordinário, e recorra à taxação e empregue todo o tipo de medidas que lhe permitam obter mais dinheiro”. Um tesouro vazio é uma “ameaça à liberdade, sendo o perigo ainda maior se a República é devedora a potencias estrangeiras”.
Enfim, apesar da simplicidade do texto e de visar as eleições presidenciais norte-americanas, o livro é basto em exemplos pertinentes para estas bandas. É uma leitura recomendada para eleitores, mas sobretudo para políticos – mesmo para aqueles que não se expressam correctamente na sua língua materna. Em boa verdade, o inglês de “How to Choose a Leader: Machiavelli’s advice to citizens” é mais acessível do que o português que consta dos preâmbulos dos Decretos-Lei e das Resoluções do Conselho de Ministros.